05.10.2018
O Prêmio Nobel da Paz 2018 foi entregue ao médico Denis Mukwege e à Nadia Murad, por seus esforços contra o uso da violência sexual como uma arma de guerra e conflitos armados.
Mukwege, médico ginecologista, já tratou mais de 30 mil mulheres e meninas vítimas de estupro e violência sexual na República Democrática do Congo. Conhecido como "doutor milagre", ele é um crítico feroz do abuso de mulheres durante guerras e descreveu o estupro como uma "arma de destruição em massa".
Mukwege, médico ginecologista, já tratou mais de 30 mil mulheres e meninas vítimas de estupro e violência sexual na República Democrática do Congo. Conhecido como "doutor milagre", ele é um crítico feroz do abuso de mulheres durante guerras e descreveu o estupro como uma "arma de destruição em massa".
Nadia Murad, de 25 anos, se tornou uma ativista dos direitos humanos yazidis após sobreviver a três meses de escravidão sexual imposta por integrantes do Estado Islâmico no Iraque. Em 2016, aos 23 anos, ela foi eleita embaixadora da Boa Vontade da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Dignidade dos Sobreviventes de Tráfico de Seres Humanos.
"Ambos os laureados têm contribuições cruciais na atenção e no combate destes crimes de guerra, disse Berit Reiss-Andersen, presidente do Comitê do Nobel, enquanto anunciava os vencedores.
"Denis Mukwege é o ajudante que devotou sua vida a defender as vítimas. Nadia Murad é a testemunha que relata os abusos perpetrados contra ela e outras pessoas. Cada um deles tem sua própria maneira de colaborar na visibilidade da questão, para que os violentadores possam ser responsabilizados por suas ações", justificou Reiss Andersen.
A conferência de Denis Mukwege ao Fronteiras do Pensamento foi uma noite de estranhamento e emoção. O evento aconteceu em 2010 e proporcionou, ao público brasileiro, uma imersão na África que poucos conhecem.
Na fala, intitulada Direitos Humanos e Democracia na Era Globalizada, o médico explica que a África só encontrará uma saída buscando colaboração com o resto do mundo.
A ajuda humanitária, diz ele, deve ser incondicional, universal, independente e neutra. Quando a ajuda é assistencialista, a crise prossegue e surge o problema do retorno à autonomia. Leia abaixo e acompanhe a discussão em nossas mídias.
Mukwege é considerado o maior especialista do mundo em reparação interna de genitais femininos. Também coordena programas de HIV/Aids em seu país.
Em 2008, o Prêmio Olof Palme e o Prêmio Direitos Humanos das Nações Unidas por seu trabalho de proteção aos direitos e à dignidade de milhares de mulheres congolesas. Em 2009, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, mas foi vencido por Barack Obama. Já em 2014, o médico recebeu um dos mais importantes prêmios do mundo, o Sakharov.
Em 2008, o Prêmio Olof Palme e o Prêmio Direitos Humanos das Nações Unidas por seu trabalho de proteção aos direitos e à dignidade de milhares de mulheres congolesas. Em 2009, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, mas foi vencido por Barack Obama. Já em 2014, o médico recebeu um dos mais importantes prêmios do mundo, o Sakharov.
Agora, é com felicidade que noticiamos a premiação de Nadia Murad e Mukwege, cuja conferência nós compartilhamos na íntegra com vocês.
Sinto-me muito honrado pela atenção que vocês têm dado ao meu continente, a África, cujo povo tem cada vez mais o sentimento de estar esquecido.
Por isso, gostaria de agradecer o convite. Também gostaria de agradecer a esta ilustre plateia, que com sua presença manifesta simpatia pela África, cujos combates são seculares e multidirecionais.
Primeiramente, quero dizer que não tenho a pretensão de falar em nome de todos os africanos. A África é imensa, eu diria inclusive que existem várias Áfricas.
Por isso, gostaria de agradecer o convite. Também gostaria de agradecer a esta ilustre plateia, que com sua presença manifesta simpatia pela África, cujos combates são seculares e multidirecionais.
Primeiramente, quero dizer que não tenho a pretensão de falar em nome de todos os africanos. A África é imensa, eu diria inclusive que existem várias Áfricas.
Minha experiência se limita à África subsaariana. Também gostaria de ressaltar como é amplo o assunto que me foi proposto: dilemas da África.
Essa questão pode ser abordada no plano teológico, no socioeconômico, no antropológico e até no filosófico.
Permitam-me lhes confessar que não tenho a capacidade para tratar do assunto sob todos esses ângulos.
Eu gostaria de abordá-lo brevemente, de três perspectivas: a humanitária, a medicinal, a do respeito dos direitos humanos e da democracia.
Estamos em um dilema quando nos encontramos diante da obrigação de escolher entre duas possibilidades ou soluções contraditórias que se apresentam, ambas, inconvenientes.
Como explica o etíope Ngango, o grande dilema africano se manifesta no dualismo, a cisão e a tensão que caracterizam a sociedade africana contemporânea.
No século passado, um escritor africano de ultramar, o doutor William Burghardt Du Bois, definia essa tensão em um tom particularmente dramático.
Cito: “É um sentimento estranho”, escreveu ele, “essa dupla consciência, essa impressão de sempre se ver através dos olhos dos outros, de medir a sua alma com a régua de um mundo que olha para você com diversão, desprezo e piedade. Sempre sentimos essa dualidade, há dois ideais em conflito em um único corpo negro, no qual apenas a força indomável impede que seja partido ao meio”.
Essa análise, que já tem um século, conserva toda sua atualidade.
Podemos dizer, inclusive, que essa tensão se intensificou desde então e que hoje se encontra na origem do drama no qual a África se debate em desespero.
A África certamente se encontra em situação de dilema, como cantaram a poetisa nigeriana Imoukhwede e o poeta ganês Dei Anang.
“Nós aqui estamos claudicando entre duas civilizações, estou exausta. Estou exausta de estar suspensa entre dois mundos. Mas para onde iria?”, diz a nigeriana.
E o ganês continua: “Para onde iria? Para trás? Para os dias dos tambores e as danças solenes à sombra das palmeiras onde o sol joga como dardos seus beijos? Ou para a frente? Para a frente. Mas em direção ao quê? Às favelas, onde o homem vive sobre o homem empilhado?”.
Estudando a história da literatura na África moderna, o professor [Ali] Mazrui expõe sete temas de conflito, de valores, explorados por diferentes autores africanos em momentos diferentes da história do continente.
Esse assunto permite compreender melhor a dualidade que dilacera a África diante das contribuições externas à sua própria civilização.
Trata-se, primeiro, da oposição entre o passado e o presente. Aqui podemos encontrar muitos autores que vão louvar o passado, mostrando tudo o que é negativo com relação ao presente. Mas também existe o conflito da modernidade e da tradição.
Existe a oposição entre o mundo estrangeiro e o mundo autóctone. O conflito entre o indivíduo e a sociedade, entre o direito privado e o dever público.
Existe o conflito entre o capitalismo e o socialismo, entre a busca da igualdade e a busca da abundância.
A relação entre a africanidade e a humanidade, entre os direitos dos africanos como membros de uma etnia particular e o dever dos africanos como membros da espécie humana.
O dilema entre o desenvolvimento e a autossuficiência, entre uma rápida evolução econômica sustentada por uma ajuda estrangeira, por um lado, e um progresso mais demorado, mas autônomo, por outro.
É evidente que essas dialéticas estão presentes no cotidiano da África, dando às vezes essa impressão de não decolagem do continente africano, pois é disputado por duas forças diametralmente opostas, o que tem como consequência a estagnação do continente.
Esse dualismo produziu três correntes de pensamento na África.
A primeira corrente pensa que é necessário simplesmente voltar à tradição.
A segunda defende que é preciso renunciar completamente à tradição para se dedicar à modernidade ocidental.
A terceira corrente é a dos pensadores que acreditam que a saída da África somente pode ser alcançada unindo as duas correntes, quer dizer, tentando ser diagonal.
Desta terceira corrente se depreende que a África deve procurar as vias e os meios para ter um nível de colaboração e de trocas com o resto do mundo, considerando que os seus valores, como aliás os dos outros continentes, têm limites e não podem ser considerados como valores absolutos e imutáveis, como se fossem autossuficientes.
A África tem valores ricos e variados, evidentemente também nos planos cultural, religioso e social, mas ela deve aceitar o contato com os valores de outros povos, extrair deles as contribuições positivas e indispensáveis para o seu desenvolvimento.
Esses dilemas se manifestam em vários domínios, revelando assim o problema do próprio eixo da cooperação que deve ser mantida para o desenvolvimento da África. Alguns defendem uma cooperação Sul-Sul e outros uma cooperação Norte-Sul.
Ao meu ver, parece que os dois eixos não são excludentes, desde que a escolha se volte para o modelo que respeita os valores positivos africanos e os complemente com as contribuições externas positivas.
Então, quais são as relações da África com o resto do mundo? Os dilemas do continente não podem ser apreendidos fora de sua história tumultuada, indo do período escravagista até a queda do muro de Berlim.
Durante os anos pré-coloniais, a África foi palco do tráfico de escravos, que deixou uma ferida profunda e dolorosa carregada por todos os continentes até os dias de hoje.
Os anos coloniais foram de uma relação paternalista, unilateral, possessiva evidente. Tudo isso vai mudar com as independências. Mas tão logo foram libertas da tutela colonial, as nações africanas foram obrigadas a outro tipo de submissão.
Muito cedo, então, após as independências, esses jovens países se definirão com relação ao bloco de países ocidentais, encabeçados pelos Estados Unidos, ou ao bloco de países do leste, encabeçados pela União Soviética.
Depois desse período ocorre a queda do muro de Berlim, que eu considero como uma nova independência para a África. Se com a queda do muro de Berlim a África pôde recuperar sua segunda independência, por outro lado perdeu, da noite para o dia, seu interesse estratégico aos olhos dos antigos aliados.
Os países ocidentais, que estavam a partir daquele momento ocupados em restabelecer os estados da Europa do Leste, reduziram pela metade a ajuda ao desenvolvimento. E, a exemplo de seus governos, as empresas europeias se eximiram de um continente em falência, cedendo o lugar aos agentes humanitários de todos os cantos.
Assim foi, por exemplo, o Congo de Mobutu Sese Seko, um país superprotegido durante a Guerra Fria que hoje está entregue a um esfacelamento sem precedentes, que em dez anos já ocasionou mais de cinco milhões de mortes, mais de dois milhões de refugiados internos e mais de 500 mil mulheres vítimas de estupros sem que haja um verdadeiro posicionamento da comunidade internacional e dos países ocidentais, particularmente para erradicar esse mal.
Isso traduz muito bem, de fato, a falta de interesse na África, a perda desse interesse estratégico que o continente tinha durante a Guerra Fria.
A África dos anos 1990, marginalizada, tornou-se um objeto de compaixão e de piedade, continuou doente, com a necessidade de ser curada com toda urgência.
Nos anos 2000, a África começou a dar fim ao capítulo demasiadamente longo da descolonização. As nações africanas — à exceção de certos estados, como a República Democrática do Congo, que enfrenta uma guerra de mais de quinze anos — viveram desde a virada do século um crescimento anual quatro vezes superior ao da Europa.
Progressivamente desvinculada da tutela do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, a África assume o comando de suas políticas econômicas. Afinal, vamos observar, como frisam [Jean-Michel] Severino e [Olivier] Ray, que “este novo episódio não acaba nem com a miséria que continua a castigar o sul do Saara, nem com a vulnerabilidade persistente das economias africanas. Mas, passada a proximidade incestuosa da tutela colonial, do patrocínio militar e da curadoria financeira, a relação da África com o resto do mundo se normaliza.
O diálogo unilateral, pois assimétrico e forçado, está se transformando mais em uma troca de convicções, em uma negociação que só pode se estabelecer na paridade”, o que significa um progresso positivo na relação da África com o mundo.
Nelson Mandela tinha dito: “Nenhum homem pode ir para a frente sozinho”. De fato, a África não pode ir para a frente sozinha. A própria Europa não seria o que ela é hoje sem a ajuda maciça recebida no fim da Segunda Guerra Mundial. É por essa razão que a ajuda pública para o desenvolvimento é uma necessidade, uma condição essencial e indispensável para a desestagnação da África.
No entanto, hoje, 50 anos após as independências de vários países africanos, essa ajuda pública para o desenvolvimento conseguiu atrair, infelizmente, uma unanimidade de críticas tanto sobre sua forma quanto sobre seus objetivos, ao Norte e ao Sul.
Segundo as estatísticas providas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apesar de diversos déficits referentes aos compromissos firmados, a ajuda ao desenvolvimento aumentou cerca de 30% em termos reais entre 2004 e 2009. E deveria ter progredido em torno de 36%, sempre em termos reais, entre 2004 e 2010, sofrendo, contudo, uma diminuição da ajuda pública entre 2010 e 2012 devido às obrigações orçamentárias nos países ricos financiadores dos fundos.
No livro intitulado A ajuda fatal, que causou bastante polêmica, a zambiense Dambisa Moyo se pergunta por que a maioria dos países subsaarianos se debate em um ciclo sem fim de corrupção, de doenças, de pobreza e de dependência, apesar do fato de ter recebido mais de 300 milhões de dólares desde 1970.
Sua resposta é que os africanos são pobres justamente por causa dessa assistência. De fato, entre 1970 e 1998, quando o fluxo de ajuda estava no auge, a taxa de pobreza na África aumentou de forma estarrecedora: passou de 11% a 68%.
Para Dambisa Moyo, os créditos têm condições muito favoráveis e as subvenções podem ser comparadas à posse de recursos naturais preciosos. E eu, que venho do Congo, posso falar por experiência própria: eles estimulam a corrupção e são fonte de conflito, desanimando a livre-iniciativa. Essa análise de Dambisa Moyo é certamente discutível, e vocês podem fazer suas críticas, mas tem o mérito de questionar a finalidade da ajuda ao desenvolvimento.
Realmente, é necessária tanta ajuda ao desenvolvimento? Trata-se de uma necessidade vital? Cabe levantar a questão sobre os efeitos inversos, para não dizer perversos, que ela pode produzir sobre a mentalidade dos africanos.
A partir do momento em que uma ajuda ao desenvolvimento não favorece a livre-iniciativa, a autogestão e, em consequência, o desenvolvimento da pessoa à qual se destina, tal ajuda não é somente inútil, como também perigosa.
Assim, é urgente envolver organizações internacionais, que seriam muito mais capazes de avaliar as condições de sucesso de uma ajuda pública ao desenvolvimento. Tais organismos levarão seu questionamento não à repartição ministerial, mas a campo.
A África precisa de ajuda para o desenvolvimento e não de uma ajuda que a acorrente à dependência ou que incentive a corrupção. Então, quando se tratar da relação da África com a ajuda humanitária, será necessário, a princípio, definir uma crise humanitária, que é uma situação em que pessoas estão em risco, colocando suas vidas em perigo, e a qual nem o estado nem a sociedade remediam ou podem remediar.
Hoje estamos diante de uma situação em que, a cada dia, milhares de pessoas morrem de fome, se encontram sem abrigo ou sem cuidados adequados. As catástrofes naturais, a fome, a guerra são os três exemplos que podem levar os seres humanos a situações que não lhes permitem sobreviver mais com seus próprios meios.
O termo “ajuda humanitária” não pode ser usado para todas as formas de auxílio. A Caritas definiu um conjunto de critérios que deve ser respeitado para falar de ajuda humanitária.
Deve haver, em primeiro lugar, o risco de morte; em segundo, a necessidade de ser socorrido; em terceiro, é necessária a condição do trabalho voluntário; e, em quarto, é preciso que a ajuda seja oferecida pelas instituições, quer dizer, a institucionalização da ajuda humanitária.
Seu objetivo é oferecer ajuda a pessoas em situação de perigo, permitir-lhes que retomem as rédeas de seus destinos, que superem seu desespero e possam construir uma nova vida.
Assim, a ajuda humanitária permite salvar pessoas, ajudá-las a reconstruir sua existência, e tenta lhes devolver uma esperança no futuro. É, portanto, necessária para a sobrevivência dos seres humanos, sendo uma das respostas às situações de risco provocadas por esse tipo de crise.
Dessa maneira, ela permite remediar as situações de risco mais graves. Mas a ajuda humanitária nunca deveria ter preferências políticas, culturais ou étnicas, como já aconteceu. Ela tem consequências sobre as condições sociais, econômicas e culturais das regiões em crise. Ela opera em presença das partes em conflito e das forças militares, está exposta aos interesses dos atores políticos locais e internacionais, e deve negociar com os financiadores dos fundos e as mídias. Então, as condições em que a ajuda humanitária é dada são de todo particulares.
Existem duas principais formas de crise humanitária.
Em primeiro lugar, a crise humanitária que está ligada a razões independentes do homem, como, por exemplo, erupções vulcânicas, terremotos, enchentes, entre outras.
No entanto, também há crises humanitárias que são de responsabilidade total do homem, como a guerra.
Nos dois casos, a ajuda oferecida às vítimas deve ser incondicional e desinteressada, sem distinção social, política ou cultural.
Para o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, citado por André Pasquier, as ações humanitárias se baseiam em quatro princípios essenciais, a saber: a universalidade, a imparcialidade, a independência e a neutralidade.
Em períodos de crise, muitas esperanças estão depositadas nos agentes humanitários. A ajuda de urgência é certamente indispensável, mas superar as consequências de uma catástrofe ou de uma guerra em longo prazo requer uma estratégia que estipule um limite de tempo e vá além da estratégia da ajuda humanitária clássica.
É lamentável constatar que, com frequência, os estados que desejam ajudar os países em crise concentram muitos recursos nos efeitos e deixam de lado as raízes do problema. Agindo assim, infelizmente, não vemos só uma perda de tempo e de recursos, mas também um enraizamento profundo da crise.
Constatamos também que a motivação com que os estados ajudam depende de seus interesses nos países em crise ou das relações políticas que eles mantêm com os estados em crise.
As organizações humanitárias, do mesmo modo, às vezes são forçadas a intervir, em certos casos, em função da sua própria afinidade com o protagonista. Isso prova de maneira suficiente que às vezes os princípios de neutralidade, de imparcialidade e de universalidade da ajuda humanitária não são respeitados.
Dessa forma, as organizações humanitárias se encontram em um dilema político que as coloca diante de escolhas difíceis e as obriga, às vezes, a tomarem decisões complicadas.
O dilema, então, consiste em que, quando os agentes humanitários são chamados a serem neutros, eles calam em nome da neutralidade os abusos políticos graves sofridos pela população civil. E nesse caso eles são acusados pelos beneficiários da ajuda humanitária de serem cúmplices dos políticos.
Quando os agentes humanitários, ao contrário, denunciam os abusos das autoridades, estas ordenam que se retirem, pois consideram que eles estão agindo além da sua função e não respeitam a neutralidade.
Esse é um verdadeiro dilema. O segundo dilema da ajuda humanitária se refere à habituação à assistência.
Quando uma catástrofe humana acontece de repente, uma ajuda humanitária rápida de curta duração não traz problemas à comunidade beneficiária. Porém, quando a crise perdura no tempo, surge um sério problema: o de os beneficiários da ajuda recobrarem a autonomia.
Existe, às vezes, uma habituação que torna a comunidade dependente da ajuda humanitária, e, portanto, incapaz de retomar as atitudes normais de organização socioeconômica. Isso foi observado no caso das instituições sanitárias, por exemplo, na República Democrática do Congo.
A ajuda humanitária era dada gratuitamente nos centros de saúde, e, quando a situação voltou ao normal, os agentes humanitários partiram e se pediu à população — que até aquele momento tinha sido beneficiada pela ajuda humanitária gratuita — que contribuísse para o cuidado de sua saúde, ela se mostrou incapaz de poder assumir esse compromisso.
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Então, devemos estar cientes de que a ajuda humanitária precisa ocorrer dentro de um período, pois não se pode esquecer que essa população terá de voltar a uma vida normal.
No Congo pode ser observada uma situação que é totalmente particular, em que muitos estados ocidentais participam com ajuda humanitária em favor das mulheres vítimas de violências sexuais, mas ao mesmo tempo muitas empresas ocidentais exploram de forma vergonhosa os recursos minerais para manter a guerra na mesma região.
Em outras palavras, por um lado as vítimas de violências sexuais são expulsas de sua terra por um exército sustentado pelas multinacionais ocidentais, e por outro as organizações humanitárias ocidentais enviam ajuda às vítimas.
É um dilema, uma contradição. Seria útil ajudar essas mulheres a que recuperassem seu lar oferecendo a paz, pois essa paz é possível se os parceiros da região assim o quiserem. Em geral e de modo muito lógico, cabe à classe política o papel de lutar contra a causa que provoca uma crise humanitária.
Mas surge uma situação de dilema partindo do próprio caráter neutro e apolítico de uma ajuda de urgência. Como destaca mais uma vez a Caritas, o princípio de neutralidade gera inúmeras questões: até que ponto os agentes humanitários podem se imiscuir no campo político?
Eles devem também intervir em favor da paz, da democracia, da justiça social? Ou devem, ao contrário, se abster de toda ingerência política e se limitar somente à ajuda de urgência?
A resposta para essas perguntas está longe de ser simples. Prova disso são os acalorados debates sobre o princípio de neutralidade que instigam atualmente a comunidade humanitária.
Esse dilema é muito evidente no Congo há mais de dez anos. Tropas das Nações Unidas, chamadas Monique, se espalharam pelo meu país.
O maior contingente da ONU já instalado e que custa milhões de dólares por dia. É verdade que a Monique fez um bom trabalho. Salvou milhares de vidas. No entanto, a guerra não está totalmente acabada.
A Monique desempenha às vezes o papel de observadora: observa assassinatos e os relata, observa estupros e os relata, mas não pode intervir, pois não tem mandato. Ainda há territórios imensos sob o controle de rebeldes, e a Monique está em contato com eles.
Esses rebeldes aterrorizam a população, estupram, destroem, mas as forças das Nações Unidas não têm mandato, elas têm mandato para observar. Observar a miséria, fazer relatórios sobre a miséria. Isso é questionável, isso é um dilema.
Assim, a situação da República Democrática do Congo traz à tona o fato de que a ação humanitária pacifista e não intervencionista tem seus limites. Bernard Kouchner defende a tese do direito à ingerência cada vez que a vida dos homens estiver em perigo.
Pessoalmente, endosso essa opinião, contanto que esse direito à ingerência se exerça sob o controle da comunidade internacional, e aqui me refiro à ONU.
O exercício do direito de ingerência evitaria muitas crises humanitárias e dispensaria a comunidade internacional de muitas despesas financeiras, dinheiro que seria usado para financiar projetos de desenvolvimento. Isso nos leva a falar da questão crucial da saúde na África, com relação ao resto do mundo.
A situação da saúde na África subsaariana é das mais alarmantes do nosso planeta. Ao observar os dados regularmente publicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), conhecendo a relação estreita que existe entre a saúde e o desenvolvimento, vemos que o esforço de colaborar para a melhoria do nível de saúde da população africana contribui para o desenvolvimento de todo o continente.
O desenvolvimento social e econômico depende em grande parte das condições de saúde das populações, que, vivendo em condições precárias, não podem dar o melhor de si. Dessa forma, sem uma política de saúde consequente, não há desenvolvimento.
Na assembleia geral das Nações Unidas de 2000, adotaram-se os objetivos do milênio para o desenvolvimento. A abordagem trouxe uma nova esperança para o continente que acumulava um atraso de desenvolvimento com um sistema sanitário que não atende mais à necessidade da população.
Os objetivos do milênio preveem não somente reduzir a mortalidade e a pobreza, como também as desigualdades entre os países e as inerentes a cada país, pois, de fato, as desigualdades não existem só na relação entre países, uma vez que podemos constatar de maneira clara que em um mesmo país pode haver desigualdades às vezes alarmantes.
A taxa de mortalidade infanto-juvenil — em função do lugar de residência, do nível de educação da mãe e do pertencimento ao quintil de renda —, comparada com o resultado da pesquisa que a EDS realizou em 2004, mostra que as crianças do meio rural, as descendentes de uma mãe não instruída e as de lares mais pobres continuam expostas a um risco de mortalidade mais elevado do que as crianças com melhores condições financeiras.
As crianças de mães sem educação apresentam uma taxa de mortalidade 2,2 vezes superior às crianças de mães com educação. As crianças de lares pobres apresentam uma taxa de mortalidade 2,5 vezes superior à das crianças que vêm de meios mais ricos.
No relatório mundial da saúde de 2006, a OMS destaca as desigualdades significativas na distribuição dos profissionais da saúde entre os países. Essa questão é muito interessante.
Os países cujas necessidades em termos relativos são menores dispõem de um efetivo de pessoal da saúde maior, enquanto aqueles que apresentam as taxas mais altas de morbidade devem se contentar com um efetivo de agentes de saúde muito mais reduzido.
A região da América, que inclui principalmente o Canadá e os Estados Unidos, soma apenas 10% da carga de morbidade mundial.
No entanto, essa região concentra cerca de 37% dos profissionais da saúde e mais de 50% das despesas com saúde realizadas no mundo.
A Europa também é beneficiária de uma fatia desproporcional de recursos humanos e financeiros destinados à saúde. Em contrapartida, a região da África apresenta mais de 24% da carga de morbidade mundial, mas tem acesso somente a 3% do pessoal de saúde e a menos de 1% dos recursos financeiros mundiais, mesmo ao contabilizar os salários e as subvenções oriundas do exterior.
É triste constatar que, apesar dessa desproporção, a África continua formando o quadro de saúde para a América e para a Europa, pelo fenômeno de deserção de intelectuais do Sul para o Norte.
Muitos profissionais africanos custaram caríssimo à sua comunidade, ao seu país, em termos de formação, mas uma vez finalizada a formação eles migram e se instalam no Norte, em detrimento do continente africano. Isso contribui para ampliar a desproporção e desequilibrar a relação Norte-Sul no que tange à saúde.
Para ilustrar esse desequilíbrio, gostaria de mostrar brevemente os indicadores da situação sanitária, que são, de resto, muito alarmantes na República Democrática do Congo.
Prestem atenção, a taxa de mortalidade infantil é de 126 por 1.000 nascidos vivos; a taxa de mortalidade infanto-juvenil é de 213 crianças por 1.000; a taxa de mortalidade materna é de 1.289 por 100 mil nascidos vivos. Uma verdadeira catástrofe.
Estamos presenciando o retorno de doenças endemoepidêmicas que outrora foram erradicadas, como a varíola do macaco, a febre hemorrágica viral, a tripanossomíase, a tuberculose, a lepra, o cólera e o tifo, entre outras.
A malária ainda é um grande problema em termos de mortalidade na República Democrática do Congo.
A prevalência do HIV/Aids está em torno de 5% da população, com uma disponibilidade de apenas 6% de antirretrovirais para o total dos elegíveis.
Quer dizer, entre todos os elegíveis, somente 6% podem ter acesso aos medicamentos.
A prevalência elevada do HIV/Aids nas mulheres grávidas entre 15 e 24 anos é da ordem de 4,8%.
Ainda vemos o sucateamento das infraestruturas e a pouca acessibilidade da população aos cuidados de saúde.
Esse cenário da República Democrática do Congo reflete muito bem o que acontece no conjunto do continente africano subsaariano.
Também convém notar que a ausência de soluções adequadas aos problemas de saúde apresentados pela população, e principalmente a dificuldade de acesso aos centros de saúde modernos, acompanhados da pobreza, fazem com que a população manifeste uma tendência a recorrer à medicina chamada tradicional como um amparo, quando esta muitas vezes não pode responder de forma científica ao problema apresentado pelos doentes.
Isso faz com que os doentes se encaminhem tardiamente às instalações de saúde para o tratamento. Essa atitude constitui um verdadeiro dilema, pois contribui para aumentar a estatística alarmante da África.
Nesses dilemas da África, qual é o lugar da educação? Devo dizer que, no plano da escolarização, o último relatório do Banco Mundial, intitulado “Indicadores de desenvolvimento mundial 2010”, mostra que 72 milhões de crianças em idade de ser escolarizadas ainda não estão matriculadas na escola, e isso ocorre principalmente no Sul da Ásia e na África subsaariana, onde o cumprimento universal da educação primária continua totalmente aleatório.
Então, a África permanece uma das regiões que conhecem taxas superiores de analfabetismo, de desistência ou de fracasso escolar no mundo. Isso pode ser explicado por duas razões principais. Temos em primeiro lugar o uso da língua estrangeira.
Atualmente, muitos concordam que o fato de estudar usando a língua que aprendemos apenas na escola e que não podemos usar em casa ou no dia a dia torna a educação das crianças africanas muito mais complicada.
Alguns países, como o Congo-Brazzaville, tiveram a experiência de usar as línguas locais no ensino primário e aparentemente foi satisfatória.
O segundo elemento é a pobreza. Nos estados em que a educação escolar dos jovens entra na responsabilidade exclusiva dos pais, que são, aliás, trabalhadores ou subempregados, e a maioria sem salário, o retrocesso escolar só pode levar, afinal, à pobreza. Eis outra questão que leva a África a fazer um apelo a seus parceiros.
Outro problema da África diz respeito à triste realidade da deserção de seus intelectuais. Como já mencionamos, aqueles que terminam seus estudos superiores se encontram diante de um dilema: ficar na África, para formar seus irmãos e morrer de fome, ou então procurar novos ares em busca de uma vida melhor.
Então, a África deve continuar a formar seus profissionais para vê-los partir depois? Após todos esses dilemas, chegamos à democracia.
Enumeramos alguns dualismos que explicam o dilema da África. Entre essas dualidades, existe a tensão entre a modernidade e a tradição, caracterizada pelo fracasso do início da democracia na África.
Com efeito, na mentalidade do africano o poder é inato e transmissível de modo hereditário. Isso está inscrito em algum lugar da memória do africano e é muito difícil de fazê-lo mudar de ideia.
Mas a democracia herdada dos valores ocidentais funciona de modo totalmente diferente. O mandato político não é inato, é adquirido por via eleitoral.
O poder está submetido ao princípio da alternância. A África do período pós-colonial funcionou de modo tradicional. Um presidente podia se manter no poder até que a morte o arrancasse.
Exceto algumas raras exceções, como Leopold Sedar Sengo, todos os presidentes se mantiveram no poder, contra ventos e marés. Houphouët Boigny, Mobuto Sese Seco, Omar Bongo ficaram no poder até a morte.
No início dos anos 1990, depois do discurso de La Baule pronunciado pelo presidente francês François Mitterrand, um ar de democracia soprou em todo o continente africano. Quase todos os países se comprometeram com as vias democráticas.
O princípio estava lá, a vontade também estava lá, mas a tradição era mais forte que a modernidade, de modo que o princípio da alternância foi rapidamente abolido em favor da concepção monárquica do poder. Isso explica que, 20 anos mais tarde, em mais de três países da África, os filhos dos presidentes tenham sucedido os seus finados pais.
Trata-se, em particular, dos casos de Joseph Kabila, que sucedeu Laurent Kabila, na República Democrática do Congo; de Ali Bongo, que sucedeu Omar Bongo, no Gabão; e de Eyadéma, que sucedeu seu pai, no Togo.
Esses três exemplos mostram o limite da democracia na África. Outra característica do dilema é o fato de que, na tradição africana, tudo pertence ao chefe. Tudo: os bens, as pessoas, a terra.
Tudo pertence ao chefe. Ele deve ser rico e não é controlado por ninguém. Um chefe pobre não seria, então, um chefe. Se você é chefe, você deve ser rico. Mas o exercício do poder na modernidade funciona de modo totalmente diferente.
Um chefe está submetido ao controle democrático, um chefe presta contas ao seu povo. Tudo não lhe pertence. Aqui também essas duas concepções entram em conflito e explicam a rejeição dos princípios fundamentais do controle democrático.
Essa é uma das razões que explica a confusão e a corrupção na África. Para terminar, não há democracia sem direitos humanos.
Há muito tempo, devido aos demais problemas, os direitos humanos foram considerados um luxo. Acredito que isso ainda seja verdade para muitos países africanos.
De fato, pouquíssimos de nossos países reconhecem a dignidade inerente a cada pessoa sem nenhuma discriminação. Ainda são raros no continente africano aqueles que garantem a todos oportunidades e escolhas iguais.
É verdade que os direitos humanos são um princípio universal, ainda que a natureza humana se oponha a isso constantemente. O respeito dos direitos humanos seria proporcional, então, ao nível democrático de um país.
Assim, um país com os valores mais democráticos será mais sensível aos valores humanos. O exercício monárquico do poder de nossos eleitos africanos faz com que tudo seja do presidente e de seu círculo.
O presidente tem razão em todas as matérias. Esse funcionamento exclui, ipso facto, toda contestação, toda forma de contrapoder. Em semelhante concepção da gestão pública, não há espaço para o respeito dos direitos humanos, como são concebidos em um país de funcionamento democrático verdadeiro.
Constato, assim, que a questão dos direitos humanos ainda tem um longo caminho a percorrer na África. Para terminar, devo dizer que a África está cindida entre a tradição e a modernidade.
Porém, assim como os países emergentes, tem de encontrar seu caminho para o desenvolvimento considerando seus valores próprios, que devem ser incorporados, claro, mas também aceitando as contribuições positivas das outras civilizações com as quais precisa ter contato.
É o que tenho para dizer, obrigado.
Conferência por Denis Mukwege, Nobel da Paz - proferida em 28 de junho de 2010
Tradução de Augusto Nemitz e Gustavo de Azambuja Feix
Esta conferência foi originalmente publicada na obra Pensar a Justiça, à venda na Arquipélago Editorial. O livro demonstra, na variedade das abordagens de seus conferencistas, o quanto é complexa e urgente a discussão atual de uma das mais antigas aspirações humanas – a busca por um mundo mais justo.
Entre os autores estão três vencedores do Prêmio Nobel da Paz: a advogada e ativista iraniana Shirin Ebadi, o jurista e ex-presidente timorense José Ramos-Horta e o diplomata egípcio Mohamed ElBaradei.
Completam a seleção de conferencistas o médico congolês Denis Mukwege e três pensadores brasileiros: o ex-chanceler Celso Lafer, o psicanalista Jurandir Freire Costa e o professor de Ética e Filosofia Roberto Romano.
O volume é enriquecido por um ensaio visual do artista plástico brasileiro Rubem Grilo, uma entrevista com o teórico cultural ganês Kwame Appiah e um artigo sobre o filósofo político norte-americano Michael Sandel, mundialmente conhecido por seu curso Justiça.
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