Atividades contribuem para o debate sobre disparidade de gênero na academia e mudam percepção pública sobre o papel feminino na pesquisa
14 DEZ 2018
EDIÇÃO DE IMAGEM
Desde pequena, Rafaela se interessava por ciência. Gostava de assistir a programas de televisão sobre animais, lia sobre o assunto, visitava museus e fazia experimentos com as plantas de sua mãe. Rafaela soube cedo quem foram Darwin, Lamarck, Cuvier e Einstein, grandes cientistas homens e estrangeiros. Mas ela se perguntava: onde estavam as mulheres? A pergunta começou a ganhar algumas respostas quando ela assistiu ao filme Na montanha dos gorilas (Gorillas in the mist), sobre a antropóloga americana Dian Fossey, que se dedicou à conservação dos gorilas em Ruanda, África, na segunda metade do século XX. O modelo da pesquisadora em campo emocionou Rafaela e a fez perceber que as mulheres estavam na ciência e que ela também poderia estar um dia. Hoje, Rafaela Falaschi é pesquisadora na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no Paraná, e estuda a diversidade e evolução de insetos.
O exemplo de Rafaela demonstra a importância que a representatividade tem para a identificação feminina com o papel de pesquisadoras. Filmes, desenhos animados, páginas em redes sociais e modelos de cientistas na imprensa são ferramentas de grande importância para a desconstrução do viés de gênero na ciência, favorecendo tanto o ingresso quanto a permanência de mulheres na carreira científica. Nos últimos anos, projetos que destaquem a participação feminina na ciência e na divulgação têm crescido em visibilidade. É o caso da página “Nina desenha cientistas” (do inglês Nina draws scientists) no Instagram, que ilustra pesquisadoras atuais ou historicamente famosas, e conta com mais de cinco mil seguidores. Recentemente, a página também tem ilustrado cientistas engajadas em divulgação científica, como é o caso da bióloga Danni Washington, que advoga a favor de temas de biologia marinha nas mídias sociais. Outro exemplo emblemático foi o lançamento do filme Estrelas além do tempo, em 2016, abordando um grupo de mulheres negras que trabalhou na Nasa no início da década de 1960 e teve contribuição fundamental nas pesquisas da corrida espacial.
Mas o campo da divulgação, assim como o da ciência, ainda enfrenta dilemas em termos de representatividade. Desde que começou a trabalhar com comunicação de ciência, a jornalista Paula Penedo percebeu que a divulgação é um campo predominantemente feminino. “As assessorias de comunicação de instituições de pesquisa são formadas majoritariamente por mulheres, os cursos de especialização e mestrado na área têm muito mais alunas que alunos, os professores são, na maior parte, mulheres. Mas, a maior parte dos textos que líamos era escrita por homens, os chefes das assessorias eram homens e os vencedores das principais premiações eram homens", diz ela.
A discrepância apontada por Paula foi tema da pesquisa de Gabrielle Adabo, jornalista que defendeu o mestrado em 2017 na Unicamp investigando a divulgação de ciência feita por mulheres no Brasil. O trabalho de Gabrielle mostrou que mulheres são menos premiadas que homens no Prêmio José Reis de Divulgação Científica, a principal premiação da área no país. São 29 homens premiados e apenas 10 mulheres. Dessas, seis venceram na modalidade Jornalismo Científico, três em Divulgação Científica e uma na categoria Pesquisadora e Escritora. O padrão se repete em premiações internacionais como o Kalinga, prêmio concedido pela Unesco para iniciativas de popularização da ciência. Dos 16 ganhadores nos últimos 20 anos, apenas três são mulheres, sendo que a última premiação para uma mulher ocorreu em 2002. É importante investigar as causas desse padrão. "Pode ser que mulheres sejam minoria em números de participantes inscritos, um dado que não levantei. Mas se for isso, por que elas se inscrevem menos?”, questiona Gabrielle. Segundo ela, nem tudo pode ser considerado desigualdade a priori, mas o questionamento é importante para detectar desigualdades e encontrar meios de combatê-las.
Além da menor representação em altos cargos do jornalismo de ciência e nas premiações, as mulheres também são minoria entre as fontes entrevistadas nos conteúdos de divulgação. Como forma de mudar esse quadro, um grupo de pesquisadoras lançou a iniciativa “Requisite uma cientista”. O projeto funciona como um recurso para que jornalistas, educadores, tomadores de decisão e qualquer pessoa que precise de um especialista de ciência encontrem facilmente mulheres pesquisadoras dispostas a participar de reportagens, conferências e outros eventos midiáticos. A busca pode ser feita por país, cidade, área de estudo e nível de formação. No Brasil já são 208 pesquisadoras cadastradas e Rafaela Falaschi é uma delas.
Paridade no universo acadêmico
O contato entre mulheres cientistas e divulgadoras, que muitas vezes atuam simultanemante nas duas atividades, é essencial na defesa por maior paridade na ciência. Segundo dados da Unesco, as mulheres são minoria no meio científico, correspondendo a menos de 30% dos pesquisadores do mundo. No Brasil, a situação é um pouco melhor: o relatório "Gênero no cenário global de pesquisa", divulgado pela editora científica Elsevier em 2017, mostra que nos últimos 20 anos a proporção de mulheres na população de pesquisadores passou de 38% para 49%. Mas a representatividade geral esconde diferenças importantes entre áreas do conhecimento e etapas da carreira. A presença de mulheres geralmente é maior do que a de homens nas áreas de humanidades e serviço social, tendendo a uma paridade nas ciências biológicas e da saúde. No entanto, quando o assunto são as engenharias, ciências exatas e da Terra, a participação feminina cai abruptamente.
Para Carolina Brito, professora do Departamento de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um dos problemas é que desde cedo meninas não se sentem capazes de ingressar em áreas consideradas mais complexas, como as ciências e, em especial, as ciências exatas. Um estudo recente,publicado na revista Science [vol. 355 (6323): 389-391, 2017], demonstra que vieses de gênero já estão presentes em idades precoces, como 6 e 7 anos de idade. "As meninas crescem acreditando que essas áreas não são para elas. Então a desconstrução desse modelo de que a mulher é uma pessoa esforçada e legal, mas talvez não tão inteligente, tem que ser feita desde muito cedo", diz Carolina.
Conscientes disso, Rafaela e Carolina também atuam em iniciativas de divulgação voltadas para o público feminino. Além do cadastro no “Requisite uma cientista”, Rafaela é co-fundadora do site Mulheres na Ciência, um espaço para que mulheres cientistas contem suas histórias e discutam sua posição no mundo acadêmico. A ideia do site começou com um grupo homônimo no Facebook, criado no final de 2016 como forma de reunir mulheres que trabalhavam com ciência. A inspiração para expandir a ideia veio de uma postagem na qual uma das pesquisadoras pedia indicação de iniciativas de divulgação científica sobre mulheres na ciência para mostrar a uma prima pequena. A dificuldade de encontrar sites e iniciativas especificamente sobre mulheres incomodou Rafaela e sua amiga Laura Prado, que é bióloga e programadora. Juntas, elas decidiram criar o próprio site. "Comprei o domínio, a Laura aluga o servidor e todo o projeto é do nosso bolso. Ainda não temos patrocínio, não temos noção de como fazer para conseguir meios de manutenção do projeto, mas fizemos e, em um mês, o site estava pronto", relata Rafaela. Hoje o site conta com uma equipe formada por mais seis mulheres, a maioria delas biólogas.
A falta de financiamento muitas vezes é uma barreira para a implementação de atividades de divulgação científica e o papel das universidades e de editais públicos é fundamental. Foi o caso do projeto de extensão "Meninas na Ciência", coordenado pela Carolina e por Daniela Pavani, professora da UFRGS. As ações do projeto incluem oficinas de ciências e debates sobre questões de gênero em escolas públicas de Porto Alegre (RS), bem como a produção de filmes para difundir a presença de mulheres em carreira de ciência e tecnologia. Em 2013, o projeto recebeu financiamento por meio de um edital promovido pela Petrobras, em parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e a Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República (SPM-PR).
Para Carolina, o papel de editais institucionais é ser um catalisador de ideias. “A semente do Meninas na Ciência já estava no nosso espírito. Mas um edital como esse te obriga a sentar e escrever o projeto, a montar uma equipe. Ele formaliza o projeto", destaca Carolina. O projeto de extensão da equipe da Carolina conta com o apoio de infraestrutura e bolsas de extensão oferecidas pela universidade, mas a expansão das atividades ainda requer recursos complementares externos. "Neste ano houve um edital análogo ao de 2013, para o qual também submetemos proposta. Esses aportes financeiros são realmente essenciais para nós", diz. Além do “Meninas na Ciência”, Carolina produz o podcast "Fronteiras da Ciência", em parceria com outros dois colegas da UFRGS. O podcast está em sua nona temporada e visa debater temas e processos da ciência, além de estimular o espírito crítico em seus ouvintes.
Independentemente da forma de financiamento, projetos de divulgação são uma maneira não apenas de passar informações para mulheres e meninas, mas também de fornecer modelos e empoderá-las. “Há muitas meninas que estão na escola, que têm uma curiosidade natural, um gosto por ciência, mas que vai sendo minado ao longo do percurso educativo. Então queremos um espaço que atue não só como divulgador de ciência para todos, mas como espaço de empoderamento, para que meninas de graduação vejam exemplos e saibam que muitas dessas inseguranças são construções sociais. Queremos inspirar mães e meninas a batalharem por ciência, saberem que elas podem ser cientistas", explica Rafaela.
Modelos na história
Além do engajamento de cientistas atuais, o resgate histórico de mulheres na ciência é uma das formas de dar evidência a esses modelos. Margaret Mee (1909-1988), ilustradora botânica, e Bertha Lutz (1894-1976), bióloga do Museu Nacional, são exemplos importantes de mulheres que atuaram na pesquisa e também na divulgação. Em seu mestrado na Unicamp, a jornalista Paula Penedo investiga o papel de outras botânicas menos famosas na divulgação científica. A botânica é uma das áreas com maior presença de mulheres na biologia e o debate sobre as razões da maior presença feminina passa pela suposta “delicadeza” da área, que inclui o trabalho com flores e variações de aromas e colorações. Mas este é um estereótipo que a pesquisa da Paula tenta desconstruir. "O dia a dia da botânica não tem nada de delicado, envolve fazer pesquisas de campo em lugares muitas vezes inóspitos, carregar peso, trabalho repetitivo e cansativo nos laboratórios. Então, acredito que a divulgação feita por essas mulheres pode servir para mostrar que elas também estão lá, exercendo trabalho pesado", afirma Paula.
O pioneirismo feminino na divulgação se mistura com o movimento feminista e a luta por direitos políticos e sociais. Em sua pesquisa de mestrado, Gabrielle Adabo também mostrou que no começo do século passado havia dois grupos se consolidando com objetivos distintos entre os pesquisadores brasileiros: de um lado, cientistas preocupados com o desenvolvimento e divulgação da ciência e, do outro, mulheres preocupadas com a luta por direitos políticos e sociais. Com isso, as barreiras impostas por questões de gênero às pesquisadoras brasileiras retardaram seu engajamento em atividades de divulgação. "Acho que é mais ou menos como aquele vídeo que tem circulado na internet que mostra uma corrida de privilégios – cada pessoa que teve um determinado privilégio avança dois passos em relação às outras; as mulheres estavam alguns passos atrás dos homens nessa corrida. Mas elas estavam lá. Hoje vejo muito essa aproximação das mulheres com a divulgação por conta desse papel social e historiacamente constituído da mulher como educadora e da própria aproximação da divulgação científica com a educação", diz Gabrielle.
O movimento feminista tem ajudado a romper a relação estreita entre a atuação das mulheres e o papel histórico de educadoras, trazendo a diversidade do universo feminino à divulgação científica. Um exemplo emblemático é o debate que ocorreu no começo deste ano em torno do trabalho da estudante de doutorado em neurociências Samantha Yammine, que compartilha seu cotidiano de pesquisa com mais de 30 mil seguidores no Instagram. Samantha foi duramente criticada pela colega Meghan Wright, que considera que seu trabalho documenta o estereótipo de mulher bela e bem vestida, mas não contribui tanto para a superação da disparidade de gênero na ciência. A manifestação da comunidade científica mostrou que há espaço para diferentes estilos femininos tanto no meio científico quanto nas formas de se divulgar ciência e que ações midiáticas, artísticas, institucionais e governamentais precisam ser complementares. Apenas com esforços em diferentes frentes, a diversidade e a força da atuação das mulheres na ciência e na comunicação serão devidamente reconhecidas.
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