Dulce Soares fotografou a ilusão casamenteira dos anos 1970 na Rua São Caetano paulistana
por Rosane Pavam — publicado 15/08/2016
Dulce Soares chegou por acaso à Rua São Caetano paulistana. Ao dobrar uma esquina, andarilha com a câmera nas mãos e as lentes nos bolsos, deparou com um inacreditável reino de véus. Era 1978 e ela não procurava vestidos nas lojas enfileiradas da Rua das Noivas, mas os porquês. Aos 25 anos, mãe de dois filhos, casada pela segunda vez, Dulce achou inacreditável a forma como vendiam a ilusão à mulher.
“Quanto mais ela vê, mais atordoada fica”, ensinou-lhe um lojista sobre a consumidora típica, “e compra onde a pessoa a convence”. O material era idêntico, as lojas, as mesmas, e muitas vezes o proprietário de muitos estabelecimentos vinha a ser apenas um. “Os mais antigos na rua têm quatro ou cinco lojas, é um desejo de domínio”, disse-lhe um vendedor. Dulce estava no lugar certo, no decisivo instante para um desmascaramento.
“É que eu não vinha montada no sonho”, conta. E seu trabalho ali equivaleria a um reviver. A mãe, no Rio de Janeiro onde nascera, comandava um ateliê de onde saíam os vestidos de gala para o Theatro Municipal. Eis por que não lhe pareciam estranhos o cerzir, o cortar, o drapear, que, com a admiração de uma igual, Dulce praticaria também na vida adulta, ao compor as vestimentas dos filhos.
“Eu me chamo artesã”, diz hoje, igualmente orgulhosa dos nove banhos com temperaturas diferentes em que mergulhava os papéis fotográficos coloridos, nos tempos nem tão distantes em que praticara, também como professora, a fotografia analógica.
Ela sabia conversar com as costureiras, entendia o provador e havia testemunhado o delicado percorrer das famílias de agulhas ao fixar o bordado certo. Tinha certeza de que faria o trabalho bem. Mas os lojistas não a deixariam entrar sem autorização. Dulce era uma mulher.
Estranho que não tivesse procurado outra como ela para ajudá-la. Que não houvesse solicitado a autorização diretamente de Maureen Bisilliat, por exemplo, fotógrafa que lhe dera as primeiras lições formais da arte e no ano anterior a designara a perscrutar as fachadas e os delicados frontões de uma Barra Funda em declínio. Nada de Maureen.
Dulce iria para as cabeças, ao “professor”, como ela chamava Pietro Maria Bardi, o criador do Museu de Arte de São Paulo. Dele fotografaria a Casa de Vidro, projetada pela esposa Lina, em imagens inéditas, muito bem guardadas consigo. O professor concederia a autorização com prazer.
Dito tudo assim, pode parecer que fizesse suas fotografias de modo a ressaltar o manifesto. Mas ela não era disso. Seu encanto nascia da sutileza, da visão direta para os ambientes, daquilo que Valentina Tong, a curadora da exposição Vitrines e Fachadas, até o dia 20 de novembro no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, a conter 160 de suas imagens em preto e branco feitas na Barra Funda e na São Caetano, chama de “jeito tipológico de fotografar a cidade”.
Dulce não se esconde nas sombras, célebres na fotografia brasileira dos anos 1970. Jamais exerce a rigidez dos modernos. “Sua linguagem é mais seca, despretensiosa”, ensina a curadora. “Suas perspectivas vêm distorcidas. E ela é rigorosa ao olhar, não na forma.”
A fotógrafa toma a distância devida para descrever os infortúnios. Seu poço é sutil. Está a um passo de compor a foto à moda da americana Diane Arbus, cujos personagens inadequados surgem quase siderais, mas, terrena, recua antes.
“Tudo é feito para ela ficar linda, maravilhosa, sem defeito”, disse-lhe o lojista sobre a noiva útil, seu personagem. E Dulce revelou as etapas desse fabricar. Enquanto entrava nas lojas, vinha-lhe o pensamento.
As mulheres, que recebiam seus vestidos de costureiras a trabalhar em espaços mal iluminados e mínimos, não entendiam outro caminho. Se não casassem, não vingavam. Então, quando experimentavam um modelo, vestiam um boneco de cera em si mesmas, ansiosas de um futuro que poderia não haver.
“E quando a velhice chegar, não encontre a solidão, mas um companheiro e filhos que me amem e respeitem”, escreveu uma noiva durante um concurso promovido por lojistas, que brindaria a melhor redação com um Fusca.
Nas fotos de Dulce Soares, as cabeças dos manequins se pareciam com as das noivas reais, cuja expressão surgia algo ausente deste mundo. Boquinhas pintadas e quietas, que ela parecia tão bem compreender. Tinha 21 anos quando, gravadora formada no Museu de Arte Moderna do Rio, ouviu do primeiro marido que jamais saberia mexer na sua Rolleiflex.
“Ele achava que isso era muito complicado para uma mulher”, conta hoje, com um sorriso. “Meu novo marido me ensinou a clicar com uma câmera 35 milímetros. Então eu me casei com um cara que me deu as primeiras aulas de fotografia, fala a verdade?”
Nenhum comentário:
Postar um comentário