Pesquisadora especializada no tema alerta para os perigos do silêncio em sala de aula e aponta escola como espaço onde o debate deve ser tratado com naturalidade
Por Redação Gênero e Número
27 DE DEZEMBRO DE 2018
O EDUSEX – Grupo de Pesquisa Formação de Educadores e Educação Sexual, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) – capacita docentes sobre um assunto que se tornou espinhoso para vários setores da sociedade brasileira nos últimos anos. Membro do grupo e pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Mary Neide Damico Figueiró, psicóloga e doutora em Educação pela Unesp, lançou este ano o livro “Educação Sexual: Saberes Essenciais a Quem Educa” e conversou com a Gênero e Número sobre as dificuldades enfrentadas no Brasil quando o assunto é educação sexual. “Uma criança educada do ponto de vista sexual está preparada para não ser vítima de violações, deixa de ser vulnerável e se torna mais atenta”, ressalta.
Leia a seguir trechos da entrevista.
Leia a seguir trechos da entrevista.
Gênero e Número: Em 2018, a palavra “gênero” ganhou mais força do que nunca nos debates políticos, principalmente quando usada em ambiente escolar. O que significa o debate de gênero nas escolas?
Mary Neide Damico Figueiró: Em primeiro lugar, precisamos pensar o que significa a palavra “gênero”, que tanto tem assustado as pessoas. “Gênero” diz respeito aos jeitos de ser homem ou mulher em dada cultura, em dada sociedade; como o homem ou a mulher se comporta, ou deve se comportar, se vestir, e seu papel na relação com outras pessoas ou na família. Diante da palavra “gênero”, a maioria das pessoas conservadoras e que têm medo das questões ligadas à diversidade sexual – homossexualidade, travestilidade, transgeneridade – sentem medo, porque acreditam que o jeito de ser homem ou de ser mulher é ditado pela biologia. Como se ao nascer já estivesse determinado como a pessoa vai se comportar enquanto homem ou enquanto mulher. Mas não é isso que acontece. Ser homem, comportar-se como um homem, é algo aprendido desde pequeno pelo menino, como a menina também aprende desde pequena como ser mulher. Ser homem no século 21 no Brasil é muito diferente de ser homem no início do século 20. Também é diferente ser homem no Nordeste e ser homem no Sul do Brasil, ou ser homem no Brasil e em um país islâmico.
Conversar sobre gênero na escola é inclusive ajudar meninos e meninas a compreender que os meninos não precisam se encaixar só no que é azul e temer a cor rosa. É ajudar a criança a entender que ser homem ou ser mulher é poder fazer qualquer coisa que ela goste de fazer, escolher qualquer profissão que queira, independentemente do genital com que ela nasceu. É questionar a desigualdade e fazer as crianças pensarem: “na casa de vocês, quem limpa a casa, quem lava a roupa? É só a mamãe?” Vamos conversando e ajudando a criança a compreender, por exemplo, que o serviço doméstico é de responsabilidade de todos, porque todos precisam do cuidado com a casa. Essa igualdade nos deveres e nos direitos precisa ser trabalhada com a criança desde pequena.
Há uma preocupação de alguns setores da sociedade em relação ao tom do debate de acordo com a idade da criança…
Na cabeça de muitos adultos, explicar de onde vêm os bebês é algo feio, porque vai falar de relação sexual, mas existem maneiras de graduar essa explicação.
Eu tenho três filhas, com diferença de dois anos e meio de uma para outra. Me aconteceu mais de uma vez da filha maior fazer determinada pergunta e a menor estar próxima, e eu responder. Com certeza a menor não entendeu tão apropriadamente quanto a mais velha, mas ela capta também do jeito dela alguma mensagem. O que fica de mais importante é que [a menor pensa] “minha irmã fez uma pergunta e minha mãe respondeu, que legal, minha mãe é uma pessoa perguntável. Quando eu tiver alguma dúvida, também vou perguntar para ela”. Em sala de aula acontece o mesmo: o professor explica algo para as crianças e elas entendem em menor ou maior grau, mas entendem também que estão em um ambiente em que se fala com naturalidade, se explica, se esclarece, e isso é muito saudável para a criança. Ela aprende que sexo é um assunto que também se debate na escola, e educação sexual não é apenas ensinar sobre sexo, mas sobre todas as questões ligadas ao corpo.
É saudável para a criança conversar e ter o esclarecimento de um adulto, e é muito importante que os pais saibam que se a criança não tiver essa explicação, ela vai descobrir as respostas de outro jeito, e muitas vezes de um modo menos positivo, como pela internet ou com amiguinhos que nem sempre explicam de maneira positiva. Então é importante que os pais não tenham medo e saibam que quando criamos um espaço para debater sobre tudo que é ligado ao corpo e à vida sexual, ensinamos os alunos a pensar. É um espaço para ensinar a pensar. O professor não deve só falar, muito pelo contrário: ele deve ouvir os alunos, dar espaço para eles expressarem o que pensam, o que sentem, as dúvidas, os receios, e expressar sua opinião.
Existe diferença entre um professor formado ou não como educador sexual ao lidar com um aluno abusado sexualmente dentro da família? Qual a importância dessa formação, quando a maioria dos casos de abuso acontecem por parte de parentes?
Uma criança educada do ponto de vista sexual está preparada para não ser vítima de abusos, deixa de ser vulnerável e se torna mais atenta. Ela sabe que é errado que adultos, pessoas maiores do que ela, queiram tocar em suas partes íntimas ou peçam que ela toque as partes íntimas de outras pessoas. Ela sabe que a relação sexual acontece entre adultos.
Na formação, preparamos os educadores para entenderem que a criança precisa saber o que é um ato indevido de um adulto. O educador vai criar um espaço para as crianças conversarem sobre essas questões. Elas sentirão confiança e poderão se abrir se forem vítimas. O educador também vai saber identificar uma criança abusada sexualmente, porque o comportamento dela, sua expressão facial, suas reações mostram que ela vem sofrendo. Então faz diferença se um professor está bem preparado para trabalhar esse tema.
O futuro presidente [Jair Bolsonaro] já disse que quer manter a inocência da criança. Quando você mantém a criança inocente sobre o que é sexo, ela com certeza vai estar muito mais vulnerável, porque quando acontecer com ela o abuso, ela não vai saber do que se trata ou vai achar que ela é culpada e vai ter medo de contar para os adultos.
Como funciona a formação dos educadores?
Ouvimos os professores e lidamos com as questões que eles enfrentam. Abordamos temas como a chegada da puberdade, doenças sexualmente transmissíveis, direitos sexuais, direitos reprodutivos, diversidade sexual… A gente sempre orienta que não se deve responder imediatamente quando a criança faz uma pergunta. É preciso levar a pergunta para a classe e ver se alguém já tem alguma ideia a respeito. Temos que deixar os alunos falarem primeiro e complementar. Trabalhamos muito também a importância desta educação na vida da criança e do adolescente. O professor tem que sentir que é responsável também pela formação integral do educando, com a formação de valores humanos, o respeito à igualdade, à justiça, à fraternidade, o respeito ao outro.
Mesmo que em casa as crianças tenham com os pais boas informações, boas conversas a respeito de gênero e sexualidade, a escola também precisa tratar desse tema. É na escola que eles têm contato com crianças e adolescentes da mesma idade, para poder debater, trocar ideias, saber que existem várias opiniões sobre uma mesma questão e aprender a respeitar opiniões diferentes. O professor não faz uma aula expositiva, não é só falar; ele tem que saber ouvir e coordenar debates, usar dinâmicas e estratégias que coloquem o aluno em um processo ativo de aprendizagem.
Como tranquilizar famílias em relação à diferença do papel da escola e dos pais na formação sexual de seus filhos?
É natural que os pais estejam assustados, por causa dos discursos distorcidos em relação ao Escola sem Partido e à “ideologia de gênero”. A grande maioria não tem realmente conhecimento do que seja educação sexual. Professores bem preparados não vão dizer se acham certo ou errado fazer sexo antes ou depois de casar. O educador deve criar espaços para que as crianças saibam que todas as questões ligadas à vida sexual têm visões mais progressistas ou mais conservadoras.
Os professores devem trabalhar valores morais, como o amor, o respeito a si mesmo e ao outro, a fraternidade, a não-violência… Podemos dizer que são valores morais cristãos. São os mesmos valores com que as famílias se preocupam agora.
Existe idade certa para iniciar a educação sexual?
A educação sexual começa desde que a criança é pequena. Por exemplo, na educação infantil, quando a professora vai dar banho nas crianças e permite que elas tomem banho juntas. Meninas veem o corpo dos meninos e vice-versa. Elas passam a compreender as diferenças, sem tabus. Quando uma criança de dois anos vê uma professora grávida na escola, ela pode dizer: “aqui dentro dessa barriga tem um bebê que está bem pequenininho, vai sair daqui de dentro e crescer”. O importante não é só esperar pelas perguntas e respondê-las. A gente não espera criança dizer “ei, me ensina a ler e a escrever”. A gente sabe qual é o momento em que ela já pode começar a aprender e em que isso é importante para ela.
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