Marian Partington fez o possível para perdoar Rosemary West, uma das culpadas pelo assassinato de sua irmã. Para ela, a única maneira de conter a espiral de violência feminina é compreendê-la
É a visita que ninguém espera jamais receber. A polícia bate à porta da sua casa para comunicar que um dos seus familiares foi assassinado. Para Marian Pertington, essa visita ocorrida em uma manhã de sábado, em março de 1994, pôs fim a 20 anos de incertezas sobre o destino de sua irmã Lucy.
Lucy desapareceu em dezembro de 1973 enquanto aguardava o ônibus em Cheltenham. Tinha 21 anos de idade e cursava o último ano de licenciatura em filologia inglesa na Universidade de Exeter. Duas décadas tiveram de se passar para que Lucy fosse encontrada e para que a terrível verdade sobre a sua morte fosse revelada. Lucy foi torturada, assassinada, esquartejada e enterrada no porão da casa de número 25 da Cromwell Street, em Gloucester, junto com outras vítimas dos serial killers Fred e Rosemary West.
Fred West cometeu suicídio na prisão no Ano Novo de 1995. Em novembro daquele mesmo ano, Rosemary havia sido condenada por dez assassinatos, incluindo o de sua própria filha de 16 anos, de sua enteada de oito e da amante, que estava grávida, de seu marido. Pegou prisão perpétua, sem direito a liberdade condicional.
“Não uso a palavra vil à toa, mas lembro de estar sentada, ouvindo o que ela havia feito... e de me sentir envilecer. Para mim, trabalhar com mulheres delinquentes é um verdadeiro desafio”
“Lucy morreu vítima de violência sexual e pura crueldade”, recorda Marian. “Sua morte foi um tormento, tortuosa, e não consigo falar nisso sem pensar no horror pelo qual ela passou. Uma das piores coisas é que não podia falar nada. Estava amordaçada... Senti que se eu não falasse sobre o que ela passou, seria como se eu mesma estivesse morta também”.
Marian trabalha em uma organização laica chamada The Forgiveness Project, e faz visitas em prisões durante as quais relata aos presos a sua história, como parte de seu trabalho de restauração da justiça. Em 2004, escreveu uma carta para Rosemary West (uma das figuras mais odiadas do Reino Unido), uma carta cheia de compaixão e empatia. West lhe pediu que não voltasse a contatá-la.
Não foi fácil a tarefa de admitir o crime. Marian se lembra do julgamento de West. “Não uso a palavra vil à toa, mas me lembro de estar sentada, ouvindo o que ela havia feito... e me senti envilecer. Para mim, trabalhar com mulheres delinquentes”, afirma, “é um verdadeiro desafio”.
As mulheres são bem menos propensas a cometer crimes do que os homens, mas as taxas de criminalidade feminina aumentaram. O números de mulheres e meninas presas por crimes violentos no Reino Unido mais do que duplicou entre 1999/2000 e 2007/2008. Ainda não está claro se isso se deve a um aumento da violência em si, ou se a sua visibilidade é que aumentou –ou as duas coisas ao mesmo tempo.
A ideia de que uma mulher possa ser violenta, que chegue até mesmo a matar, parece-nos perturbadora. Mas, por que? A violência cometida por mulheres seria diferente da dos homens? O que se pode dizer, com certeza, é que não tratamos da mesma forma a violência cometida por eles ou por elas. Os meios de comunicação costumam criar estereótipos cruéis para qualificar as mulheres criminosas, e tanto elas quanto as suas vítimas podem receber um tratamento injusto por parte do sistema judicial.
Embora não seja fácil lidar com a violência feminina, um número crescente de pessoas defende que, se quisermos reabilitar as mulheres criminosas e oferecer um apoio melhor a suas vítimas, teremos de compreender de uma forma mais avançada os motivos que levam uma mulher a cometer um assassinato ou a infligir danos a alguém.
Uma história de violência
Antigamente, o poder e a violência das mulheres era algo admitido e até mesmo festejado. Mulheres como Joana d’Arc, Boadiceia ou as Amazonas guerreiras se tornaram símbolos. De algum tempo para cá, as mulheres, tanto do Oriente quanto do Ocidente, vem ocupando, frequentemente, papeis de comando nos exércitos. As mulheres já demonstraram ser capazes de desfraldar a sua violência sob formas que denotam método e seletividade, por vezes até mesmo de modo atroz. Na Alemanha nazista, por exemplo, do meio milhão de mulheres que se alistaram para o serviço militar, 3.500 serviram como guardas em campos de concentração. Algumas chegaram a ser julgadas por crimes de guerra.
Quando estive em Ruanda pela primeira vez, em 1997, havia três anos desde a ocorrência do genocídio. Fiquei surpresa, então, ao entrevistar sobreviventes e agressores, e, depois, na hora de traduzir os depoimentos para uma ONG de ajuda aos sobreviventes, com a quantidade de mulheres que tinham participado da violência. Elas o haviam feito como espectadoras, como instigadoras e até mesmo como figuras-chave do genocídio, de maneira semelhante à que tinham atuado no Holocausto.
De alguma maneira, o sentimento de traição parecia mais profundo quando se tratava de mulheres participando, já que uma mulher “não deve” fazer esse tipo de coisa. Fiquei atormentada, especialmente, com um depoimento arrepiante que denotava um conhecimento profundo da infância: certas mulheres aspergiam pimenta caiena nas casas sabendo que isso faria as crianças escondidas espirrarem, possibilitando, assim, a sua captura e posterior assassinato.
Em Ruanda, algumas mulheres espirravam pimenta caiena nas casas sabendo que isso faria as crianças escondidas espirrarem, e possibilitando, assim, a sua captura e posterior assassinato
Desde os anos setenta, uma atenção especial tem sido dedicada à violência machista contra mulheres e meninas. Isso alterou de várias maneiras o quadro de referência pelo qual se define a violência, em especial a violência íntima ou doméstica, no sentido de algo que gira, mais, em torno do gênero. Não é de surpreender; a “diferença de gênero” nos crimes registrado é bastante conhecida. Os homens cometem crimes em proporção maior do que as mulheres, veem-se envolvidos em mais delitos graves e agressões (respondem por 80% dos atos violentos) e têm probabilidade maior de reincidir. São, também, mais propensos a assassinar suas companheiras, a ser condenados por violência doméstica ou a cometer crimes sexuais ou assédio.
Isso não significa, porém, que não existam mulheres delinquentes, e a maneira como elas são tratadas se tornou uma parte importante da pesquisa sobre criminologia. “Alguns criminologistas norte-americanos defenderam a tese de que a liberação das mulheres teria trazido consigo uma onda de crimes violentos”, diz Frances Heidensohn, criminologista e professora visitante da Escola de Economia de Londres. “A taxa de mulheres criminosas tem aumentado um pouco, mas não observamos um incremento muito grande... Estamos falando de uma contribuição modesta para a criminalidade e de uma reação exagerada. As agressões são tratadas de forma muito sensacionalista”.
O número de mulheres presas na Inglaterra e no País de Gales quase triplicou entre 1993 e 2005. Embora esse total esteja diminuindo, ainda existem, hoje, 2.000 mulheres a mais, atrás das grades, do que nos anos 90. As mulheres representam cerca de 5% da população carcerária. No final de março deste ano (2016), mais de 25% das mulheres presas na Inglaterra ou no País de Gales haviam sido condenadas por atos de violência.
Frequentemente, a violência praticada pelas mulheres se dirige a pessoas conhecidas, especialmente em situação de vulnerabilidade ou que dependem de seus cuidados: crianças, deficientes ou idosos. Seus crimes costumam ser cometidos no ambiente privados ou no de pessoas cuidadas, mais do que em público.
Seja como espectadoras, seja como comandantes, as mulheres participam de todo tipo de crime, inclusive os de honra, terrorismo e tráfico humano. Em um caso recente, uma mulher escapou por pouco de ser assassinada por um homem que queria se casar com ela. Uma das coisas mais chocantes é que uma parente muito próxima dela confessou que, tanto ela quanto o seu marido, estavam a par do ataque que fora planejado e ficaram ao lado do telefone aguardando para saber se ele tinha sido bem-sucedido.
Trata-se de uma coisa muito comum. Um relatório recente do Corpo de Investigadores da Polícia de Sua Majestade sobre crimes de honra, mutilação genital feminina e casamento forçado, conclui que os agressores tendem a se dividir entre homens e mulheres na mesma proporção. “Os membros femininos de uma família podem participar da violência ou dos abusos com conversas, incitando os homens da família a cometer crimes [de honra] ou colaborando no planejamento das ações criminosas. Podem também fazer parte ativamente da agressão ou dos assassinatos”, registra o relatório.
O Middle East Quarterly dedicou recentemente um estudo à análise de casos de assassinatos “de honra” com participação de mulheres. Descobriu-se que estas cometem crimes brutais contra outras mulheres, tanto como conspiradoras quanto como homicidas diretas, e que a sua participação pode consistir em divulgar os rumores que por vezes conduzem ao assassinato.
No Reino Unido, é cada vez maior (embora ainda seja pequeno) o número de mulheres que participam diretamente de atos terroristas, como aconteceu nos anos 70 na Irlanda do Norte e na Alemanha. Em 2014 e 2015, 35 mulheres foram presas por crimes relacionados ao terrorismo no Reino Unido, triplicando o número registrado cinco anos atrás.
A baronesa Helena Kennedy, uma eminente advogada, dirigiu uma pesquisa entre 2010 e 2011 sobre o tráfico humano na Escócia. “Há um preconceito segundo o qual as mulheres não participam do tráfico a não ser como vítimas”, explica ela. E isso não é verdade. Ao abordar os locais onde se cometiam os crimes, os policiais e agentes achavam que todos os responsáveis seriam homens. Mas não foi assim. Eram mulheres que estavam à frente de várias casas de massagens, saunas e outros lugares onde havia vítimas de tráfico. “Algumas eram terrivelmente cruéis com as outras”, lembra Kennedy. “Em muitos dos casos que vieram à tona, as mulheres tinham assumido a direção”.
Como uma mulher
Em maio de 1993, a enfermeira Beverley Allitt, conhecido nos meios de comunicação como “Anjo da morte”, foi considerada culpada pelo assassinato de quatro crianças e por causar danos a várias outras. No dia 5 de maio, em um jornal do Reino Unido, afirmava-se o seguinte: “A natureza feminina é de cuidar, não de ferir. E, geralmente, costuma ser assim. Mesmo nos dias de hoje, a violência é uma especialidade masculina. Supõe-se que as enfermeiras sejam o paradigma do cuidado feminino. São a menina bonita das manchetes de jornal. Quando as mulheres fazem coisas desse tipo, parece algo antinatural, vil, uma perversão da sua própria biologia”.
O jornal resumia aquilo que conhecemos como determinismo biológico: as mulheres foram feitas, por natureza, para cuidar e educar, em vez de ferir e matar. Os homens, logicamente, cometem mais atos violentos do que as mulheres. Mas seriam os nossos corpos e os nossos cérebros, por acaso, escravos da genética e da química, responsáveis pela diferença de gênero na criminalidade? As mulheres que cometem crimes violentos seriam, assim, duplamente degeneradas e de alguma forma antifemininas?
Há uma sensação de que as mulheres são feitas, por natureza, para cuidar e educar, em vez de ferir e matar. Mas a ideia de que exista uma personalidade ou um cérebro diferente entre “machos” e “fêmeas” não encontra apoio em nenhuma pesquisa atual
A ideia de que exista uma personalidade ou um cérebro diferente para “machos” e “fêmeas” não tem apoio em nenhuma pesquisa atual.
Um estudo da catedrática Gina Rippon e de colegas seus da Aston University destaca o “notável arrefecimento” da diferenciação de gênero no que se refere aos traços que costumamos considerar masculinos ou femininos. Falamos de coisas como a agressão física, a predisposição à ternura ou a rotação mental. Outros estudos recentes conseguiram definir até onde essa sobreposição de traços masculinos e femininos é capaz de chegar. Com efeito, como insiste Rippon, dividir os objetos de estudo entre “masculinos” e “femininos” é, na verdade, “obstaculizar o avanço” quando se pretende compreender a relação existente entre comportamento e cérebro.
Além disso, enquanto a violência masculina é avaliada, às vezes, conforme a circunstância, como no caso da guerra, por exemplo, ou até mesmo tolerada, como no caso de brigas de bar, raramente isso acontece no que tange às mulheres. Uma mulher que comete um crime atroz nos inspira pena, ou então procuramos nos afastar dela. Preferimos não sentir nenhum tipo de identificação com ela. É arriscado demais, embora, pensando bem, muitos de nós já tenhamos dado um chute em um gato ou aplicado uma boa palmada em nossos filhos. É quase impossível, para nós, imaginar que um gesto tão pequeno e pessoal como esses possa fazer parte de uma linha de continuidade de violência capaz de levar uma mulher a cometer um assassinato.
Em vez de nos identificarmos com ela, é muito mais fácil classificar cada mulher que agride ou mata alguém como algo excepcional. Os casos específicos se tornam mitos, e aquelas que os cometem são objeto de lamento ou desprezo, sem ser, jamais, compreendidas. A imagem projetada por uma mulher agressora pode ser muito poderosa, porque representa uma transgressão de seu gênero. Deixa uma marca muito mais duradoura.
Há, ainda, uma outra forma de negar a violência das mulheres: argumentar que elas só agem por causa da influência de homens ruins. É muito frequente que mulheres criminosas sejam chamadas de “loucas” (para que, assim, se possa ter pena delas em vez de condená-las), de ‘ruins’ (a fim de diferenciá-las do conjunto das mulheres) ou ‘deprimidas’ (levadas pela força a praticar a violência, vítimas das circunstâncias, violentas por coação ou em função de represálias).
Normalmente, a sexualidade de uma mulher violenta é descrita como degenerada, e sua atração sexual –ou a ausência desta—será colocada em destaque. Seu papel como mulher também será analisado: foi uma esposa ruim, ou uma mãe ruim? É preciso manter a essência da feminilidade imaculada a afastada das mulheres que matam.
Intimidade e delinquência
Nosso lar é um lugar onde nos sentimos seguros, o lugar onde a pessoa se alimenta e recebe cuidados; quando a violência ocorre aí, ou em lugares onde as pessoas costumam ser bem cuidadas, ela nos parece mais desconcertante ainda. A atenção normalmente dedicada à violência masculina nas relações de um casal é compreensível; os agressores costumam ser bem mais frequentemente homens, e as mulheres se mostram mais propensas a acabar feridas ou até mesmo mortas. Mas nem sempre o agressor é masculino, da mesma maneira que nem sempre a vítima é uma mulher.
Segundo a chamada Pesquisa sobre a Criminalidade na Inglaterra e no País de Gales, em 2014/2015, 27% das mulheres e 13% dos homens tinham sofrido algum tipo de violência doméstica a partir dos 16 anos de idade, somando cerca de 4,5 milhões de vítimas mulheres e 2,2 milhões de homens. As relações entre membros do mesmo sexo não são menos violentas do que as heterossexuais. Um estudo realizado em 2013 nos Centros de Prevenção e Controle de Enfermidades dos Estados Unidos descobriu que 44% das lésbicas tinham sido agredidas fisicamente por suas companheiras, ante 35% das mulheres heterossexuais. As mulheres bissexuais são mais propensas ainda a sofrer alguma agressão.
As mulheres aparecem com muita frequência como autoras de agressão contra pessoas com deficiência. Os dados mais recentes da Promotoria Geral do Reino Unido mostram que, em quase 25% desses crimes, o acusado é mulher, em comparação com 15% nos demais crimes gerados por ódio. Esse padrão se repete nos crimes contra pessoas idosas, em que mais de 20% dos acusados são mulheres (embora muitos delitos denunciados neste caso não possam ser considerados violentos).
O tão ansiado papel de mãe, essencial para a identidade de muitas mulheres, não pode ser esquecido, especialmente quando ele se vê distorcido, por exemplo, sob a forma de abuso sexual. A doutora Anna Motz, psicóloga clínica e forense, além de psicoterapeuta, explica como é difícil manter esse papel sob controle: “Hoje nós podemos falar da mulher como um ser sexual. Isso, graças ao crescimento do feminismo”, diz. “Nesse aspecto, as mulheres também podem se desviar em sua conduta e abusar de seu papel como mãe e cuidadora. Isso se tornou algo mais concebível, algo em que hoje devemos prestar atenção”.
As mulheres que têm esse tipo de comportamento, diz a médica, são vistas como algo raro, e elas são atacadas com muito mais força do que os homens. “Isso deixa uma marca profunda nos terapeutas que trabalham com mulheres que cometeram atos de abuso sexual”, afirma Motz. “Trata-se de um grande esforço para eles, e não é de estranhar que as pessoas comuns considerem difícil admiti-lo nem sequer como uma possibilidade“.
As estimativas das instituições de voluntários que trabalham tanto com agressores quanto com crianças variam bastante, mas, de acordo com a ONG para crianças ChildLine, no Reino Unido, em 17% dos telefonemas recebidos as crianças relatam abusos sexuais cometidos por mulheres. A Fundação Lucy Faithfull, que se empenha em proteger jovens e crianças contra abusos sexuais, estima que as mulheres são responsáveis por algo entre 10% e 20% de todos os crimes sexuais praticados contra crianças. Já as estatísticas oficiais registram que 1% de todos os delitos sexuais são cometidos por mulheres. Essa diferença poderia ser explicada, em parte, pelo fato de que nem sempre as crianças que dizem ter sido vítimas de abuso por parte de mulheres são levadas a sério.
No Reino Unido, em 2014/2015 (assim como em outros anos), a faixa etária com maior índice de homicídios foi a dos menores de 1 ano de idade. Esse grupo, apesar de representar apenas 1% da população, reuniu 5% das vítimas de homicídios. A maioria das crianças assassinadas o foram por seus pais ou padrastos. Embora as mães sejam responsáveis por grande parte dos assassinatos de crianças muito pequenas (elas têm propensão maior do que os pais para matar os seus recém-nascidos), são os pais que tendem a ser os culpados. As mães também são responsáveis por quase todos os casos (ainda que estes sejam raros) de Síndrome de Munchausen, também conhecida como doença induzida ou fabricada.
A idealização da maternidade
A doutora Estela Welldon tem estudado a fundo a relação entre mães e filhos. Essa relação pode, em seu pior aspecto, se tornar “perversa” e prejudicar as crianças, às vezes de forma irreparável. A violência das mulheres, escreve, costuma ser dirigida contra seus próprios corpos ou contra suas criações: os filhos.
"Minhas descobertas têm a ver com o movimento circular interno da perversidade. Quando algo se repete uma e outra vez se obtém um novo marco teórico", afirma. O livro de Welldon, Mãe, Virgem, Puta chegou a ser proibido em uma famosa livraria feminista no norte de Londres. E ainda hoje ela é vista por algumas feministas como uma traidora da causa. "Entrei em território inexplorado e muitos não são capazes de me perdoar", diz Welldon. Manteve-se firme porque sabia que suas conclusões partiam diretamente de uma observação clínica, que ela não poderia ignorar.
"Comecei a ouvir e a pensar: do que estão falando?" Odeiam seus filhos... "O importante é pensar, e não julgar". As pesquisas de Welldon transformaram a prática clínica. Seu trabalho na Clínica Portman, em Londres, foi pioneiro no tratamento de mulheres violentas, fazendo uso intensivo de psicanálise e das terapias de grupo.
Eram mulheres que estavam à frente de várias casas de massagens, saunas e outros lugares onde havia vítimas de tráfico. “Algumas eram terrivelmente cruéis com as outras”
A psicóloga e psicoterapeuta Anna Motz considera que a idealização da maternidade e a negação da capacidade feminina para a violência podem resultar e uma mistura explosiva, especialmente para as mães que foram abusadas em algum momento de suas vidas. "As mulheres são obrigadas a adotar o papel de cuidadoras", diz Motz, "e podem chegar a sentir inveja daqueles que elas cuidam, todas criaturas vulneráveis". No caso em que elas próprias tenham sofrido maus tratos ou abandono, explica, podem sentir a tentação de recriar essa violência com essa criatura vulnerável, ou qualquer outra que se encaixe nesse lugar da sua imaginação: "Seria um exercício retorcido de vingança contra o seu próprio agressor”, ao menos em sua cabeça.
Normalmente, as mulheres que matam ou abusam de seus próprios filhos estão tentando aniquilar uma parte que odeiam de si mesmas; e seu bebê, segundo o que elas sentem, é uma parte de si mesmas. Em um perturbador trabalho recente, Motz entrou no mundo do que ela chama de “casais tóxicos", aqueles onde duas pessoas feridas criam sua própria família para feri-la, por sua vez. As manifestações mais conhecidas ocorrem em casais de assassinos em série, como os West.
Observamos com horror as mulheres que cometem assassinato dentro da esfera doméstica, todas menos as que sofrem algum transtorno mental, as que vemos se rebelar contra a violência doméstica ou aquelas que matam seus próprios filhos "por compaixão". Para algumas mulheres isso poderia significar um tratamento judicial mais compreensivo, além do custo de reconhecerem que não são "responsáveis", deixando as pessoas afetadas sem qualquer possibilidade de ver como se faz justiça. Um homem que mata seus filhos, mesmo no caso de se tratar de um doente mental, raramente é tratado com uma simpatia semelhante.
Até que ponto essa nossa propensão para justificar certos tipos de violência feminina tem permitido que algumas mulheres fujam, literalmente? Em um artigo da pesquisa histórica, o casal de criminologistas formado pela doutora Elizabeth Yardley e o professor David Wilson analisou o caso de Mary Ann Cotton, responsável pela morte de muitos membros da própria família – segundo algumas fontes até 21 pessoas.
Yardley, que chama de "homicidas domésticos" esses assassinos do círculo íntimo, conta como Cotton passou sua vida recriando expressões de vida familiar para depois poder apagá-las. Isso nos remete às expectativas que carregamos sobre as mulheres, de que cuidem e provenham. Em grande parte isso não mudou. Até muito recentemente não éramos sequer capazes de reconhecer, por exemplo, que poderiam existir as assassinas em série. O FBI ainda costumava a considerar as mulheres assassinas como “comparsas relutantes".
Cotton, sem ir mais longe, matava sozinha e aparentemente por dinheiro. Estudos sugerem, de acordo com Yardley, que cerca de 15% dos assassinos em série são mulheres – um percentual baixo, mas não inexistente. Na Inglaterra e no País de Gales, os dados mais recentes relataram que 9% dos suspeitos de homicídio, entre 2014/15, eram mulheres, e que em 19% de todos os incidentes violentos registrados o agressor era uma mulher.
Ação e oportunidade andam de mãos dadas em casa e em outros espaços de intimidade. Já no final do século XIX havia queixas sobre a chamada agricultura dos bebês. Na Grã-Bretanha “atingia níveis epidêmicos e não se fazia o suficiente para contê-la". É o caso de Amelia Dyer, por exemplo, que acolhia bebês ilegítimos em adoção temporária ou permanente em troca de dinheiro – mas achava muito mais fácil se livrar deles em um rio. Foi presa em 1896 depois que um barqueiro pescou o corpo de uma menina. Dyer foi enforcada por assassinato após uma carreira de 30 anos, durante a qual matou cerca de 300 a 400 crianças.
Existem espaços fora do ambiente doméstico, como locais de cuidados primários, onde os vulneráveis também recebem cuidados. As mulheres com tendências violentas podem ir até eles em busca de oportunidades. Yardley e Wilson também têm colaborado nas pesquisas sobre o fenômeno dos "assassinos em série do sistema de saúde" (HSKs, na sigla em inglês). O caso mais famoso é o da enfermeira britânica Beverley Allitt. Os criminologistas descobriram que existe um crescente conjunto de evidências sugerindo que os HSKs tendem a escolher os mais indefesos (idosos ou jovens), que seu gênero é mais ou menos indiferente (com um número ligeiramente maior de agressores do sexo feminino), e que a maioria não leva em conta o gênero na escolha de suas vítimas. Além disso, 63% têm antecedentes de instabilidade mental ou depressão.
"Os cientistas sociais têm sido muito lentos na hora de prestar atenção nas mulheres criminosas", diz Yardley. "Ainda nos custa entender que existem mulheres que cometem crimes violentos, como homicídio e agressão". O local onde essas mulheres cometem seus crimes também é considerado particularmente interessante. "Nos leva de volta vez por outra ao assunto do gênero. As mulheres tendem a se concentrar em pessoas que dependem de seus cuidados. Usam o estereótipo para acessar suas vítimas, fazendo uso do papel tradicional do seu gênero".
No esquecimento
Myra Hindley é, muito possivelmente, a mulher mais demonizada do Reino Unido. Responsável pela metade dos "assassinatos do pântano" cometidos junto com Ian Brady. Hindley matou cinco crianças no norte da Inglaterra entre julho de 1963 e outubro de 1965. Quando jovem, a advogada Helena Kennedy QC trabalhou na defesa de Myra Hindley em um julgamento por tentativa fracassada de fuga.
Kennedy escreveu um livro, Eve Was Framed (Eva foi incriminada injustamente), sobre as injustiças sofridas pelas mulheres nas mãos do sistema judicial. Apesar de ser um texto fundamental sobre a relação das mulheres com a violência, ela não se engana a respeito. "A Myra que eu conheci não era a mesma Myra que ela tinha sido, aquela jovem analfabeta, apaixonada por um cara carismático que a tinha sexualmente submetida, e que ardia por satisfazer todas as necessidades dele", diz. "Mas alguém pode escapar da sua própria responsabilidade moral? Não. Talvez não matasse materialmente nenhuma criança, mas tornava as mortes possíveis; as crianças poderiam não querer entrar no carro de um homem desconhecido. A presença de uma mulher pode mudar a percepção de uma situação, pode fazê-la parecer segura".
Os homens cometem crimes em proporção maior do que as mulheres, veem-se envolvidos em mais delitos graves e agressões (respondem por 80% dos atos de violência) e têm probabilidade maior de reincidir. Mas as taxas de violência feminina têm aumentado
Kennedy está convencida de que a prisão perpétua foi apropriada no caso de Hindley, já que na Grã-Bretanha não há pena de morte, mas tenta ver o veredicto em um contexto mais amplo. "As mulheres são menos perdoadas", afirma. "Há um duplo padrão: o sistema de justiça criminal e o ‘outro’ conjunto de normas". Esse outro conjunto, afirma, engloba o sentimento de que se fez algo que vai contra as normas da feminilidade.
"Esperamos da mulher que seja melhor do que o homem. Isso que nunca se fala é o que nos surpreende mais quando é uma mulher que faz coisas terríveis. Eu mesma me senti assim", diz. Kennedy se estende, em sua análise, ao explicar o enorme ódio que inspira as mulheres que se atrevem a romper o tabu – ou inclusive as pessoas do seu entorno, por mais inocentes que sejam.
David Smith era casado com Maureen, irmã de Myra Hindley, quando em 6 de outubro de 1965 testemunhou o assassinato brutal de Edward Evans pelas mãos de Brady e Hindley. Foi graças à sua denúncia que as autoridades conseguiram acabar com a matança. Seu depoimento mais tarde, como principal testemunha de acusação, foi decisivo para a condenação. Apesar disso, Maureen e ele não só sofreram o ostracismo da comunidade, mas também foram agredidos fisicamente durante os anos seguintes. Em seu próprio relato do dia, em 1966, quando Maureen, visivelmente grávida, e ele deixaram seu apartamento para servir como testemunhas no julgamento, diz: "A multidão grita enlouquecida... sei por experiência que a maioria é de mulheres e muitas trouxeram seus filhos... nos levam com empurrões até o carro, e quando as portas se fecham com um estrondo desata uma sinfonia ensurdecedora de ódio, com punhos batendo nas janelas”.
É difícil perdoar as mulheres violentas, condenadas por sua dupla ofensa: uma vez por seus crimes, outra por infringir normas elementares não escritas. Mas existem pessoas extraordinárias que são capazes de conseguir. Por mais impossível que possa parecer, Marian Partington é capaz de falar com empatia de Rosemary West, a torturadora e assassina de sua irmã. Sua odisseia também tem contribuído para que as famílias dos agressores possam virar a página. Douglas, irmão de Fred, entrou em contato com ela, assim como Anne Marie Davis, filha duramente maltratada dos West.
Perdoar Rosemary não foi tarefa fácil. Marian teve que se esforçar para "humanizá-la, em vez de demonizá-la". O espiral de violência ao qual faz referência Anna Motz era evidente para Marian. "Quando soube dos abusos sexuais graves que Rosemary West havia sofrido pelas mãos de seu pai e de seu irmão, e que havia sido sequestrada em um ponto de ônibus aos 16 anos... eu posso entendê-la". Não é desculpa, tenta se colocar no lugar de alguém que cresce nesse ambiente. "Houve algum amor? Não houve mais do que medo? É possível aprender a amar sem receber amor?".
As mulheres mostraram ser capazes de desfraldar a sua violência sob formas que denotam método e seletividade, por vezes até mesmo de modo atroz. Na Alemanha nazista, 3.500 mulheres serviram como guardas nos campos de concentração
O trabalho de pessoas como Marian mostra que a redenção das mulheres violentas é possível? Anna Motz pensa dessa forma. Ela também fala de perdoar as criminosas com quem trabalhou, mas não sem adicionar uma nota de cautela. "É difícil para mim injetar esperança nos assassinos. É difícil que alguém assim possa voltar a confiar em si mesmo". Como também se cobra um pedágio pessoal dos terapeutas. Depois de 25 anos no ramo, Motz tomou a difícil decisão de deixar a psicoterapia e se dedicar a consultorias e treinamentos em questões relacionadas com a criminalidade feminina.
A jornada de Marian Partington rumo ao perdão começou em 16 de fevereiro de 1995, ao cobrir os ossos de sua irmã no necrotério. Levantou o crânio de Lucy e o beijou na testa. Envolveu-o em uma macia manta marrom de Lucy e coloco um raminho de flor em cima. Uma velha amiga, Beryl, colocou brinquedos de infância de Lucy, um de cada lado do crânio, juntamente com um ramalhete. Marian então colocou um ovo de Páscoa pintado no meio do seu osso pélvico.
Temos que encontrar uma maneira de ver a violência feminina abertamente, e com maior empatia. Temos que abordá-la de frente, por mais difícil que seja, em vez de desviar o olhar e usar os prismas da arte, da literatura ou outros meios para distorcê-la. Isso implica fazer coisas difíceis, e travar discussões com mulheres que tenham cometido atos violentos. "Para mim foi muito importante reconhecer que a beleza tem um lugar no mundo, apesar da atrocidade e do horror", diz Marian, quando conta como foi finalmente enterrar os ossos de Lucy. "O que nós não somos capazes de enfrentar deixamos como herança para a próxima geração".
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