agosto 11, 2015
É a adaga da palavra para dizer basta a um jogo de sentidos que mais e mais sobrecarrega as mulheres que nem sempre optam pela maternidade solitária, mas são obrigadas a exercê-la porque, para elas, o abandono das crianças não é uma opção. Nem por princípio ético e humano, nem por flexibilidade social
Por Cidinha da Silva*
Mais um dia do comércio de afetos dedicado aos pais termina. Como os outros dedicados às mães, aos enamorados e enamoradas, aos coelhos e aos ovos, aos LGBT, o saldo é de tristeza para alguns e de alegria para outros.
Até o Dia Internacional da Mulher está se tornando mais um dia de vendas de produtos da chamada beleza feminina em detrimento da conotação política. Tem brotado, assim, uma festa midiática de araque em substituição a um marco de luta por direitos humanos das mulheres.
Os que têm um paizão da hora, sorridente, benfazejo, vivo ou já ido, mas que constitui uma boa memória, debutam no palco das redes sociais, ora com declarações de amor, gratidão e ostentação, ora com fotografias novas e coloridas, também as envelhecidas em preto e branco, registro de saudade. Os próprios pais se fotografam e se auto-expõem, orgulhosos de si no dia a eles dedicado. Ponto para a alegria.
Aqueles que por algum motivo não têm pai para ostentar ou mesmo nunca tiveram um para experimentar a presença de homem adulto protetor que lhes ajudasse a constituir a coluna vertebral, encolhem-se feito caramujos tristes. Principalmente aqueles cujas certidões de nascimento os declaram filhos de pai desconhecido. Crueldade de tabeliães que, em última instância, elucubram que a mãe se envolveu com muitos e não sabe quem é o pai. Isso, efetivamente, significa a expressão pai desconhecido. Também os que tiveram ou têm pais canalhas são tomados pela tristeza, ora disfarçada pela acidez, outras tantas pela revolta.
O cyberespaço tem acrescentado novidades ao mosaico de sentimentos ali expressos, tais como a crítica à paternidade irresponsável, feita por filhos e mães, bem como a recusa dessas ao lugar de supermãe que de tão poderosa é também pai. Daí o neologismo pãe, rejeitado principalmente por jovens mães feministas.
Uma delas escreveu de maneira cortante: “Não sou pãe! Não me chamem assim. Sou apenas mais uma das incontáveis mulheres altamente sobrecarregadas com a função de criar e educar uma criança. Não preciso de parabéns ou ser chamada de guerreira porque um bunda mole resolveu dar um rolê pela vida enquanto eu coloco a minha de lado. Eu amo meu filho. Nunca tive dúvidas quanto a isto. Mas não existe nada de glamoroso em ter que me desdobrar em cinco para tentar suprir as necessidades dele e as minhas, e mesmo assim não dar conta. Não tem nada de enobrecedor em ver o sentimento de rejeição nos olhinhos dele a cada vez que alguém pergunta pelo pai. Se ser pãe realmente me desse o poder mágico de conseguir me transformar em duas pessoas que se apoiariam na criação do meu filho eu aceitaria de bom grado o título. Mas, como isso aqui é vida real, prefiro tratar essa história de pãe como o que realmente é: uma fantasia. Enquanto isso, eu continuo sendo uma mulher, uma mãe, uma só.”
É a adaga da palavra para dizer basta a um jogo de sentidos que mais e mais sobrecarrega as mulheres que nem sempre optam pela maternidade solitária, mas são obrigadas a exercê-la porque, para elas, o abandono das crianças não é uma opção. Nem por princípio ético e humano, nem por flexibilidade social.
A mãe que por qualquer necessidade abandona o filho é execrada e apedrejada na Medina. Para os homens, entretanto, existem milhares de justificativas, dadas por mulheres, inclusive: ele era jovem, descabeçado, tinha a vida inteira pela frente, não era o momento de assumir um filho indesejado, ainda mais com aquela vagabunda.
A mulher gestante do filho que o homem não quer ter é sempre a imprestável, a golpista que deve ser punida com a solidão na gestação e na maternidade, além de todos os custos com a criação e educação da criança. Esta é a velha história.
Depois veio a heroicização dessas mulheres, como contraponto. Hoje, a novidade é a insurreição contra esses dois lugares sociais que roubam da mulher a condição de sujeito-mulher, transformando-a apenas em corpo-mãe.
As jovens feministas e mães não aceitam para si ou para outras o adjetivo vagabundas. Não querem também ser pães-heroínas. Querem ser respeitadas como são, mulheres e mães que se desdobram em mil na tentativa de viver com alguma plenitude nesse mundo que recusa-se a vê-las em sua integralidade humana.
(*) Cidinha da Silva é escritora. Publicou, entre outros, (Conversê, 2013) e Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (FCP, 2014).
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