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terça-feira, 7 de agosto de 2018

A falácia da mulher neutra e universal – Interseccionalidade, já!

Simony dos Anjos
Quinta-feira, 2 de agosto de 2018
Acabo de voltar da Festa Literária Internacional de Paraty onde vivi momentos incríveis. A possibilidade de assistir a lançamentos de livros de pessoas queridas e potentes, como Jarid Arraes – com seu lindíssimo Um buraco com meu nome; presenciar o lançamento da coleção Feminismos Plurais, coordenada por Djamila Ribeiro, com autores tão formidáveis; ver tantos espaços alternativos ao mainstream como a Casa Insubmissa de Mulheres Negras, a Casa da Porta Amarela, dentre outras ações que forçam o mercado editorial a se mover, a se abrir e a se adaptar a essa nova realidade, foi extremamente forte!

Ainda mais quando, dentre os livros mais vendidos, há uma autora negra do quilate de Djamila Ribeiro (o segundo e o terceiro lugares ficaram com “O que é lugar de fala?” e “Quem tem medo de feminismo negro?”, respectivamente), ficando logo atrás de Hilda Hilst – a homenageada da festa. Essa nova realidade posta no mercado editorial, mostra nossa força e que estamos no caminho certo!
Contudo, essa experiência potente e esperançosa não é suficiente, senão apenas o começo. Sabemos que o mercado editorial é cruel com as mulheres, pouquíssimas conseguem espaços nas prateleira das maiores livrarias, outras poucas conseguem ser publicadas por editoras de médio porte. E, por isso, a maioria das mulheres, hoje, é publicada por editoras alternativas.  E na necessidade de se criar alternativas ao mercado fechado das editoras, muitas ações auto-organizadas nascem.
Eu mesma participei de uma ação desta que iniciou-se pós FLIP de 2016: O Mulherio da Letras. Dediquei muita energia nesse coletivo, por acreditar que é necessário criar meios de nos conhecermos e nos apoiarmos em nossas carreiras de escritoras. Contudo, houve um entrave que fez com que eu sentisse o desejo de me desligar desse coletivo e, publicamente, fazer uma crítica dura e necessária, objetivando a reflexão por parte não apenas deste, mas de todos os coletivos que se reivindicam como resistência. 
Em abril de 2017, houve uma reunião do Mulherio da Letras em São Paulo, cujo objetivo era construir o encontro que ocorreria em João Pessoa e começar a dar corpo ao polo paulista do coletivo. Foi nesse evento que houve a primeira denúncia da ausência de mulheres negras, indígenas, trans, lésbicas, enfim, havia apenas um perfil de escritora no evento: brancas heterossexuais. E, desde então, fizemos um esforço enorme em trazer para o coletivo a importância da interseccionalidade e de como é necessário buscarmos outras possibilidades de escritoras para além daquelas que o mercado já conhecia, embora mesmo à essas não desse lugar.
Houve muita resistência e o principal argumento para não recuar no que se diz respeito à necessidade de abarcar a diversidade foi o velho jargão “as pautas identitárias vão nos dividir”. Ainda, assim, permanecemos batendo na tecla da interseccionalidade, justamente por acharmos que o coletivo era potente. Ora, uma iniciativa de mulheres escritoras, com selo próprio de publicação, era revolucionária. Havia uma equipe muito boa que construiu um site muito interessante, com vários textos de mulheres diversas. Fui à João Pessoa e ministrei uma oficina chamada “Mulherio Interseccional” que objetivava fazer a crítica urgente e necessária: a importância de romper com a universalização da categoria mulher e dar a entender que não basta nos reconhecermos enquanto gênero mulher se não percebermos que a categoria mulher é diversa e existem muitas de nós que nunca tiveram oportunidades por conta da invisibilidade social da qual são vítimas.
Ou seja, se o coletivo não leva em consideração que existem mulheres escritoras negras, indígena, LBT+, ele não notará a ausência delas e se sentirá satisfeito em publicar mulheres, sem se dar conta que deixou de fora tantas outras possibilidades de existências. 
Em O que é Lugar de Fala? Djamila Ribeiro diz que o:
Grande desafio que o feminismo hegemônico viria a enfrentar: a universalização da categoria mulher. Esse debate de se perceber as várias possibilidades de ser mulher, ou seja, do feminismo abdicar da estrutura universal ao se falar de mulheres e levar em conta as outras intersecções, como raça, orientação sexual, identidade de gênero, foi atribuído mais fortemente à terceira onda do feminismo, sendo Judith Butler um dos grandes nomes atual.[1]
E, de fato, foi esse o maior obstáculo do Mulherio e que, infelizmente, não conseguimos superar. Setores majoritários do coletivo não se deram conta de que somos diferentes, partimos de lugares diferentes e devemos ter um olhar crítico para essa realidade, possibilitando, assim, que escutemos umas às outras e, de fato, respeitemos o protagonismo das mulheres diversas. Na prática, o processo foi de não aceitação dessas novas possibilidades e a postura de continuar na perspectiva da “mulher universal”, de todas unidas em prol de uma causa, se manteve.
Uma grande falácia, pois não querem somar forças, ao universalizar, querem invisibilizar as diferenças, mesmo que seja inconscientemente.
Eu já havia me desligado desse coletivo, até que na FLIP de 2018 dois casos que ocorreram na Casa do Desejo, me fizeram tomar a decisão de expor essa minha triste experiência, para alertar as pessoas sobre a necessidade de preocupação e respeito com a diversidade, pois sem esse cuidado, não há resistência. A primeira situação tristíssima foi a cena grotesca de racismo protagonizada por José Luiz Goldfarb contra a editora Sara Cristina Trajano. O que me remeteu a uma fala de Conceição Evaristo na Flip de 2016, frente o curador Paulo Werneck, na qual ela denunciava a ausência de negros na programação principal. Dois anos depois, com forte presença de negros tanto na programação, quanto na organização, temos esse caso de racismo.
Em outras palavras, o mercado está sendo forçado a nos receber, mas nos subestima e desrespeita. Repito, o cuidado com a diversidade é o cuidado de respeitar o trabalho, a presença e o protagonismo das minorias sociais.
O segundo caso que me motivou a escrever esse texto foi protagonizado pelo coletivo Mulherio das Letras. O Mulherio editou uma bela coletânea em homenagem à Marielle, chamada Um Girassol nos teus Cabelos, que contou com algumas autoras negras. No momento do lançamento, as mulheres negras reivindicaram uma homenagem à Marielle e foram silenciadas; “não havia espaço na agenda da programação”. Um absurdo, pois como se lança um livro em homenagem à Marielle, negra, lgbt, mãe e não se permite que mulheres negras façam uma devida homenagem? Ou seja, não foi pensado um momento de fala para as mulheres que deveriam protagonizar o lançamento. Afinal, o que ocorreu com a Marielle, ocorre conosco diariamente. Somos assassinadas, nossos corpos são mortos e nossas vozes silenciadas.
Por isso, venho publicamente dizer que, esse coletivo que tem tantas boas intenções em resistir às hostilidade do mercado editorial, se não se preocupar e cuidar da Interseccionalidade, ou seja, se não entender que temos que dar visibilidade a cada uma que reivindica fala e espaço para manifestar-se, será mais do mesmo. Um movimento que se pressupõe autônomo, anárquico, sem lideranças e quer dar oportunidade às mulheres não pode continuar reproduzindo estruturas racistas. Em outras palavras, qualquer coletivo ou movimento que acha que pode resistir às injustiças sem entender que a luta deve ser com base na interseccionalidade, nunca será, de fato, um movimento de resistência.
Assim como no feminismo hegemônico, muitos movimentos falam que o espaço está aberto, que é só chegar e somar, porém, não aceitam nossas ideias e não nos deixam protagonizar.
São movimentos que desejam bibelôs estáticos, para deixarem suas consciências tranquilas no que tange a “contemplar a diversidade”, mas não querem de fato se mover, repensar suas atitudes, desconstruir sua noção autorreferenciada de ser humano neutro e universal.
Não, a mulher não é categoria única, dentro do gênero mulher existe uma infinidade de possibilidades de existência que o Mulherio se recusa a aceitar e para as quais eu desisti de alertar, não somo com quem não quer se mover e repensar seus privilégios.
O caso do Goldfarb é um excelente exemplo de como o imaginário da branquitude atua:
Trazemos algumas pessoas negras para nossos eventos, agimos de acordo com o politicamente correto, mas não permitimos que essas pessoas mexam nas estruturas hierárquicas: serão mobílias que darão ao nosso evento o tom da diversidade.
Contudo, cara branquitude-heteronormativa-burguesa, a diversidade existe e não será conivente. Estamos aí para incomodar e denunciar que não existe mudança, se as estruturas machistas-racistas-homofóbicas da sociedade, de fato, não se mexerem. Não existe resistência sem mudança estrutural das relações de poder entre gênero, nas relações étnicos-raciais e nas questões que tangem a sexualidade.
No final do livro Sejamos todos feministas, Chimamanda Ngozi Adiche diz que uma pessoa que quer mudanças sociais pensa da seguinte forma: “Sim, existe um problema de gênero [relações étnicos-raciais] e temos que resolvê-lo, temos que melhorá-lo.”.  E Chimamanda, ainda, completa: “Todos nós, mulheres e homens, temos que melhorar.” Assim, caras ex-companheiras de coletivo, temos que melhorar e isso tange a mim e a vocês, também. Juntem-se, de fato, a nós pela luta antirracista, contra o machismo e todas as formas de opressões. Lutemos pelo Bem Viver sabendo que essa luta exige interseccionalidade, já!
Simony dos Anjos é graduada em Ciências Sociais (Unifesp), mestranda em Educação (USP) e tem estudado a relação entre antropologia, educação e a diversidade.

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