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sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Festival Indie, em São Paulo, exibe filmes de Kira Muratova, uma das maiores cineastas da ex-URSS


Quase desconhecida no Brasil, onde só teve exibido um de seus trabalhos (Síndrome Astênica, de 1989), a cineasta Kira Muratova possui grande prestígio no Leste Europeu. Hoje com 80 anos, ela anunciou que Eterno Retorno, trabalho de 2012, será o último de sua trajetória, composta por 21 filmes. Onze deles (nove longas e dois curtas-metragens) poderão ser vistos pelo público paulistano durante o “Festival Indie – Mostra de Cinema Mundial”, que acontece no CineSesc até o dia 30 de setembro.


Nascida em 1934 na cidade de Soroca, que faz parte da atual Moldávia, a diretora teve vários longas-metragens proibidos pelo governo soviético, que via seus trabalhos como ameaças burguesas ao Estado.
Até mesmo o governo de Mikhail Gorbachev, responsável pela glasnost - a transição que resultou na dissolução do governo comunista -, proibiu um dos títulos de Muratova (o filme Síndrome Astênica), algo inédito para obras cinematográficas em todo aquele período de abertura.
"Para mim, ela é uma cineasta política mais notavelmente em termos sociais. Seus filmes constantemente mostram um número pequeno de pessoas ajudando umas às outras a se sentirem mais felizes e seguras”, diz o crítico e programador americano Aaron Cutler, curador da retrospectiva de Muratova no Festival Indie.
Em entrevista a Opera Mundi, Cutler falou sobre o contexto político que envolveu a trajetória de Muratova e comentou a respeito da importância de seus filmes para o cinema mundial.
Opera Mundi: Muitos filmes de Kira Muratova tratam de questões cotidianas, como as relações familiares e de amizade. O que havia neles que levou a União Soviética a proibir suas exibições na época de lançamento? De que maneira essas observações sobre elementos micro da vida soviética também podem ser consideradas políticas?  

Aaron Cutler: Muratova não se considera uma cineasta política – nem tão pouco nacionalista, feminista, etc.. Muitos críticos a chamaram de radical e subversiva, mas esse discurso me incomoda. Prefiro chamá-la de amorosa.

Para mim, ela é uma cineasta política mais notavelmente em termos sociais. Seus filmes constantemente mostram um número pequeno de pessoas ajudando umas às outras a se sentirem mais felizes e seguras.
As buscas dos personagens espelham aquelas que Muratova fez em sua vida. O fato de ela ter encontrado muitos obstáculos para trilhar esse caminho deve dizer algo problemático sobre nosso mundo.
Entretanto, assim como os filmes de Charles Chaplin - um artista que ela amou desde criança –, os trabalhos de Muratova constantemente mostram pessoas tentando seguir vivendo com alegria, sempre prontas para enfrentar seus problemas com um sorriso e transmitir esse bom sentimento para os outros.
OM: Qual foi o teor da acusação e o tamanho do período em que Muratova ficou impedida de filmar?

AC: Os primeiros longas-metragens solo de Muratova foram censurados até a glasnost, e houve diferentes pontos entre 1967 e 1987 em que ela foi proibida de realizar filmes, mais notavelmente durante o período entre O Longo Adeus (1971) e Conhecendo o Grande e Vasto Mundo (1978).

Não conheço as justificativas diretas do comitê de censura, mas posso dizer que, em termos gerais, os primeiros filmes de Muratova foram desdenhados e caluniados no contexto público por serem supostamente “burgueses” e darem foco aos problemas emocionais da elite em detrimento dos problemas práticos enfrentados pelo povo.
Essa acusação soa ridícula nos dias de hoje quando vemos os seus filmes, que lidam muito diretamente com as lutas cotidianas enfrentadas tanto por funcionários do governo quanto por pessoas do povo, embora isso seja feito de uma maneira muito mais pessoal do que propagandista - um pouco parecido com os documentários poéticos que Krzystof Kieslowski estava fazendo na Polônia por volta da mesma época que Muratova realizou seus primeiros filmes.
Inclusive, em uma relação curiosa com a São Paulo de hoje, Breves Encontros (1967) — o primeiro longa-metragem solo de Muratova na direção — contém vários momentos em que personagens pobres lamentam a crise hídrica da cidade em que moram.
OM: Quão comum era essa punição para cineastas naquele período na URSS?

AC: Se você pensar em diretores da época da União Soviética que hoje em dia são considerados mestres, facilmente irá perceber que muitos deles tiveram problemas com a censura em pelo menos um de seus filmes. Eu acho que é justo ver as lutas que cada um deles enfrentou para se expressar pessoalmente também como a representação de uma batalha compartilhada, que continuou depois da dissolução da União Soviética.

Muitos grandes diretores, incluindo Muratova em vários períodos, foram efetivamente proibidos de fazer filmes depois da glasnost não por causa da censura política, mas por não conseguirem levantar fundos suficientes para a filmagem e montagem dos trabalhos. A censura econômica é muito menos divulgada que a censura política, e exatamente por isso pode ser mais perigosa.
Mas Muratova superou esses problemas e, engenhosamente, conseguiu fazer várias obras-primas durante as décadas de 1990 e 2000 até o Eterno Retorno (2012), depois do qual ela decidiu parar de fazer filmes e dar prioridade ao tratamento de sua saúde. O período dela pós-glasnost está representado na segunda metade da retrospectiva no Indie.
OM: Conte sobre o episódio do governo Gorbachev com o filme Síndrome Astênica.

AC: Síndrome Astênica (1989) é estruturado como um filme de esquetes, criado pela Muratova através de um processo de associação livre, com um mosaico de personagens cujas histórias estão relacionadas mais tematicamente do que narrativamente. Essa estrutura faz um incrível comentário sobre a natureza efêmera das interações entre pessoas em espaços urbanos.

Perto do final do filme, a personagem de uma mulher com óculos, que até então não havia aparecido, é mostrada sentada sozinha no metrô difamando o marido e o resto do mundo. A cena dura cerca de três minutos, e o comitê de censura queria removê-la por considerá-la obscena.
Muratova não aceitou isso, pois para ela a personagem estava expressando algo verdadeiro sobre a vida, e a sequência seria inclusive mais real se fosse mais longa. Eu acredito que ela estava certa em não cortar. Tendo em conta os fatos que a precederam nas mais de duas horas anteriores de projeção, a cena proporciona uma catarse poderosa, na qual todos os males da humanidade são expurgados antes que um momento de graça aconteça no final do filme.
Por causa da recusa, Síndrome Astênica foi banido por alguns meses antes de ser lançado comercialmente e de ganhar o Prêmio Especial do Júri no Festival de Berlim de 1990. Este foi o único filme soviético censurado durante o governo Gorbachev, e hoje é considerado por muitas pessoas como o filme mais importante de Muratova.
OM: A partir de que momento a obra de Muratova passou a ser apreciada com mais entusiasmo na União Soviética e como isso se estendeu aos dias de hoje?

AC: Até o final dos anos 80, poucos espectadores na União Soviética haviam visto os filmes dela, pois eles estavam oficialmente banidos. O título de Mudança de Destino, trabalho de 1987, traz em si um sinal da liberdade e da exposição que Muratova experimentaria como artista no período pós-glasnost.

Ainda assim, ela foi realista sobre o lugar que os seus filmes poderiam ocupar dentro da cultura popular, mesmo em uma sociedade nova e mais aberta. Alguns dos momentos mais engraçados de Síndrome Astênica (1989) e Eterno retorno (2012) trazem personagens discutindo como o público geral se sente alienado por filmes “artísticos” como os dela.
Apesar de tudo isso, os filmes de Muratova ganharam muitos seguidores apaixonados ao longo dos anos, incluindo um número grande de diretores importantes. Por exemplo, Alexander Sokurov (russo vencedor do Festival de Veneza em 2011 por Fausto) considera Muratova a melhor cineasta viva no mundo hoje em dia, e Sergei Loznitsa (ucraniano que é figura recorrente em grandes festivais) cita Síndrome Astênica como seu filme preferido.
Muratova continua a influenciar o cinema contemporâneo nos países da ex-União Soviética, e até mesmo alguns diretores de fora dessa região. Sua influência durará enquanto os seus filmes continuarem sendo vistos.
Trecho de "Síndrome Astênica":
OM: Há alguma explicação estética/temática que justifique uma maior dificuldade de apreciação do cinema de Muratova pelos ocidentais?

AC: Eu odeio esse tipo de lógica racista na qual a cultura ou a nacionalidade de um cineasta é apontada como culpada pela incompreensão dos espectadores a respeito de seus filmes. Como exemplo desta prática, cito as obras de grandes cineastas como o japonês Yasujiro Ozu e o tailandês Apichatpong Weerasethakul – este último, aliás, terá seu último filme (Cemitério do Esplendor) exibido no Indie.

Muitos dizem que eles são “muito asiáticos”, mas as maiores influências cinematográficas desses dois são de artistas ocidentais. O diretor preferido de Apichatpong é o americano Bruce Baillie, que faz filmes experimentais, e Ozu frequentemente dizia que consolidou seu estilo por tentativas e erros ao imitar clássicos de Hollywood.
De forma parecida, muitas das referências mais preciosas de Muratova são cineastas ocidentais. Ela considera Michael Haneke o maior diretor em atividade; quando criança, os diretores que mais amava eram Robert Flaherty, Federico Fellini e Charles Chaplin.
Certamente a política e a cultura russas e soviéticas são relevantes para os trabalhos de Muratova, mas se você se sentir desconcertado pelos filmes, isso será muito mais devido ao não reconhecimento da linguagem cinematográfica que ela está usando do que por você não conhecer as culturas eslávicas.
OM: O cinema de Muratova deve muito ao legado de Chaplin?

AC: Muratova já disse diversas vezes que o seu filme preferido é Em Busca do Ouro. Chaplin está em todo lugar no cinema dela: o pathos e o humor em particular, junto com o entendimento de que ambos são necessários se você quer ter sucesso em se conectar com as pessoas.

Como em Chaplin, os filmes dela são sempre feitos com empatia com as pessoas que aparecem neles. Ambos veem as pessoas como indivíduos e entendem a individualidade como algo a ser preservado.
Por isso, se você assistir de mente aberta aos filmes da Kira, então você irá entendê-los – eu garanto isso. Ela fala através de seus filmes de um lugar de amor, e qualquer pessoa que fala com amor quer ser entendida.
*Adriano Garrett é editor do site Cine Festivais
Opera Mundi

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