Na direção, Darren Aronofsky não consegue sustentar suas escolhas mais arriscadas
por Virgílio Souza
25.set.2017
⚠️ AVISO: Contém spoilers
Com base na repercussão após a estreia no Festival de Veneza, na rejeição imediata de parte do público no circuito norte-americano e nos comentários apaixonados e enfurecidos distribuídos internet afora, parece inevitável que “mãe!” siga acompanhado por discussões acaloradas até o fim dos tempos.
Mais especificamente, é possível antecipar que muitos cinéfilos continuarão se debruçando sobre todo e qualquer material disponível para extrair interpretações cada vez mais detalhadas sobre o filme. Mesmo durante o período de divulgação, foi sobre isso — teorias e alegorias — que falou, na maior parte do tempo, o diretor Darren Aronofsky.
Na sala de cinema, é inegável a sensação de que se trata de algo estranho e difícil de descrever. O impacto inicial, positivo ou negativo, está ali, e não depende de uma linha de pensamento específica. Os caminhos possíveis para embarcar na jornada são muitos e vão da narrativa bíblica à visão daquela casa como representação do planeta, destruído pelos homens e suas convicções, várias delas fundadas em ideais religiosos.
O MODO COMO ARONOFSKY ENQUADRA O PRIMEIRO TRECHO DO LONGA REVELA ALGUNS DE SEUS INTERESSES ANTIGOS
Ao menos no início, porém, tais alegorias existem por trás do drama relativamente simples de um casal em crise. Ele (Javier Bardem) é um escritor que sofre de bloqueio criativo após publicar uma obra aclamada. Já ela (Jennifer Lawrence), anos mais jovem, busca cuidar da casa onde vivem, a despeito do distanciamento constante do marido. Suas preocupações são distintas desde então, e o contraste entre elas se torna irreversível a partir do momento em que visitantes chegam para levar embora o que havia sobrado de harmonia do lar.
O esquema não é exatamente convencional, mas passa longe de ser inédito. O modo como Aronofsky enquadra esse primeiro trecho do longa revela alguns de seus interesses antigos, muitos dos quais aparecem em outros trabalhos com o diretor de fotografia Matthew Libatique — sobretudo em “Cisne Negro”, que rendeu indicações ao Oscar para ambos. Ao se voltar para o estado psicológico da protagonista, a dupla emprega recursos familiares, como seguir a jovem pelos corredores e encarar seu rosto sempre de perto, sem deixar escapar um respiro sequer.
ARONOFSKY PERMITE QUE O PÚBLICO REAJA TAMBÉM EM PRIMEIRA PESSOA ÀS INTERVENÇÕES EXTERNAS QUE COMEÇAM A SE ACUMULAR
A estratégia tem sucesso moderado. Embora esse trecho não seja, em definitivo, o responsável por afastar o público, a construção da relação entre os personagens principais é provavelmente a peça mais frágil do quebra-cabeças de Aronofsky. Seu modo de filmar direto, quase incisivo, até consegue estabelecer com facilidade as principais dinâmicas que se desenrolam dentro daquele espaço particular, isolado do mundo como o conhecemos: ela repara as paredes descascadas, ele caminha de um canto para outro à procura das palavras certas. O problema é que a história que serve de base para as tão debatidas metáforas perde fôlego logo que começa a se repetir — muito porque a direção também se repete, concentrada demais no próprio discurso para se preocupar com os aspectos mais mundanos da trama.
De todo modo, a chegada de um homem (Ed Harris) e, depois, de uma mulher (Michelle Pfeiffer) faz com que coisas novas e inesperadas passem a acontecer, e isso reacende o interesse nos acontecimentos em tela. É aí que o estilo do diretor-roteirista rende os melhores resultados. Ao posicionar o espectador junto da protagonista, reduzir os personagens a arquétipos e tirar da equação qualquer explicação detalhada sobre o que se passa ali, Aronofsky permite que o público reaja também em primeira pessoa às intervenções externas que começam a se acumular.
A DIREÇÃO SEMPRE SE VOLTA PARA SUA PROPOSTA MAIS AMPLA DE CONSTRUIR UMA GRANDE ALEGORIA, EM VEZ DE ASSUMIR UM GÊNERO ESPECÍFICO
Assim, cada entrada em um cômodo e cada diálogo são acompanhados de um choque. À medida que a tensão aumenta, o filme passa a incorporar elementos mais próximos do terror: uma rachadura no piso começa a sangrar, uma espécie de órgão é mandado descarga abaixo e sons distorcidos ganham volume na trilha. A direção, no entanto, sempre se volta para sua proposta mais ampla de construir uma grande alegoria, em vez de assumir um gênero específico.
Tudo, seja um ato de agressão ou uma frase dita de passagem, vira veículo para uma discussão maior, e aí as relações entre o que existe na superfície e seus correspondentes metafóricos variam entre o criativo (um encanamento rompido simboliza o dilúvio), o banal (o ciúme entre dois dois irmãos é, obviamente, uma recriação de Caim e Abel) e o rasteiro (a referência ao sacrifício de Cristo talvez seja, no pior dos sentidos, um momento definidor na carreira de Aronofsky).
Isso não significa dizer que o diretor esteja indeciso ou perdido na função. A ideia de emular um pesadelo (ou “um sonho febril”, como ele descreve a experiência de escrita do roteiro) realmente se concretiza perto do desfecho. A essa altura, porém, o espectador menos envolvido nas metáforas religiosas e/ou ambientalistas que permeiam a história do casal já se perdeu pelo caminho — sem conseguir imaginar que o terço final seria ainda mais maçante nesse sentido.
ARONOFSKY DECIDE ESPALHAR PELO CAMINHO UMA SÉRIE DE QUESTÕES ATÉ ENTÃO INÉDITAS A PARTIR DE UMA ÓTICA QUE JAMAIS FICA CLARA
Quando o filme finalmente acelera o ritmo, o desconforto dá lugar à velha mão pesada de Aronofsky, mais brusca e literal do que nunca. O que antes fazia referência a “O Bebê de Rosemary”, pelo caos que se instala aos poucos no ambiente, agora faz a cena mais aguda de “Pi” parecer brincadeira de criança pela forma drástica, quase sádica, com que a violência toma conta. Para tornar tudo ainda mais problemático, o diretor decide espalhar pelo caminho uma série de questões até então inéditas a partir de uma ótica que jamais fica clara.
A impressão é que seu interesse nesses aspectos secundários, que na prática servem de acessório para a alegoria central, existe apenas na superfície. Como consequência, a opção por essa abordagem tão autoimportante enfraquece o conjunto, tornando gratuito o que deveria ter peso — o trecho em que o foco se vira para o militarismo é particularmente espantoso. No fim das contas, embora “mãe!” se esforce para transmitir significados complexos de maneira original e sem concessões, seu aspecto mais revelador é mesmo a dificuldade de ir além do choque.
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