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domingo, 28 de agosto de 2016

Guarda de menores: um conceito unitário no Direito brasileiro

Ao escrever algumas linhas a respeito da guarda de menores por seus genitores, para a publicação na Revista Jurídica da Escola Superior da Advocacia da OAB/PR, atendendo ao honroso convite de Marcelo Bürger, notei uma questão que foi confirmada por meu amigo Flávio Tartuce[1]: parte da doutrina afirma que a guarda dos pais quantos aos filhos menores (artigos 1.583 e 1.584 do CC) é distinta da guarda de menores prevista pelo artigo 33 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Vamos ao texto de lei para delimitar a controvérsia:
Segundo o estatuto: “Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais”.
Segundo o Código Civil: “Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. § 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”.
A questão que se coloca é a seguinte: temos no Direito brasileiro dois institutos denominados “guarda” ou temos apenas um instituto com diferenças em termos de efeitos? Há estruturalmente duas guardas?
Foi com a leitura de Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona que verifiquei a afirmação de que são dois os institutos existentes. Afirmam os autores, ao trabalharem os artigos 1583 e 1584 do Código Civil, que “não é a medida de colocação em família substituta prevista no ECA, mas sim o instituto derivado da própria autoridade parental exercida pelos pais”[2].
A existência de um ou dois institutos depende de sua natureza jurídica e definição. Em ocasião anterior defini, na própria ConJur, que “a guarda é simples companhia fática de uma pessoa com relação à outra a qual a lei atribui efeitos jurídicos. Quem tem a guarda, tem, faticamente, a companhia do menor e, portanto, tem o dever de cuidar do menor e zelar por sua segurança”[3].
Será que essa companhia fática ou convívio decorrentes do Código Civil e do estatuto são iguais? A resposta é afirmativa. Os efeitos são iguais? Não são, o que não altera a natureza das coisas.
No estatuto, a guarda se encontra no Título III, denominado “Direito à Convivência Familiar e Comunitária” e com a seguinte divisão: na Seção II, trata da “Família Natural” e, na Seção III, da “Família Substituta”. Em termos de Família Substituta, temos as seguintes subseções: “da Guarda”, “da Tutela” e “da Adoção”.
O artigo 28 do estatuto assim esclarece: “A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei”. A razão de ser da lei é o melhor interesse do menor que, não podendo permanecer com seus pais, ficará com terceiros.
Isso significa que a colocação em família substituta é um passo que antecede a adoção? Não necessariamente, pois a guarda dada a terceiro pode ser simplesmente provisória para que os pais voltem a ter a guarda dos filhos em havendo mudança de condições pessoais. É o caso de pai e/ou mãe viciado em tóxico que, momentaneamente, não podem ter os filhos em sua companhia. O juiz pode, suspendendo o poder familiar, fixar a tutela ou, sem a suspensão, fixar a guarda em favor de terceiros.
Guarda e tutela, no estatuto, não indicam provisoriedade ou medida preparatória para adoção. As regras simplesmente dão concretude ao melhor interesse da criança e do adolescente preconizado na Constituição Federal.
Há quem afirme que se não há diferença de causas: a guarda do Código Civil se aplica em razão do poder familiar e a do estatuto em caso de perigo/ofensa, pois é medida protetiva (Flávio Tartuce e Salomão Resedá Filho). Assim, as causas diferentes gerariam institutos diferentes. Aliás, frisa Tartuce que, anteriormente, o estatuto utilizava o termo “infante exposto”.
O fato de a guarda do Código Civil ter por causa o poder familiar, e a do estatuto a proteção da criança, significa que existem duas guardas? A resposta é negativa, pois o conteúdo da guarda é único: ter o menor em sua companhia, cuidado, convivência.
Aliás, a obrigação pode ter por fonte o ato ilícito ou o contrato (assim como a guarda pode ter por causa o poder familiar ou o perigo/ofensa ao menor), mas estruturalmente falamos de obrigação e não de duas modalidades.
Outro argumento possível, para que se diferenciem “as guardas”, lembrado por Flávio Tartuce, é que a guarda do estatuto é provisória, e a decorrente do poder familiar, não. Salomão Resedá Filho fala em “guarda precária”.
O efeito da transitoriedade não cria dois institutos. Lembro que os alimentos provisórios (fixados em decorrência da Lei de Alimentos 5.478/68) não são categoria autônoma se comparados aos alimentos fixados de maneira definitiva. Se é verdade que o valor pode modificar quando da produção de provas, estruturalmente temos “alimentos”, na modalidade provisórios, provisionais ou definitivos. Logo, temos uma guarda em duas modalidades: definitiva e provisória.
Outro argumento trazido por Salomão Resedá Filho é que a “guarda do Código Civil é a regularização de um dos elementos do poder familiar que seria a permanência da criança/adolescente na companhia dos pais. A outra é mais ampla, pois poderá ser colocada na guarda de pessoa que não seja pai ou mãe, pois estes podem ser fontes de agressão”.
Efetivamente é essa a razão de ser (causa) da guarda: poder familiar ou perigo ao menor. Contudo, o argumento se inviabiliza quando o próprio Código Civil permite a guarda a terceiros que não os pais. É a redação do parágrafo 5º do artigo 1584:
“§ 5º Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda a pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade”.
Ora, se o Código Civil prevê guarda que não decorra do poder familiar, no melhor interesse do menor, a guarda é evidentemente um conceito unitário, seja ela exercida pelos pais ou terceiros, seja ela precária ou definitiva, seja ela decorrente de perigo ou ofensa ao menor ou de simples observância do interesse deste.
A guarda por terceiros prevista no Código Civil inviabiliza a existência de duas guardas. Há dois diplomas que falam de guarda.
Autores que cuidam do Estatuto indicam a existência de diferenças entre a guarda do Código Civil e do ECA, quanto às razões e efeitos, mas curiosamente não indicam “duas guardas”.
Wilson Donizeti Liberati indica que a guarda cuidada pelo Código Civil não trata de crianças e adolescentes que estão em situação de risco pessoal e social, como faz o estatuto.[4] E mais. O autor trabalha, após cuidar dos dispositivos do estatuto, da disciplina da guarda pelo Código Civil, ou seja, artigos 1583 e 1584 do Código Civil, o que indica claramente unicidade do instituto, apesar de causas distintas e efeitos próprios.
Também Antonio Cezar Lima da Fonseca, ao tratar da guarda, começa por defini-la segundo lição de Edgard de Moura Bittencourt, como algo que não é de conceituação simples, e afirma que ela “é um feixe de obrigações e deveres, pois contém a vigilância, amparo, cuidado, assistência material e moral, resguardo dos filhos (criança ou adolescente)”[5].
Depois inicia a diferenciação dos modelos designando a guarda do Código Civil como familiar e a outra como estatutária. Novamente, a diferenciação se faz pelos efeitos, inclusive na competência do juízo de Família para a primeira e da Infância e Juventude para a segunda. Conclui que “em ambas, prevalece o melhor interesse do menor” e que, “embora possam ser distinguidas, ambas têm sempre em mira a solução que atenda aos princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente (dos filhos)”.
O problema na suposta "dualidade" é exatamente a ausência de definição do que seja guarda. Sem o conceito, a doutrina se perde em seus efeitos e causas.
É comum duas leis cuidarem de um mesmo instituto, conferindo tratamento próprio por conta da especialidade. A locação de imóvel não deixa de ser locação por ser cuidada pela lei especial, mantendo o Código Civil a disciplina do contrato de locação de bens móveis. O Código Civil cuida dos alimentos e a Lei Especial também (5478/68), e nem por isso existem dois institutos denominados alimentos.
Se guarda é convívio, dever de cuidado sem representação, nem assistência por parte do guardião, sendo este o pai ou a mãe, sendo este um terceiro, sendo o menor órfão ou não, a guarda é instituto único, ainda que tratado por duas leis diferentes[6].

[1] Citações a Flávio Tartuce e Salomão Resedá Filho são feitas a partir de um debate virtual por Whatsapp.
[2] Novo Curso de Direito Civil, v. 6, Família, Saraiva, 2016.
[3] SIMÃO, José Fernando. Disponível in <http://www.conjur.com.br/2015-ago-23/processo-familiar-doutrina-guarda-compartilhada-girafas>. Acesso em 20 de julho de 2016.
[4] Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, 12ª edição Malheiros, 2015, p. 42.
[5] Direitos da criança e do adolescente, 3ª edição, Atlas, 2015, p.  153.
[6] No debate virtual, Mario Delgado filiou-se a essa conclusão.
 é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.

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