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domingo, 16 de dezembro de 2018

Ataque em Campinas: uma visão da ciência sobre as origens da 'explosão de violência'


Corpo coberto de vítima de atentado na Catedral de CampinasDireito de imagemREUTERS
Image captionSegundo a polícia, Euler Grandolpho usou duas armas de fogo para atirar em fiéis na Catedral de Campinas

  • 14 dezembro 2018
Em 1901, um médico britânico que morava na Malásia descreveu um fenômeno que lhe chamava atenção: o de pessoas sem histórico criminoso que tinham rompantes de violência e saíam cometendo assassinatos indiscriminadamente, atacando a quem não havia feito nada contra elas.

"Um homem de 23 anos roubou uma espada e atacou seis pessoas que estavam dormindo ou fumando ópio. Ele quase decapitou um, matou outros três e feriu seriamente os demais - tudo sem razão aparente", escreveu na época o médico John Gimlette no Journal of Tropical Medicine.
Era o fenômeno cultural local chamado de amok, quando uma pessoa alvo de frustrações ou humilhações - na maior parte dos casos, um homem - passava por um período de reclusão e isolamento e depois se lançava em um ritual catártico e bárbaro: ir a um lugar público e movimentado para matar pessoas desconhecidas, sem motivo ou conexão aparentes. A palavra deu origem ao termo em inglês "running amok", que pode ser traduzido como "tomado pela ira".
Esse fenômeno, a princípio apontado por antropólogos como uma manifestação restrita a algumas comunidades do sul da Ásia, começou a ser visto sob outra ótica por psicólogos e estudiosos no Ocidente a partir da década de 1990, quando mais matanças indiscriminadas começavam a ganhar as manchetes dos jornais: as mortes causadas por atiradores em escolas ou locais públicos americanos.
Mais recentemente, outro roteiro parecido: extremistas islâmicos começaram a atacar, com armas ou veículos, grandes concentrações de pessoas em cidades europeias, por exemplo.
Para alguns estudiosos, há elementos semelhantes no amok e na ação de atiradores ou extremistas em países ocidentais: uma explosão de violência homicida cega, cometida em locais públicos, onde a chance de fazer vítimas é grande. E os perpetradores geralmente seguem matando aleatoriamente até que sejam interrompidos pela polícia ou cometam suicídio.

Homenagem a vítimas de ataque extremista em Estrasburgo, na França, em 13 de dezembroDireito de imagemAFP
Image captionHomenagem a vítimas de ataque extremista em Estrasburgo, na França, em 13 de dezembro; para pesquisador, perpetradores buscam 'momento de triunfo' que não conseguiam obter na vida até então

É possível notar também algumas semelhanças desse modo de agir com o caso de Euler Grandolpho, que na terça-feira matou cinco pessoas e feriu mais três na Catedral Metropolitana de Campinas (SP), antes de cometer suicídio. As motivações e detalhes do episódio, no entanto, ainda estão sendo investigados pela polícia.
É importante destacar que essa conexão entre amok e atiradores no Ocidente é uma linha de pensamento, e não um consenso da comunidade acadêmica. Mas fomenta um debate sobre exclusão social, saúde mental e, por fim, uma possível "crise de masculinidade" entre homens que têm dificuldade de realização e inserção plena na sociedade onde vivem.

Em busca de um 'momento de glória'

Diferentemente dos amoks originais, de caráter catártico, os atiradores da atualidade parecem nutrir a ideia de que as matanças lhes proporcionarão o momento de glória, triunfo e atenção midiática que não haviam conseguido em vida até então, avalia o acadêmico brasileiro Gabriel Zacarias, professor de História na Unicamp e estudioso de casos recentes de extremismo islâmico na França (abordados no livro No Espelho do Terror: Jihad e Espetáculo; ed. Elefante, 2018).
"A maior parte é de pessoas apontadas pelos conhecidos como introspectivos, que ninguém imaginava que poderia fazer uma coisa dessas (uma matança indiscriminada). São homens geralmente, de alguma forma, frustrados", explica Zacarias à BBC News Brasil.
Essas frustrações podem ser pelo fato de não terem desfrutado de popularidade, sucesso profissional ou integração à sociedade competitiva onde vivem, exemplifica.
"Os extremistas na França geralmente são de um estrato social mais baixo e de família de origem imigrante, o que coloca o preconceito em jogo na sua dificuldade de ascensão social. (...) Parecem ter encontrado no terrorismo uma forma de dar um sentido mais nobre a uma vida que já estava fora da norma", explica. "Quem comete um atentado sabe que vai ser apresentado de uma determinada maneira na imprensa, nos telejornais, nas redes sociais jihadistas. Vai ter um momento de 'triunfo'", explica.

Em novembro, um atirador matou 12 pessoas em uma casa noturna de Thousand Oaks, na Califórnia; acima, a polícia na casa do suspeitoDireito de imagemAFP
Image captionEm novembro, um atirador matou 12 pessoas em uma casa noturna de Thousand Oaks, na Califórnia

"O que nos leva ao caráter espetacular desses fenômenos: a maioria (dos extremistas) produziu vídeos com armas, mensagens ou até filmagens de seus próprios ataques. Eles já tinham a percepção de que seria um momento de grande repercussão midiática e de que eles, até então fracassados (dentro de suas comunidades), teriam seu reconhecimento."
Claro que frustrações em si não bastam para explicar uma matança indiscriminada - todos, afinal, temos momentos de frustração, e pouquíssimos de nós transformamos isso em violência extrema. No caso de extremistas islâmicos, é preciso levar em conta também componentes étnicos, religiosos e geopolíticos. No caso dos atiradores de escolas, porém, há pesquisadores nos EUA que acreditam que existe no país uma "crise de masculinidade": jovens do sexo masculino que se sentem desconectados da sociedade e encontram na cultura de valorização das armas de fogo uma forma de expressar que são "durões".
"Todos os atiradores de escola e terroristas domésticos que analisei em meu livro exibiam raiva masculina, uma tentativa de resolver uma crise de masculinidade por meio de um comportamento violento e demonstravam fetiche por armas", escreveu em 2008 o pesquisador Douglas Kellner, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, autor do livro Guys and Guns Amok.
Kellner estava se dirigindo à imprensa poucos dias após o atirador Steven Kazmierczak ter invadido a Universidade Northern Illinois e matado cinco pessoas, em 14 de fevereiro daquele ano.
"Tanto em massacres em escolas quanto em atos de terrorismo doméstico, os perpetradores usam armas e/ou cometem violência para resolver crises de masculinidade e se constituírem como 'durões', 'homens de verdade'. Também usam a imprensa para criar espetáculos de terror e firmar-se como celebridades", escreveu Kellner em artigo posterior.
Para o pesquisador, "em cada caso, os homens sofriam de problemas de socialização, alienação e busca por identidade em uma cultura que valoriza armas e militarismo como símbolos poderosos de masculinidade".

O peso da depressão

Há, por fim, um forte componente de saúde mental em parte dos casos.
Em 1999, mesmo ano do massacre na escola americana de Columbine, um artigo publicado no periódico Journal of Clinic Psychiatry traçava paralelos entre o comportamento observado no amok e em "sociedades modernas industrializadas", nessas últimas talvez estimulado por problemas como psicopatia, paranoia, esquizofrenia, distúrbios de personalidade e de temperamento e manifestações suicidas ou homicidas, carregadas de raiva, desamparo ou sentimento de vingança.
De volta ao caso de Euler Gandolpho, em Campinas, as informações preliminares obtidas pela imprensa e relatos de seu diário mencionados pela polícia sugerem um quadro de depressão associado a pensamentos paranoicos de perseguição.
"Como é virtualmente impossível impedir um ataque amok sem arriscar a própria vida, a prevenção é o único método de evitar o dano causado", defende o artigo, sugerindo aumentar a rede de amparo a indivíduos com histórico de comportamento violento ou ameaças, que estejam sob estresse (seja financeiro ou pela perda de um ente querido ou de um emprego) e tenham problemas de saúde mental.

Prisão de atirador que deixou 17 mortos em uma escola da Flórida em fevereiroDireito de imagemREUTERS
Image captionPrisão de atirador que deixou 17 mortos em uma escola da Flórida em fevereiro; pesquisador americano acha que massacres são favorecidos por uma crise de masculinidade associada a cultura pró-armas nos EUA

Mas esse é apenas um aspecto da complexa questão.
Para Gabriel Zacarias, é difícil propor soluções sem antes refletir para além das motivações imediatas dos perpetradores de massacres e para as contradições da sociedade ocidental atual - que estimula a concorrência aguerrida e a busca (principalmente masculina) por um ideal de sucesso nem sempre fácil de ser alcançado.
"Existe um problema mais profundo de crise do sujeito: do ponto de vista clínico, se manifesta na enorme epidemia de depressão que vemos. (Mas também) é concorrencial: da busca por triunfar aniquilando os concorrentes, que é como estruturamos nosso mercado de trabalho atual", diz.
"Os indivíduos frustrados não sabem contra quem se vingar e vingam-se contra alvos aleatórios. Daí mais uma vez que as justificativas simbólicas que canalizam o ódio e o ressentimento são extremamente perigosas. Se for dito que a culpa de todos os males é de um certo sujeito social, o tipo se torna alvo potencial dos atiradores. Os EUA atuais exemplificam bem isso. A ascensão da extrema direita e de discursos racistas, homofóbicos, anti-intelectuais e antissemitas tem redirecionado a ação de atiradores, caso dos ataques em sinagogas e boates. Há razões para se esperar fenômeno semelhante por aqui."
O americano Kellner, por sua vez, defende controles mais rígidos para o porte de armas nos EUA, mas também "a projeção de imagens novas e mais construtivas de masculinidade", menos associadas à violência e a agressividade.

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