Por Mauro Ferreira, G1
26/12/2018
José de Holanda / Divulgação |
Ana Cañas abre o peito e a boca, tomando posições no sexto álbum, Todxs (Guela Records), quinto disco de estúdio dessa cantora, compositora e instrumentista paulistana.
Com discografia mutante desde que foi revelada nos anos 2000 como uma voz da elite de São Paulo, Cañas se metamorfoseia em Todxs e se reapresenta como voz engajada que defende sobretudo a liberdade sexual feminina e o direito das mulheres ao gozo.
Altivo e necessário em tempos de ondas conservadoras, esse discurso domina a primeira metade do álbum produzido pela própria Cañas com Thiago Barromeo, músico polivalente que responde por beats, baixo, guitarra, violão, baixo synth e congas no disco.
"Não se apavore com uma mulher que goza", alerta a cantora em verso de Lambe-lambe (Ana Cañas), indo direto ao ponto G em letra sobre sexo oral que evoca Lalá (2017), single lançado pela rapper Karol Conka no mesmo ano em que Canãs hasteou a bandeira do ativismo em Respeita (Ana Cañas, 2017), single que deu a pista militante do repertório essencialmente inédito e autoral do álbum Todxs.
Destaque desse repertório que oscila com fôlego menor do que o discurso, a balada-blues Declaro my love (Ana Cañas, Lúcio Maia, Arnaldo Antunes, Taciana Barros) sentencia que a mulher tem direito de exercer a liberdade sexual no tempo e na hora que bem entender.
Música submetida à batida eletrônica que dita o ritmo sintetizado de Todxs, Eu dou (Ana Cañas) atualiza, sem a necessidade do malicioso duplo sentido de outrora, o discurso de empoderadas pioneiras da música brasileira como Carmen Miranda (1909 – 1955).
Diva dos anos 1930 que emplacou sucessos como Eu dei... (Ary Barroso, 1937), Carmen desafiou o patriarcado atacado quase um século depois por Cañas em músicas como a que dá nome ao disco, Todxs, composta e gravada pela artista com o rapper Sombra.
Musicalmente, Todxs mixa ritmos como blues e soul – matrizes da música negra norte-americana diluídas na cadência de composições como Tão sua (Ana Cañas) – com beats eletrônicos que soam por vezes uniformes.
Sem medo de cair no discurso panfletário (até necessário para rebater a atual onda conservadora), Cañas apresenta disco conceitual que se mantém no foco até quando a cantora preserva o gênero do verso-título da balada-soul Eu amo você (Cassiano e Silvio Roachel, 1970).
"Eu amo você, menina", repete Cañas, ao reviver o sucesso de Tim Maia (1942 – 1998) com a liberdade de se passar por lésbica no discurso da canção em regravação em que a cantora explora ao limite as regiões agudas da voz, de potência usada na plenitude na interpretação da dilacerante balada Dói (Ana Cañas).
A sensualidade latente em todo o álbum Todxs justifica o mergulho lânguido em Tua boca (Itamar Assumpção, 1993), feito por Cañas com Chico Chico, filho de Cássia Eller (1962 – 2001), cantora libertária da década de 1990 que parece ter sido uma das musas inspiradoras de Cañas no manifesto deste disco que explicita o viés político ao assentarTijolo (Carlos Posada, 2017) no repertório.
Mesmo com pouco mais de dois minutos, Tijolo alicerça a posição clara de Cañas na luta pela democracia, pela igualdade social e pela manutenção das liberdades individuais. Em Independer (Ana Cañas, Arnaldo Antunes e Taciana Barros), a cantora levanta novamente a voz para bradar o direito a cair fora do jugo machista.
Mas aí, na metade final do álbum Todxs, fica mais evidente que o disco peca pela excessiva reiteração do mesmo discurso em músicas menos inspiradas como A onça e o escorpião (Ana Cañas).
Ainda assim, Todxs dá o bote, se impondo como manifesto necessário em tempos ameaçadores. Ao contrário de muitos homens, Ana Cañas sabe usar bem a língua. (Cotação: * * * 1/2)
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