A jornalista bielorrussa ganhou o Nobel de Literatura por retratar os dramas soviéticos
RUAN DE SOUSA GABRIEL
10/10/2015
EM BUSCA DA VERDADE
Svetlana Alexievich em Lyon, na França, em 2014. O passado soviético é tema de seus livros
(Foto: Ulf Andersen/Getty Images)
O que têm em comum uma jornalista bielorrussa que incomoda hoje o governo de uma ex-república soviética e Winston Churchill, o primeiro-ministro britânico que liderou o Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial? Ambos criaram uma obra literária composta quase exclusivamente de obras de não ficção e, com ela, arremataram o Prêmio Nobel de Literatura. Na quinta-feira, a Academia Sueca anunciou o ingresso da bielorrussa Svetlana Alexievich, de 67 anos, no panteão de escritores laureados com o Nobel. Svetlana escreve livros que escavam as ruínas do passado soviético e expõem os efeitos colaterais da falência do socialismo real.
A jornalista nasceu na Ucrânia e se mudou para a Bielorrússia com a família depois que o pai deixou o serviço militar. No vilarejo onde cresceu, ouvia histórias que as mulheres mais velhas contavam sobre a guerra. Não encontrou histórias como aquelas nos livros e concluiu que seria uma boa ideia escrevê-las. Ao longo de mais de quatro décadas, escreveu poemas, ensaios, peças teatrais e roteiros para cinema. Mas seus livros mais notáveis resultam de um trabalho quase arqueológico. O registro do cotidiano e das memórias de seu povo conquistou os votos da Academia Sueca, acostumada a olhar com mais carinho quem compõe obras fictícias.
O Nobel não era concedido a um escritor de não ficção desde 1953, quando Churchill foi homenageado por sua “brilhante oratória em defesa dos valores humanos”.
Svetlana, que nunca foi editada no Brasil, estava passando roupa em sua casa, em Minsk, capital da Bielorússia, quando atendeu o telefone e descobriu que ganhara o Nobel. “Fantástico!”, disse ela. A Academia Sueca afirmou que os livros da jornalista são “um monumento ao sofrimento e à coragem” e ressaltou o caráter “polifônico” de sua obra. O mesmo adjetivo já foi associado aos volumosos romances do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), nos quais o discurso do narrador não se sobrepõe às vozes dos inúmeros personagens que desfilam ao longo da narrativa. Svetlana recupera essa tradição ao dar voz aos personagens reais que povoam seus livros. A guerra não tem rosto de mulher, o primeiro livro da jornalista, que reúne as memórias de mulheres durante a guerra, não foi bem recebido pelas autoridades, que impediram a publicação. As crianças de zinco, de 1989, apresenta a trágica invasão do Afeganistão pelos soviéticos do ponto de vista das mães dos soldados mortos. Em 1997, publicou seu livro mais célebre, Oração de Chernobil (que, em inglês, recebeu o título de Vozes de Chernobil: crônica do futuro). Durante três anos, ela entrevistou mais de 500 sobreviventes do acidente nuclear de 1986 e transformou em literatura as histórias que ouviu.
O único livro de Svetlana disponível em português é O fim do homem soviético, editado em Portugal. Nele, ela narra a desintegração do homo sovieticus, a identidade formada por décadas de autoritarismo e escassez material. “O homem soviético não desapareceu. Para essa classe de homem, a liberdade é ter 20 tipos de salsicha para escolher”, afirmou a escritora ao receber o Prêmio da Paz dos Livreiros Alemães, em 2013. Svetlana foi perseguida por Aleksandr Lukashenko, presidente bielorrusso que se mantém no poder desde 1994 graças a eleições fraudulentas. O mesmo mérito que agradou à Academia Sueca incomodou o regime: Svetlana até flerta com a ficção, mas seu maior compromisso é com a verdade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário