Por Luciana Boiteux[1] *
08/07/2016
Até a segunda metade do século XVIII não se questionava juridicamente a exclusiva decisão da mulher de interromper a gravidez. Surpreendentemente, foi com o Iluminismo que isso mudou, após os anatomistas terem publicado os primeiros tratados com desenhos de embriões e fetos. O embrião (e o feto) que era, até então, visto como parte do corpo feminino, torna-se pela visível desde os primeiros meses de vida. A partir daí se sustenta a concepção moral de separação do feto do corpo da mulher, da qual decorre a criminalização da interrupção voluntária da gravidez.
A proibição do aborto é uma política de controle social da mulher que tem por objetivo retirar dela o domínio sobre seu próprio corpo. Na prática, o seletivo sistema penal tem poucas estatísticas de mulheres processadas por tal crime, mas esta criminalização acarreta a vedação do acesso da mulher (especialmente as mais pobres) a um serviço de saúde. A criminalização do aborto coloca a nós, mulheres, na clandestinidade, e nos submete a intervenções corporais arriscadas e pouco higiênicas, na forma de um antidemocrático controle do nosso corpo pelo Estado.
Para entender esse processo, deve ser compreendido o papel social da mulher na sociedade patriarcal: casar, procriar, parir e cuidar dos filhos. E a mulher que aborta rompe com esse padrão moral. Quem era a mulher a ser controlada quando o aborto foi primeiro criminalizado no Brasil? Possivelmente mãe solteira, cuja criança era fruto de uma relação extraconjugal, mas acima de tudo a criminosa era a mulher que rompia com os padrões sociais patriarcais de e com aquela moralidade subjetiva. No Brasil, a aceitação da maternidade e a submissão ao homem (e ao Estado) era a conduta esperada de todas as mulheres “de bem”, ou “honestas”. Quanto maior a família e o número de filhos, melhor para o patriarcado, não importavam quais eram os anseios daquela mulher. O aborto é visto como um desvio moral, por se opor à ideia tradicional de família e de mulher reprodutora. Por isso passou a ser criminalizado. A mulher que abortava precisava ser controlada.
O aborto já era tipificado no Brasil desde o primeiro Código Penal (1830), o qual não admitia qualquer excludente. No Código de 1890, a lei penal previa a mesma pena para a mulher e para a pessoa que realizava o procedimento. O aspecto moral podia ser identificado na possibilidade de redução da pena se tal delito fosse praticado para “ocultar a desonra própria”, ou seja, no caso de mulheres “honestas” e que abortavam para manter sua honra, estas ainda tinham algum reconhecimento, pois de alguma forma ainda reafirmavam a sociedade patriarcal.
Aliás, faz pouco mais de dez anos (com a Lei 11.106/15) que a expressão mulher “honesta” foi retirada do texto do Código Penal de 1940, o qual originalmente impunha que somente as “honestas” poderiam ser vítimas dos crimes de posse sexual e atentado ao pudor mediante fraude (artigos 215 e 216). Já as mulheres “desonestas”, solteiras, descasadas, putas, de moral questionável, não eram consideradas dignas de proteção da lei penal (nem reconhecidas como vítimas de estupro). Essa expressão “honesta”, nas palavras de Nelson Hungria, no século passado, significava “não somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigido pelos bons costumes”.[2]
O direito penal como mecanismo formal de controle dizia proteger a mulher “decente” da violência sexual pelo bem jurídico “costumes”, ou seja, a moral. No caso de estupro, pelo Código Penal de 1940, se uma vítima se casasse com seu estuprador, ou com outro homem que aceitasse a sua “desonra”, o crime era extinto, pois a vítima já estaria “reparada” por tal medida.
Pois bem, esse mesmo Código, que originalmente distinguia a mulher “honesta” da “desonesta” (possibilidade excluída em 2015), ainda criminaliza o aborto com a mesma redação de 1940, uma das mais severas e anacrónicas legislações sobre o tema em todo o mundo.
Paralelo à previsão legal de crime, e em decorrência disso, estima-se que cerca de um milhão de brasileiras optem anualmente pela interrupção da gravidez, arriscando-se não só a serem presas, mas também a precárias instalações, correndo risco de vida. Não obstante, mesmo os já limitados casos de aborto legal (vida da gestante, estupro e feto anencéfalo)[3] estão sendo ameaçados no parlamento brasileiro mais conservador dos últimos tempos.
Em que pesem as grandes conquistas das mulheres e a emancipação feminina, continuamos como brasileiras sendo regidas por uma lei penal de 1940 que criminaliza o aborto, redigida antes da revolução sexual, da pílula anticoncepcional, da lei do divórcio (1977), e 48 anos antes da Constituição Democrática de 1988. Isso não é aceitável, sendo a criminalização do aborto um atentado à saúde da mulher e a seus direitos reprodutivos, portanto inconstitucional.
O Brasil se situa dentre os países mais retrógados e conservadores ao criminalizar mulheres que praticam aborto. Por outro lado, no mundo considerado “desenvolvido[4], os direitos reprodutivos das mulheres são amplamente garantidos, assim como o acesso ao aborto legal e a métodos contraceptivos.
Mais recentemente Portugal, um dos últimos países europeus a criminalizarem mulheres por tal motivo, em plebiscito realizado em 2007 descriminalizou o aborto voluntário realizado até 10 semanas, e regulamentou sua prática, prevendo um prazo mínimo de reflexão de três dias. Como resultado, não houve aumento de abortos realizados legalmente, pelo contrário, 2015 foi o ano com o menor número de interrupções de gravidez realizadas.[5]
Na mesma linha está o nosso vizinho Uruguai, que descriminalizou o aborto em 2012, por livre vontade da gestante até a décima segunda semana, sendo o procedimento oferecido pelo sistema público de saúde, igualmente prevendo um tempo de reflexão prévia de 5 dias. Lá também já se nota vertiginosa redução do número de mortes maternas.
No Brasil, estima-se que 7,4 milhões de brasileiras já fizeram pelo menos um aborto, a maioria delas em condições precárias, e o próprio Governo Federal, em relatório elaborado para o evento “Pequim + 20”, reconheceu que o aborto é o quinto maior causador de mortes maternas no Brasil.
Apesar de a revolução feminista ter alcançado grandes conquistas, é mais do que urgente avançar na efetivação dos direitos reprodutivos da mulher e no reconhecimento de seu direito ao próprio corpo no Brasil por meio da legalização do aborto. A manutenção de tal conduta como crime em pleno século XXI é uma excrecência.
Há muito o que avançar nessa pauta. Temos que romper com a concepção tradicionalista e patriarcal que ignora a mulher e impõe o controle do Estado sobre o corpo feminino ao considerar a interrupção voluntária da gravidez como crime contra a “vida”. Na verdade, é a criminalização do aborto que atenta contra a vida de tantas mulheres brasileiras. A luta feminista pela legalização do aborto é pela cidadania e democracia das mulheres. Sem isso, não avançaremos na pauta feminista no Brasil. Apesar das dificuldades, essa luta tem que estar na rua e nos debates políticos. Apesar dos conservadores e falsos moralistas, amanhã será outro dia.
* Luciana Boiteux é Professora de Direito Penal e Criminologia da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.
[1] Com a colaboração de Vivian Doimo Marques de Souza.
[2] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v. 8, 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 139.
[3] Por força de recente decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal. na ADPF 54.
[4] Na América do Norte, Europa e Oceania, atualmente, apenas a Irlanda, Andorra, Malta e San Marino ainda proíbem que mulheres realizem aborto voluntário até 12 semanas. Por outro lado, na América Latina, a descriminalização do aborto só é admitida pelas Guianas e pelo Uruguai.
[5] DIREÇAO GERAL DA SAUDE (PORTUGAL). DIREÇAO DE SERVIÇOS DE SAUDE E PROMOÇAO DA DOENÇA. Relatório dos Registros das Interrupções da Gravidez. Dados de 2014-junho 2015.
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