04/12/2018
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi adotada em 10 de dezembro de 1948. Para marcar o aniversário de 70 anos, nas próximas semanas, o Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH) publicará textos informativos sobre cada um de seus artigos.
A série tentará mostrar aonde chegamos, até onde devemos ir e o que fazer para honrar aqueles que ajudaram a dar vida a tais aspirações.
Leia mais sobre o Artigo 15:
1. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.
Nos arredores da cidade de Ho Chi Minh, capital vietnamita, um homem idoso revelou seu maior desejo: “só tenho uma simples esperança – de quando eu morrer, receber um certificado de óbito, para provar que um dia existi”. Como uma pessoa apátrida, ele não havia existido legalmente durante os 35 anos que viveu no Vietnã – incapaz de ter propriedade, matricular seus filhos na escola ou até mesmo comprar uma motocicleta.
Ex-refugiado do Camboja, ele caiu em um limbo legal por não ter tido a possibilidade de desistir da nacionalidade cambojana para obter a vietnamita, uma vez que o Camboja já havia anulado sua cidadania. Felizmente, em 2010, o Vietnã cortou o nó górdio e concedeu cidadania para cerca de 6 mil pessoas nesta situação.
A maior parte das pessoas do mundo toma como garantido o direito a nacionalidade, reconhecido no Artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). A maioria de nós pode adquirir carteira de identidade, passaporte ou outros documentos sem qualquer problema. Mas, no mundo todo, cerca de 3,9 milhões de pessoas estão oficialmente sem nacionalidade. A Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR) estima que o número verdadeiro possa ser três vezes maior.
Elas sofrem profundamente, condenadas a uma vida sem esperança e marginal, assim como seus filhos, condenando gerações à apatridia.
“Ser destituído de cidadania é ser destituído do mundo; é como retornar a uma selva como homens das cavernas ou selvagens… eles podiam viver e morrem sem deixar quaisquer vestígios”, disse a filósofa política alemã de origem judaica Hannah Arendt, no livro “As origens do totalitarismo”.
A Declaração Universal afirma que todo ser humano tem direitos e liberdades inerentes estabelecidos pelo documento. Por esta razão, muitos se opõem à formulação de Hannah Arendt de que nacionalidade é o “direito de ter direitos”. No entanto, sem nacionalidade, é praticamente impossível exercer muitos outros direitos – ir à escola, receber tratamento médico, conseguir um emprego legalmente, relatar um crime, viajar entre fronteiras e, como o vietnamita lamentou, até mesmo permitir que sua família receba seu certificado de óbito.
Algumas pessoas são apátridas por conta da fragmentação de Estados, ou desintegração de impérios, há gerações. Outras não têm, ou perdem, nacionalidade involuntariamente por conta de leis mal formuladas ou conflitantes dentro de um ou mais países, quando os pais têm diferentes nacionalidades. Até mesmo uma mudança em práticas administrativas podem fazer com que pessoas, por equívoco, caiam em um limbo legal por conta de alguma peculiaridade de nascimento, casamento ou herança.
Algumas pessoas são deliberadamente transformadas em apátridas – tendo sua nacionalidade recusada ou retirada como parte de um processo de perseguição política, racial ou étnica, e frequentemente são subsequentemente forçadas a fugir para outros países, onde permanecem apátridas por muitos anos. Os rohingyas em Mianmar são um exemplo óbvio. A filósofa alemã Hannah Arendt – que foi tanto apátrida quanto refugiada, primeiro na França e depois nos Estados Unidos – é outro exemplo.
Já em 2010 – sete anos antes da rodada mais recente de violência, possivelmente resultando em genocídio, eclodir no estado de Rakhine, em Mianmar – o relator especial da ONU para o país alertava que o “problema da apatridia” – incluindo a rejeição de emissão de certidões de nascimento para muitas crianças muçulmanas desde 1994 – está na “raiz de flagelos crônicos” sofridos pelos rohingyas. Mais recentemente, em relatório de setembro de 2018, a missão de checagem da ONU em Mianmar destacou que “a rejeição de nacionalidade é baseada em motivos raciais proibidos”.
Desde que a DUDH foi adotada, há 70 anos, houve um reconhecimento crescente do problema da apatridia. Nos últimos anos, houve um esforço concentrado para solucioná-lo e impedir que ocorresse, com o secretário-geral da ONU enviando um relatório anual sobre privação de nacionalidade à Assembleia Geral.
“Nos últimos dez anos, perdi todos os meus direitos: não pude estudar, trabalhar, ou dirigir. Não posso estar com meu marido. Simplesmente ter uma vida e uma nacionalidade após 17 anos de apatridia… é muito para se pedir?”, contou uma mulher de 24 anos mantida em detenção porque seus pais infringiram leis migratórias quando era criança.
Frequentemente, o problema pode ser solucionado com o metafórico movimento de uma caneta – uma simples mudança nas leis, por exemplo, para eliminar discriminação de gênero que impede mulheres de passar sua nacionalidade para seus filhos. Emissão de certidões de nascimento também é um passo final na prevenção de apatridia.
Desde que o ACNUR lançou uma campanha em 2014 para impedir e acabar com a apatridia, mais de 166 mil apátridas receberam ou tiveram confirmação de suas nacionalidades e 20 Estados aderiram às duas Convenções sobre Apatridia. Nove Estados estabeleceram ou melhoraram procedimentos de determinação de apatridia e seis reformaram suas leis de nacionalidade, entre outras melhorias.
Mesmo com progressos sendo feitos, um debate surgiu sobre a possibilidade de as mudanças climáticas acrescentarem milhões a mais aos números de apátridas. Juristas já estão explorando soluções no caso de alguns Estados insulares ficarem inteiramente submersos pelos crescentes níveis do mar – embora nem todos concordem que isto resultaria em todos os cidadãos se tornando apátridas.
Um líder da juventude de Kiribati, um dos países de menor altitude no mundo, disse ao Conselho de Direitos Humanos em 2017 que todo seu povo pode – no pior cenário – ter que fugir por conta de crescentes níveis do mar, erosão ou ciclones, e que “realocação significa não ter casa para onde voltar”.
Rae Bainteiti, de 27 anos, acrescentou: “significa deixar sua terra e seu país de vez e cortar laços com tudo que é importante para você como um povo”. “Tal ação iria ameaçar nossa soberania, nossa cultura, nossa identidade e todos os nossos direitos humanos fundamentais”.
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