O longa do mexicano Alfonso Cuarón está entre os finalistas ao Oscar de melhor filme estrangeiro
ZABALBEASCOA
18 DEZ 2018
El País
Roma, o último filme de Alfonso Cuarón – o diretor de Gravidade e E Sua Mãe Também – ganhou o Leão de Ouro no último Festival de Veneza. O diretor aproveitou a oportunidade para dedicar o prêmio a Libo, a verdadeira Cleo, que cuidou dele durante a infância. O filme foi unanimemente qualificado como "obra-prima".
No filme, o diretor e roteirista recria, fundamentalmente, sua infância na Cidade do México durante os anos 1970-77. E seu dia a dia em uma casa racionalista em Roma, um bairro de classe média alta onde ainda era possível levar a vida andando pela cidade. Mas todo esse cotidiano, sua infância e a de seus três irmãos, nada mais é que o recheio da vida de uma eterna secundária, Cleo, a mulher que cuidou deles e os amava, transformada aqui na protagonista graças ao trabalho de Yalitza Aparicio, uma mulher de Oaxaca sem experiência anterior diante de uma câmera e bem-sucedida ao conseguir levar o idioma mixteca para uma tela de cinema (afirma Carolina Mejia em um artigo no El Universal).
No filme, o diretor e roteirista recria, fundamentalmente, sua infância na Cidade do México durante os anos 1970-77. E seu dia a dia em uma casa racionalista em Roma, um bairro de classe média alta onde ainda era possível levar a vida andando pela cidade. Mas todo esse cotidiano, sua infância e a de seus três irmãos, nada mais é que o recheio da vida de uma eterna secundária, Cleo, a mulher que cuidou deles e os amava, transformada aqui na protagonista graças ao trabalho de Yalitza Aparicio, uma mulher de Oaxaca sem experiência anterior diante de uma câmera e bem-sucedida ao conseguir levar o idioma mixteca para uma tela de cinema (afirma Carolina Mejia em um artigo no El Universal).
Assim, o filme, que dura pouco mais de duas horas e meia, é capaz de uma reviravolta nas memórias de Cuarón para se pôr na pele de uma narradora silenciosa. Também consegue recriar um ambiente e uma cinema, intimista – a desajeitada ginástica das empregadas quando terminam de passar a roupa no final de sua interminável jornada laboral, e ao mesmo tempo um cinema de superprodução – as revoltas estudantis ou um incêndio como final de festa com crianças apagando um fogo na floresta e elegantes mulheres contemplando o espetáculo com uma taça de champanhe na mão.
Além da soberba fotografia, da contenção narrativa, do controle das elipses e da extraordinária qualidade de atores que vivem diante da câmera, o sublime no filme é que tudo nele – do mais dramático até o mais cotidiano – é contado no mesmo tom. É por isso que tudo é crível, cotidiano, autêntico, real, amorosamente desajeitado. Para a verossimilhança é essencial que a perspectiva seja o de Cleo, uma das jovens empregadas que, como uma menina a mais dos quatro de quem cuida, não deixa de ver com amor, inocência e submissão tudo o que a rodeia na casa: da exploração à diferença de classe passando pelo afeto e o reconhecimento. Com mais amor do que medo, madruga todos os dias e, certamente por isso, alimenta a dívida de gratidão, má consciência e grande nostalgia que este filme também contém. Que este amor se sobreponha à exploração do trabalho e algumas humilhações profissionais e, acima de tudo, que pareça mais sábio do que ingênuo, é uma conquista de Cuarón, que se desdobra como diretor, roteirista e diretor de fotografia neste filme tão pessoal. É sua infância, é o seu olhar, e são as suas memórias que alicerçam esta película silenciosa, cotidiana e inesquecível que tem como secundários todos os membros da sua família e como protagonista a calada e organizada Cleo e sua casa, reconstituída milimetricamente no número 21 da Rua Tapeji do bairro Roma.
Entremos na casa. O corredor de entrada serve para estacionar um carro a duras penas. Duras demais. A personagem do pai é definida pelo modo como chegando tarde em casa o estaciona meticulosamente. Sua chegada tranquila e esperada – enquanto fuma ao volante e ouve música sinfônica – é um espetáculo para as crianças e para a mãe, que contemplam a proeza com expectativa. O mesmo corredor de entrada, e a mesma dificuldade para estacionar o mesmo carro, indica que as prioridades da mãe são outras. Também ninguém se dedica a observar como estaciona (muito mal). O corredor é, por fim, o lugar de entretenimento do cachorro que, como ninguém o leva para passear, brinca, se emociona ou faz suas necessidades incômodas nesse espaço continuamente limpado e continuamente cheio de cocô. É isso a vida, um limpar e sujar com risos, dor e demonstrações de carinho.
No interior, a cozinha é um dos espaços mais estreitos da casa. E, no entanto, é o mais vivo e luminoso. Lá, Cleo transita. Lá vive a colega que alimenta a família e passa suas roupas. Aquela cozinha dá vista para uma área de serviço. Pelas paredes há escadas metálicas que conduzem ao terraço, o lugar mais mágico da casa, reservado para estender a roupa lavada e fazer uma pausa contemplando os telhados da cidade. E a linha do horizonte, com o céu aberto. O terraço é o melhor lugar da casa. Isso hoje seria impensável: deixar de lado o melhor de uma casa só porque é preciso fazer um mínimo esforço para chegar lá. Essa é a justiça que a casa distribui. O melhor espaço é para aqueles que se esforçam para alcançá-lo. Cleo e as crianças sabem esse segredo. Suas crianças.
Há mais roteiro nos meros aposentos da casa. O cômodo que Cleo divide com a cozinheira, transbordando de roupas para passar, tem um papel com diálogo silencioso. Também os quartos da casa, com o chão diariamente repleto de brinquedos e roupa suja. O chuveiro das empregadas, simplório, mas com luz natural. Ou as duas salas de refeições da casa: uma ao lado da outra.
O resto é uma mulher que cala, mas abraça. Que muito raramente deixa escapar um suspiro, um lamento. De censuras, nem se fala.
O mundo encerrado na casa resultaria em uma história claustrofóbica se o filme não revelasse, também, sua relação com a cidade; o fato de poder caminhar até o cinema – também reconstituído –, a consequência fatal dos congestionamentos, a diferença entre a cidade formal – asfaltada, com árvores e calçadas – e a informal – onde vivem os pobres pisando em lama e se agarrando à vida transformados em homens-bala ou especialistas em artes marciais.
Como sempre acontece, existem muitas cidades em uma só. Mas, com Roma, Cuarón resgata a cidade de sua infância e, com isso, a arquitetura brutalista dos anos 70, recriando a presença maciça e robusta do Centro Médico Nacional (1951) decorado com murais de Francisco Zuñiga e David Alfarro Siqueiros.
Não é fácil saber escolher os poucos dados que deixam ver a vida de uma pessoa. Em Roma estão os de uma pessoa e os de uma família. A vida de duas classes sociais, as enormes distâncias e os encontros fugazes e fundamentais entre ambas. Há a vida de um bairro e a de um menino que olha. Mas é a casa, quando fica suja, se quebra, está cheia de roupa estendida no varal, se enche de gente ou fica sem prateleiras para livros a que conta a vida de seus habitantes. Também a que lhes permite se reinventar. Esse cenário os une e ampara, coloca no mundo cada um dos seus habitantes. Ao mesmo tempo que os protege desse mundo. O que uma casa deve fazer é mostrado com primor pela do bairro Roma. Em grande parte, graças a Cleo. É emocionante Cuarón querer contar sua história.
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