Ao reivindicar o direito das mulheres ao sexo, o gênero acende debate sobre feminismo
MARINA NOVAES São Paulo 8 AGO 2015
Você pode não gostar do estilo, da batida, do som, da melodia e, principalmente, do conteúdo explicitamente pornográfico das letras e coreografias. Mas o funk brasileiro tem sido interpretado, por muitas mulheres do Brasil, como um dos gritos de liberdade nos dias atuais - com um detalhe importante: quando cantado por elas próprias. Afirmar que o funk é feminista causa estranheza à primeira vista. Afinal, como pode uma música que fala em “cachorras”, “vadias” e “popozudas” representar um movimento que defende, entre outras coisas, o respeito às mulheres? Mas é na temática sexual que está justamente a resposta para essa questão: ao levantar a bandeira de que as mulheres têm direito, tanto quanto os homens, a transar somente por prazer, o estilo musical passa a ser observado com mais atenção por quem não frequenta os bailes.
“O direito à liberdade sexual é uma luta histórica do feminismo. Ao dizer ‘o nosso corpo nos pertence’ as funkeiras estão, anos e anos depois, fazendo ecoar o que as feministas reivindicavam já na década de 1970”, disse em entrevista ao EL PAÍS a pesquisadora Carla Rodrigues, professora do departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que estuda teorias feministas. “O surgimento e popularização de mulheres funkeiras numa cultura machista como a nossa é parte de um processo de atualização da luta”, pondera.
Carla é autora de um artigo publicado em maio de 2012 pela revistaSuperinteressante justamente com o título “Funk é feminista”. O texto teve enorme repercussão nas redes sociais, mas em grande parte negativa. A maioria dos homens e mulheres que comentou o material na página da publicação repudiou a tese e classificou o estilo musical como “pouca vergonha” ou “degradante”, pois as letras enaltecem a figura da “mulher objeto” ou “submissa ao homem”.
Mesmo entre quem se diz feminista a teoria gera desconfiança. Há quem argumente que não se pode classificar as funkeiras como feministas se elas não se assumem como parte de um movimento que briga pela igualdade de direitos, o que a estudiosa rebate. “Não importa se elas têm consciência de que estão levantando uma agenda feminista. É um pouco de pretensão achar que essa é uma bandeira somente do movimento, que não tem dono”, defende.
A professora da UFRJ passou a olhar o funk sob essa ótica após a ascensão da cantora Tati Quebra Barraco e do lançamento do documentário “Sou feia mas tô na moda” (2005), da diretora Denise Garcia. O filme, que leva o nome de uma música de Tati, tem como protagonista Deize Tigrona e já abordava esse debate. Deize foi uma das primeiras funkeiras a lançar músicas com letras explícitas e, assim, falar de mulher pra mulher sobre sexo. “Não conseguiu me comer / Agora, quer me esculaxar / Se liga seu otário no papo que eu vou mandar / Então, pára de palhaçada, deixa de gracinha / Eu dou pra quem eu quiser, que a porra da buceta é minha”, é um dos exemplos do seu repertório.
Depois de Deize Tigrona e Tati Quebra Barraco, nos anos 2000, outras mulheres ganharam espaço no funk. Hoje, entre os nomes em alta se destacam Anitta, MC Carol Bandida e Valesca Popozuda. Esta última chegou a ser objeto de tese de mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2013, sobre a “representação feminina através do funk no Rio de Janeiro”, de autoria da estudante Mariana Gomes.
“Só o fato dessas mulheres estarem ocupando um espaço que era predominantemente masculino já é um grande ato de empoderamento feminino”, avalia Maíra Kubík, jornalista e professora do departamento de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Na avaliação da também pesquisadora em teorias feministas, é preciso ter cautela ao rotular todo gênero musical como feminista, mas também não se pode desqualificar a importância do funk na propagação do direito à liberdade sexual.
“O funk é feminista? Depende do contexto. No funk é possível encontrar mulheres negras, gordas, loiras e de diversos outros tipos físicos cantando e reivindicando seu prazer sexual. Isso pode ser visto como uma entrada do feminismo na sociedade, por meio do questionamento e da autorreferência de termos como ‘cachorra’, ‘piriguete’ e ‘puta’. A ressignificação dos termos, por meio de sua apropriação é uma tática que vem crescendo dentro do feminismo, que tem como objetivo principal lutar contra a culpabilização das vítimas de violência sexual”, escreveu a blogueira Bia Cardoso, em artigo publicado no site Blogueiras Feministas em agosto de 2014.
Se por um lado a elite da música olha com desdém para o funk, por outro, há quem veja em sua origem - as favelas cariocas - a razão para que os sucessos das funkeiras não seja reconhecido como parte de um processo do avanço da revolução sexual feminina no Brasil. Seria então preconceito não considerar a relevância do funk cantado por mulheres e ignorá-lo na discussão sobre o feminismo nas periferias? Talvez. E essa é a opinião de muitos dos que vão às redes defender o gênero musical, independentemente da sua qualidade sonora. O fato é que, longe do olhar atento dos internautas e intelectuais, milhares de brasileiras cantam como se fossem hinos,em pancadões, músicas consideradas por muitos politicamente incorretas e pornográficas, como avaliou a própria Valesca Popozuda, que há alguns anos vem se declarando feminista. "Chega de hipocrisia. As mulheres têm o direito de falar sobre sexo. Mas muitas se calam por medo do que a sociedade vai achar."
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