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sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Mulheres, vítimas da primeira luta de classes?

por 
 10/12/2018 
O poder de fazer da mulher uma propriedade está na raiz do patriarcado — mas também do capitalismo. Ele modela todas as outras formas de propriedade e de captura do  que é fecundo
Por Guido Viale, em Il Manifesto | Tradução: Moisés Sbardelotto, no IHU
A entrada em campo de um movimento mundial de mulheres que enche a cena política e social dos últimos anos – do qual a marcha do sábado passado, em Roma, era apenas uma articulação – leva a pensar que esse movimento será protagonista de todo possível processo de transformação das relações sociais nas próximas décadas.

A irrupção de temáticas, embora ligadas à “questão social” e aos objetivos da luta de classes dos últimos dois séculos, mas substancialmente estranhas aos modos tradicionais de fazer e viver a política, desloca até à irrelevância as forças das diversas esquerdas, mas também, de modo mais geral, a arena onde se desenrolou grande parte do conflito político ao qual nos acostumamos.
Isso impõe a nós, homens, a tarefa de discutir e rever – continuamente e não de vez em quando – o modo como nos relacionamos com a “outra metade do céu” e, em particular, com aquela parte dela que frequentamos pessoalmente pelas mais diversas razões; mas também a tarefa de entender como aproveitar os instrumentos teóricos e práticos que o feminismo nos fornece – ou que conseguimos captar – em uma revisitação geral de todas as nossas referências.
Não se trata de ser “feministas”, de imitar as suas práticas: isso seria ridículo. Sempre nos faltará a experiência de ser mulher e de tudo o que toda mulher pode obter do conhecimento do próprio corpo e da própria vivência. Mas o que o feminismo nos põe à disposição pode nos abrir uma fresta para as estruturas de poder das quais, bem ou mal, fazemos parte.
Essa fresta, destinada a se tornar um abismo, é o patriarcado; o seu indissolúvel nexo com realidades difusas, como a propriedade, a dominação, a exploração, a soberania; o fato de ser fundamento e marco de todas as formas que aquelas realidades assumiram nas diversas fases da história, incluindo, obviamente, o capitalismo financeiro, extrativo e predatório (não uso o termo neoliberalismo, que considero totalmente inapropriado) atual.
A raiz do patriarcado é a “propriedade” do homem sobre a mulher, a sua pretensão de considerá-la e o poder de fazer dela uma coisa “sua”. Sobre ela, modelaram-se todas as outras formas de propriedade que acompanharam a sucessão das civilizações: sobre os animais domesticados, sobre os campos, sobre as pastagens e as florestas, sobre os escravos, sobre os edifícios, sobre o dinheiro, sobre os meios de produção, sobre o conhecimento, sobre o genoma: todas formas de acumulação daquilo que é fecundo ou considerado como tal, daquilo que “produz” ou promete produzir.
O modelo é a fecundidade da mulher, a produção da prole, desde sempre a forma fundamental da riqueza: a perpetuação, em outras vidas, da própria existência. Não só isso. A propriedade de uma, de várias ou de muitas mulheres talvez seja a razão última da apropriação de todas as outras coisas, consideradas dignas de acumulação. Toda a riqueza do mundo, as propriedades acumuladas ao longo dos séculos, não serviam e não servem senão para isso: de forma direta ou simbólica.
E a soberania, não de uma comunidade, pequena ou estendida, que se autogoverna, compartilhando ônus e benefícios da convivência, mas sim de uma “pátria” (cuja assonância com patriarcado foi repetidamente ressaltada), isto é, de um Estado, cujos membros são mantidos juntos pela dominação de um Leviatã (um tirano) ou por uma “vontade geral” que precisa de alguém que a interprete para se externar – os “gestores” da soberania –, nada mais é do que uma extensão em nível social daquela forma elementar de dominação que é a propriedade: uma das tantas condições para garantir a dos homens sobre as mulheres. Acima desses soberanos, há apenas um deus, também ele um Pai. Um papa que havia levantado a hipótese de que deus também era mãe morreu cedo.
Até mesmo a revolta das classes oprimidas contra seus dominadores muitas vezes assumiu as características de uma luta para manter, sem ter que recorrer a uma propriedade da qual não dispunham, um poder sobre as “próprias” mulheres que a riqueza alheia colocava em risco.
Hoje, a guerra do fundamentalismo islâmico contra o Ocidente evidencia que o que está em jogo nesse “choque de civilizações” é a conquista ou reconquista de um poder sobre as mulheres que o feminismo ou a emancipação da mulher no mundo ocidental põem em causa. Sem ver que grande parte dessa emancipação, particularmente no campo sexual, mas sobretudo o uso e a exibição do corpo da mulher por motivos comerciais, nada mais são do que o outro lado de uma dominação sobre a mulher que mudou de forma, mas que é reafirmado de novas maneiras.
O debate sobre a relação entre capitalismo e patriarcado trouxe à tona que a aceitação ou a legitimação das relações de dominação e exploração nas sociedades em que vivemos têm raízes, como já captara Marx nos “Manuscritos econômico-filosóficos”, na relação entre homens e mulheres.
A permanência em todas as latitudes e nas formas mais diversas de várias formas de violência – aberta ou mascarada, e até mesmo inconsciente – contra as mulheres, até ao feminicídio, revela a profundidade dessas raízes, e é o que impede de prever ou praticar uma verdadeira alternativa a uma sociedade cujo fim último é a aquisição de renda, riqueza ou poder como condições irrenunciáveis para conservar de algum modo uma propriedade dos homens sobre as mulheres.

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