06/11/2018 por Gustavo Junqueira Diniz
Em 24 de setembro de 2018 entrou em vigor a Lei 13718/18, que dentre outras alterações nos crimes contra a dignidade sexual criou os crimes de importunação sexual e divulgação de cena de estupro (de vulnerável ou não), de sexo e pornografia. Além disso, alterou majorante sobre o crime praticado por quem tem autoridade sobre a vítima e criou as majorantes do estupro coletivo e do corretivo. Aboliu ainda a ação penal pública condicionada nos crimes contra a liberdade sexual, tornando a ação penal sempre pública incondicionada.
A criação da importunação ofensiva ao pudor responde a antigo anseio da comunidade jurídica, pois há muito era cobrado um crime com desvalor mais intenso que a mera contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, ora revogada, mas que não carregasse o intenso desvalor do estupro, crime hediondo que deve ser deixado para a tipificação de atos de extrema gravidade. Um tipo com desvalor mediano seria conveniente para dar adequada resposta a violações que eram incompatíveis com o crime de estupro, por proporcionalidade, mas pareciam insuficientemente tratados diante da contravenção, mormente para a opinião pública. Com a nova figura penal, acreditamos que a prática de atos libidinosos de inopino, sem violência ou grave ameaça tampouco grave lesão à liberdade sexual, como o beijo roubado e o toque repentino no corpo, devem ser ora reconhecidos como importunações sexuais, restando afastada a exagerada mas ainda presente capitulação como estupro.
A divulgação de cena de estupro é demanda da modernidade, dada a facilidade de transmissão de imagens e vídeos pela internet. A “revenge porn”, capaz de disseminar imagens íntimas coletadas sem a anuência da pessoa retratada, ou mesmo com sua anuência mas em momento no qual havia plena confiança no resguardo da intimidade, pode gerar efeitos avassaladores de estigmatização com consequências óbvias como isolamento, depressão e até mesmo suicídio.
A majorante do estupro coletivo parece encerrar antiga discussão sobre a correta adequação típica no caso de dois autores de estupro, que se revezam na prática de atos libidinosos com a vítima e a prática dos atos violentos de constrangimento (um segura a arma enquanto o outro pratica atos libidinosos). Havia apenas um crime de estupro com vários colaboradores ou um crime de estupro para cada autor de atos de libidinosos? A segunda solução era a majoritária, e preferida na doutrina. Com a criação da majorante, parece claro que a solução será o crime único, com a intensa majorante, o que terá como curioso efeito uma nova lei benéfica, quando comparada com o resultado de vários crimes de estupro em concurso material.
A majorante do estupro corretivo dá especial desvalor à motivação de controle do comportamento social ou sexual da vítima: se era pacífica a impossibilidade de incidência da agravante do motivo torpe no crime de estupro, por lhe ser inerente, a majorante destaca motivação ainda mais repugnante pela carga de intolerância e ódio apresentada, que é a prática de atos sexuais mediante violência como forma de impor uma determinada orientação social ou sexual para a vítima, o que poderia ser exemplificado com a conjunção carnal forçada com uma mulher homossexual como meio de forçá-la ou “acostumá-la” com a relação heterossexual. Difícil deixar de considerar que o peculiar desconforto em até mesmo escrever sobre o exemplo parece justificar o especial incremento da pena.
O foco do presente texto, no entanto, é a alteração da ação penal nos crimes contra a liberdade sexual. A tradição legislativa antes da Lei 12015/09 era pela regra da ação penal privada, com casos de ação penal pública condicionada e, em raras hipóteses, a ação penal pública incondicionada. Antecipando movimento hoje por todos reconhecido, o Supremo Tribunal Federal já atropelava a letra da lei com a súmula 608, partindo da falsa premissa que o estupro seria crime complexo (o que só se justificava com minoritária e esquecida classificação de Antolisei) para outorgar-lhe ação pública incondicionada nos casos de violência real. Com a referida reforma da lei 12015/09, a regra passou a ser a ação pública condicionada, mas mais uma vez a súmula 608 foi resgatada pelo Poder Judiciário, solapando a vontade do Legislativo e invertendo a regra para a ação pública incondicionada.
Qual a razão político-criminal subjacente à discussão? A supremacia do interesse punitivo do Estado sobre a autonomia da vítima em aceitar participar da persecução penal, dado o risco dos escândalos advindos do processo por estupro e a vitimização secundária. Vale ressaltar que a publicidade do crime sexual estigmatiza a vítima, que deixa de ser Carla ou Joana para ser “vítima de estupro”, assim reconhecida por toda a sociedade. E é curioso notar ainda que tal conhecimento não se traduz em solidariedade, compreensão ou amparo. Pelo contrário, é comum que a vítima seja abandonada pois se tornou impura, usada, ou mesmo porque seria de alguma forma responsável pelo crime por não ser “recatada” como deveria ser uma mulher honesta. A vitimização secundária diante do aparato persecutório do Estado não é menor: basta imaginar a vítima de estupro no momento posterior ao crime, quando mais quer se recolher, e é obrigada a narrar com detalhes a violência sexual para um policial, muitas vezes um homem (pois as DDM são raras e com horários limitados, servindo mais como peças de campanha eleitoral). Deve ainda ser submetida ao exame de corpo de delito, quando seu corpo será tocado e examinado. Após meses, terá que voltar e relembrar com detalhes, em audiência, para o julgador, promotor e defensor técnico (podem ser homens) o pesadelo vivido. É possível e provável que a oitiva seja adiada inúmeras vezes por falta de escolta para o réu, renovando o sofrimento e a ansiedade... Enfim, é uma nova vitimização após a vitimização originária (“vitimização secundária”). Não seria mais interessante permitir à vítima escolher pela conveniência da persecução? O Estado entendeu que não: pela atual opção legislativa mais vale perseguir o autor que proteger a vítima, o que pode corresponder à demanda por segurança, mas paga o preço de impor a vítima um sofrimento que pode ser, em dados casos, literalmente insuportável.
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