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segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O problema das garotas

As mulheres que se dedicam às ciências médicas recebem menos financiamento para pesquisas e, com frequência, não são convidadas a participar de congressos médicos. Não raro, sofrem assédio sexual
Época
Rafael Ciscati
19/12/2018
Em meados de 2015, o professor Tim Hunt, que então dava aulas no University College de Londres (UCL), dirigiu-se a uma plateia de jornalistas para fazer um discurso que, na opinião dele, deveria soar bem-humorado: “Meu problema com as garotas é que três coisas acontecem quando elas estão no laboratório”, começou Hunt, vencedor do prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2001. “Você se apaixona por elas ou elas se apaixonam por você. E, quando você as critica, elas choram”. Hunt estava na Coreia do Sul, participando de uma conferência organizada por associações de mulheres cientistas. O comentário, sexista, causou ultraje imediato. Tentando se justificar, o cientista disse à rede britânica BBC que não tivera a intenção de ofender ninguém. Mas, salientou, de fato acreditava no que dizia.

A história faz parte de uma lista de incidentes — longa, por sinal — que a escritora americana Laurie Garrett recuperou para discutir um problema por vezes subestimado: o de como o sexismo prejudica, ou mesmo impede, o avanço das mulheres nas ciências médicas.  Garrett trata do assunto em um ensaio publicado na última edição da revista científica britânica BMJ .
O texto sustenta que, para se destacar nesse campo, as mulheres têm de fazer esforço redobrado, em comparação a seus pares homens: elas são menos convidadas a participar de congressos científicos; as verbas de pesquisa pagas a mulheres, não raro, são menores que aquelas pagas a cientistas homens; e, com alguma frequência, descobertas feitas por pesquisadoras mulheres são apropriadas por colegas do sexo masculino. O problema das mulheres no laboratório (e o ensaio não deixa dúvidas quanto a isso) é o machismo.
Não se trata de mera percepção. Garrett se ampara em dados assustadores: nos EUA, as mulheres são maioria esmagadora nos cursos de graduação ligados à saúde pública. Somam 80% dos estudantes. Mesmo assim, são minoria em cargos de chefia nos programas de saúde pública em que trabalharão depois de formadas: meros 24%.
A distribuição do dinheiro para fazer ciência é desigual: em 2012, somente 30% dos projetos de pesquisa financiados pelo Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na siga em inglês) eram liderados por mulheres. O NIH é um dos principais órgãos financiadores de ciência nos EUA. No Reino Unido, esse trabalho é feito pelo UK Wellcome Trust — e a situação se repete por lá. Entre os britânicos, projetos liderados por mulheres recebem, em média, 45 mil libras a menos que projetos liderados por homens. Em 2017, um experimento feito com os membros do Wellcome Trust encarregados de selecionar os projetos mostrou que, quando não sabem se o cientista é homem ou mulher, eles tendem a oferecer mais recursos às pesquisadoras.
Além disso, os laboratórios podem ser ambientes hostis às cientistas: no ensaio, Garrett destaca que 63% das estudantes de medicina dos EUA foram assediadas ou sofreram algum tipo de violência sexual ao longo de seus anos de formação. Com frequência, diz ela, elas se sentem forçadas a abandonar o local onde trabalham e estudam. Não raro, abandonam também suas carreiras.
Nem sempre o sexismo e as agressões são tão óbvias. Não é incomum que mulheres sejam desencorajadas, pelos seus professores e orientadores, de se especializar em áreas consideradas masculinas. É algo, no entanto, feito com alguma discrição: “Ninguém lhe diz que você não pode ser cirurgiã porque você é mulher”, me disse, anos atrás, a professora Elisa Brietzke, da Universidade Federal de São Paulo. “Eles dizem: ‘ah, eu acho que você tem mais aptidão para fazer pediatria, porque você se relaciona bem com crianças’.”
Na ocasião, Brietzke tentava definir a existência de biomarcadores que ajudassem os médicos a diagnosticar transtornos psiquiátricos como esquizofrenia. No ano anterior, havia ganhado o prêmio L’Oréal para mulheres na ciência. Era uma cientista experiente e reconhecida. Mesmo assim, nossa conversa evoluíra, muito naturalmente, para a questão do preconceito de gênero nesse ramo: “Para você ser uma mulher e ser reconhecida por um aspecto técnico, você tem que ser triplamente boa. Você tem que ser melhor que o melhor homem da sua turma”.
Para Garrett, no entanto, poucas coisas afetam tanto a carreira de um mulher quanto a maternidade. É por volta dos 30 anos, um momento-chave de suas vidas profissionais, que homens e mulheres costumam ter filhos. Mas, não raro, a maior parte das responsabilidades ligadas à criação das crianças recai sobre elas: “A cada nascimento, a mulher se ausenta do trabalho. Enquanto isso, seus colegas homens seguem adiante”, escreveu Garrett. Falta apoio, em casa e na academia, para cientistas e médicas que também são mães. E isso pode selar seu destino na carreira.
Reconhecer esses problemas, diz Garrett, é um passo importante para superá-los: “À medida que a presença feminina aumenta na ciência, medicina e biotecnologia, o valor de suas contribuições para o setor se torna cada vez mais óbvia”, escreveu ela. “Mas isso não conduz, inevitavelmente, a maior igualdade de poder, prestígio e salários”. A igualdade não está garantida, é preciso brigar por ela. Do contrário, corremos o risco, como sociedade, de afastar talentos femininos, importantes, da ciência.
Voltando a Tim Hunt, o Nobel de medicina citado no começo deste texto: depois da recepção negativa aos comentários, o professor teve de renunciar ao cargo que ocupava na UCL, uma das mais importantes universidades do mundo. A medida, muito certamente, não resolveu o problema do sexismo no meio universitário. Mas, ao menos, mandou uma mensagem importante: a de que manifestações desse gênero não podem mais ser admitidas.  

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