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terça-feira, 7 de agosto de 2018

O tabu do incesto e as inúmeras revitimizações de suas meninas

K., V., A., A. e P., meninas que cruzaram o meu caminho: quisera eu conseguir reconstruir o mundo para vocês…este texto é para vocês e por vocês, como símbolos que são da luta por um mundo menos violento e patriarcal… 
Justificando
2 de agosto de 2018
 No exercício da jurisdição de Infância e Juventude, situações às quais nenhum Código traz resposta são uma constante. Lida-se com o extremo diariamente, muitas vezes se alcançando algum possível encaminhamento apenas por meio de um misto de criatividade com empatia por parte dos atores envolvidos no processo judicial. Dilemas agudos surgem, por exemplo: deve-se permanecer investindo na família natural quando pais viciados em crack/álcool, que possuem vínculo afetivo com os seus filhos, ininterruptamente têm por mal sucedidos os tratamentos de saúde? 
A agudeza das dificuldades alcança um nível inimaginável nos casos de menores de idade vítimas de incesto. A cortar os nossos corações seguidamente e a despertar uma profunda ânsia de acolhê-las e de reverter o seu futuro, devemos afirmar publicamente, e em uma fuga do silêncio que o tabu impõe, que esses fatos estão presentes de modo contínuo na jurisdição – o que por si só já justificaria um tratamento mais rotineiro do tema.
Em geral, as pessoas evitam o tema-tabu, pois a preocupação em não aumentar o sofrimento das vítimas, aliada ao constrangimento que lhe é ínsito, pairam sobre o ar. Mas nós devemos dar voz a esse assunto. Falar de qualquer estupro, de qualquer abuso sexual, é extremamente difícil para as vítimas. A humilhação e a fragilidade psicológica, em uma injusta mistura com a vergonha, bloqueiam a capacidade de pedir ajuda, de colocar o horror em palavras e de superar o fato de ter sido vista e tratada como um objeto – e, assim, de lhe terem sidos violentamente roubadas a dignidade humana e o respeito.
Afinal, naquele momento de violência extrema, o corpo não mais lhe pertenceu, a vítima não mais se pertenceu. Desse árduo quadro psicológico surge uma imensa sensação de solidão, uma vez que a dor sofrida não é de uma espécie que poderá ser apagada e, na maior parte das vezes, não é compartilhável, pelas singulares características de cada estupro ocorrido. A cada tentativa de narrar o inenarrável, vivencia-se novamente a violência sofrida, corriqueiramente se permanecendo com a frustração de não conseguir expor em palavras a dor sofrida.
Crianças e adolescentes ainda não adquiriram a capacidade de comunicação e as defesas psicológicas dos adultos. Imaginem, então, as dificuldades antes mencionadas, em se tratando de vítimas menores de idade, no mais das vezes crianças… e sendo o pai, o estuprador – figura que, jurídica, sociológica e afetivamente, é alicerçada nos deveres de proteção, criação saudável e de fornecimento de segurança aos filhos.
O próprio mundo jurídico cala diante da verdadeira natureza dessas ocorrências, ocultando o seu grave diferencial. “Incesto” não é uma categoria jurídica. Não é um termo presente nos Códigos, seja no Penal ou mesmo na área de família do Código Civil. Em uma intrigante constatação, infere-se que o Direito não possui qualquer expressão para designá-lo. Essa omissão, a quem protege? Qual o seu objetivo? A partir dos nossos valores feministas e de sororidade, temos aqui a coragem de afirmar explicitamente que ela é reflexo do mundo patriarcal, pois a linguagem e o discurso técnico têm sido manipulados para manter a estrutura de opressão e de violência contra as mulheres…
O termo “incesto” foi cunhado no âmbito das ciências humanas – pela Sociologia, Antropologia, Psicologia e Psicanálise –, as quais, como é sabido pelos que as confrontam com o Direito posto, alarga em muito o horizonte de estudo dos fenômenos culturais. O Direito, focando na lei e na jurisprudência, possui meios escassos para abranger tal complexo fenômeno, ainda mais porque encobertado pelo patriarcado. A partir das ciências humanas é que alcançamos as condições de visualizar a estigmatização das mulheres como objetos sexuais que, historicamente, sofremos desde sempre, desde os primórdios históricos. Lastimavelmente, as meninas, mesmo em sua tenra idade, estão incluídas dentre as vítimas… Sim, o sistema patriarcal não poupa nem mesmo as crianças! Veja-se[1]:

“Através dos tempos e nas mais diversas culturas, as mulheres desde meninas, são educadas para responderem às necessidades dos homens e não às suas próprias. Há crenças sexistas de que os homens têm fortes necessidades sexuais e que não podem se controlar, devendo ser  satisfeitos em todas as suas necessidades, mesmo as sexuais, às quais as mulheres (e as crianças) devem atender (Felipe, 1999; Ravazzola, 1997, 1999). Determinadas situações ainda que violadoras das subjetividades e dos direitos das mulheres e das crianças, como o abuso sexual, são suportadas a fim de que a família permaneça ‘intacta’ (Cardoso, 1997a, 1997b).
Os aspectos da cultura adultocêntrica e falocêntrica aparecem, geralmente, associados, legitimando a cultura da violência contra a mulher e contra as crianças e adolescentes, especialmente do gênero feminino (Azevedo & Guerra, 1995; Narvaz, 2002a). Reside também nos deveres de obediência à autoridade paterna a impossibilidade de recusa da menina ao ataque sexual do pai, cuja prescrição de obediência e de zelo pela manutenção da família rouba-lhe a infância e a possibilidade de decidir com quem compartilhar a sua experiência erótica (Azevedo & Guerra, 1999; Felipe, 1999; Ferrari, 2002; Furniss, 1993; Herman, 1991; Narvaz e Koller, 2004a).”

É certo que “incesto” não é termo que se limita à relação pai/filha, referindo-se a uma gama sociológica de fatos sexualmente abusivos intrafamiliares. No entanto, o incesto praticado por pai contra filha é largamente o mais verificado pelas estatísticas, custosamente colhidas[2]:

“Mesmo que ninguém queira acreditar, incesto existe e é o segredo de família mais bem guardado. Ainda que seja um fato subnotificado, sua prática não é insignificante. Basta atentar que somente 10 a 15% dos episódios de abuso são denunciados.
A este dado soma-se outro: 20% das meninas e 5 a 10% dos meninos são abusados sexualmente, o que leva a concluir que os números são assustadores. (…) Outros dados também surpreendem. Em 90% das denúncias, o autor do abusado é membro da família da vítima, é alguém que ela ama ou que conhece e respeita: em 69,6% dos casos, é o pai biológico; em 29,8%, o padrasto; em 0,6%, o pai adotivo.”

 Em suma: empiricamente se percebe que o incesto mais praticado é o de pai contra filha. As nossas meninas são as vítimas preferidas, não encontrando ambiente seguro nem mesmo em sua própria família natural[3]:

“Um fator de concordância em todos os estudos é que, contrariando os alertas de senso comum em relação às crianças sobre o contato com estranhos, geralmente o abuso sexual é praticado por pessoas próximas e conhecidas, principalmente pessoas da família.”

A vivência traumática, por acontecer em um período de construção psíquica e de grande vulnerabilidade, vitimiza-as e revitimiza-as em um ciclo praticamente interminável[4]:

prejudica a imagem que a criança tem de si mesma, que fica distorcida, acarretando baixa estima; a sua visão de mundo e a compreensão de suas capacidades afetivas, por ela estar em uma família de comunicação enviesada e calcada na dupla mensagem e no duplo vínculo, apresentam-se comprometidas; a sexualidade infantil paralisa-se bruscamente por causa da confrontação precoce da criança com a sexualidade do adulto; a precoce exposição a situações sexuais pode levá-la a atitudes exageradamente sexuais (masturbação compulsiva, brincadeiras repetidas de conotação sexual e comportamentos desadaptados, como a utilização da sexualidade para fins manipulativos ou de ganhos, até mesmo a prostituição); a família impõe solidão à criança; há silêncio imposto por ameaças, veladas ou não, ou pela desmoralização da vítima; ocorrem intervenções sociais inapropriadas expondo a sua intimidade, convivência forçada com o abusador, sentimento de extremo desamparo e impotência; o evento traumático pode permanecer em sua mente até a terceira idade, apresentando-se como obstáculos intransponíveis, favorecendo a perpetuação das sequelas do abuso; situações que, por mulheres saudáveis psiquicamente, normalmente são encaradas como integrantes do ciclo de vida, sem maiores traumas, transfiguram-se em particularmente estressantes às meninas-vítimas de incesto (iniciação sexual, demais experiências sexuais, constituição da própria família, nascimento de filhos); futuramente pode haver inversão dos papéis de filho/filha para o de pai/mãe, o que provoca a interminável reatualização dos conflitos familiares; a hierarquia laboral, que reedita situações de dependência e de submissão, pode igualmente reeditar o fato traumático.
Ademais, os mecanismos de defesa e de reconstrução da personalidade normalmente se apresentam insuficientes para dar conta da vivência traumática, em decorrência da pouca idade e da fragilidade resultante do trauma, de modo que é comum surgirem questões psiquiátricas. Alguns distúrbios são notadamente verificados entre vítimas de incesto[5]:

depressão, inclusive a intensa; risco de suicídio elevado; ansiedade patológica, envolvendo angústias, fobias etc.; sentimentos de ódio, culpa e nojo; distúrbios alimentares (obesidade, anorexia, bulimia), implicando regressão à oralidade, uma vez que a genitalidade se apresenta como fonte de intensas angústias; prejuízo à maturidade sexual, de que resulta um desenvolvimento desarmonioso da sexualidade e em dificuldades para poder usufruí-la plenamente, com diminuição do próprio valor sexual e possibilidade de fobias, dispareunias, bloqueio sexual, promiscuidade, prostituição; grande indisponibilidade de envolvimento afetivo-sexual (contraposta à promiscuidade), pela falta de confiança e de segurança no parceiro; por causa da dificuldade em ligar-se afetivamente, quando isto ocorre e depois se tem um rompimento, a elaboração da perda é muito mais complexa e demorada; maior disponibilidade em ser revitimadas na idade adulta, devido à fragilidade de suas defesas psicológicas face às investidas sexuais; tendência a comportamentos antissociais, que implicam atitudes delinquentes e envolvimento com grupos marginais, como expressão de uma paradoxal  segurança, por não terem as imagens parentais desempenhado satisfatoriamente seus papéis e por um acerto de contas com o passado para se adequar ao presente; uso de drogas, que deve ser considerado como uma tentativa de automedicação; uniões instáveis com companheiros inadequados, violentos e/ou abusivos; maior suscetibilidade de que seus filhos/as sejam expostos a tais situações de abuso sexual, repetindo-se-o de forma transgeracional.  

De acordo com Gauthier[6], há uma diversidade de circunstâncias, deveras  comuns, que apenas pioram o prognóstico e um saudável futuro às vítimas. Citam-se as seguintes:
problemas familiares precedendo ao abuso; abusos repetitivos, por um período longo de tempo; abuso cometido por meio da força física ou de ameaças; criança com baixa idade; abuso cometido pelo pai natural; intensidade das ameaças meio isolado, pouco rico em relações; ambiente não propício à revelação e família pouco acolhedora; falta de discrição e exposição, inclusive à mídia; revelação não levada em consideração e desmentida da vítima; multiplicidade de interventores; demora para se tomar decisões que impeçam o abuso; multiplicação de exames físicos na vítima; retirada da escola e da sua própria situação de vida; retorno do abusador ao domicílio da criança; convivência com o abusador, forçada pela família; comparecimento da criança a tribunal.
Entretanto, o objetivo deste texto não é apenas falar do passado das vítimas e da covarde violência sofrida. Sim, covarde violência! A disparidade entre estuprador e vítima no caso de incesto envolvendo meninas é a mais alta de que se possa cogitar em qualquer crime: relevante diferença de idade, de força física e de papeis dentro da família, bem como inegável subjugação pelo gênero.
O nosso objetivo principal é registrar aqui que o olhar de sororidade, o qual gostaríamos que todos abraçassem, mira para o futuro delas e quer proativamente auxiliá-las a sair do espectro niilista do “não ser nada” e “nenhum futuro ter”.
Estamos abertas, como juristas ativistas, à discussão e à proposição de encaminhamentos dessas menores, pois, não bastasse o auxílio que lhes deve ser dado em razão do quadro fático e psicológico até aqui delineado, elas veem-se furtadas da possibilidade de ter uma família, porque de regra ou são silenciadas, ignoradas e rejeitadas pela sua família originária, ou, quando retiradas judicialmente desta, não são aceitas por nenhuma outra, visto que o tabu do incesto obstrui o interesse por elas por parte de famílias acolhedoras, substitutas ou pretendentes à adoção.
Devemos trabalhar conjuntamente discutindo o porquê dessa negação em aceitá-las, com vistas a superar as dificuldades das famílias brasileiras (sejam as interessadas em guarda/adoção de menores ou mesmo as demais), pois o problema, na condição de absoluta prioridade que são as crianças e adolescentes, demanda o engajamento da sociedade como um todo.
Na unidade da alma feminina, que com as meninas vítimas de incesto sente, chora e luta, desejamos-lhes do mais íntimo dos nossos seres que esse passado não lhes enclausure na dor objetificante, fechando-lhes as portas para qualquer futuro. Queremos o resgate das suas vidas e das suas autonomias, com a retomada das rédeas do seu corpo e da sua psiquê. Lutaremos para alçá-las a outro espaço e posição que não o de vítimas constantemente revitimizadas, às quais apenas a revitimização surge como possibilidade.
Lutaremos na nossa vida particular, nas nossas profissões e nas nossas vidas públicas para que a infância que lhes foi roubada não necessariamente signifique o roubo de suas vidas como um todo. Lutaremos, de braços dados, para ressignificar as suas vidas, tornando-as símbolos de uma luta que devemos abraçar e da qual não podemos desistir!
Assim, fica aqui o convite não só para falarmos clara e abertamente sobre o tema do incesto de pai contra filhas, mas também para acolhermos essas meninas-vítimas e construirmos, todos juntos, os seus novos futuros.

Uda Roberta Doederlein Schwartz, juíza de Direito/RS – Comarca de Bom Jesus, AJD, Mãe da Vitória e da Marina

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