O que aconteceu entre Edgar Degas e sua modelo de 14 anos, Marie van Goethem? A escritora Camille Laurens pesquisou durante anos para descobrir a resposta.
10/12/2018
"Por que você diz que De Gas [sic] não consegue ter uma ereção?", Vincent van Gogh escreveu em 1888 a seu amigo, o artista Émile Bernard. "De Gas vive como um pequeno auxiliar de escritório de advocacia. Ele não gosta de mulheres. Sabe que se gostasse delas e trepasse com frequência ele enlouqueceria e não conseguiria ser bom pintor."
Na carta, o pintor de Noite Estrelada se referia ao impressionista francês Edgar Degas, que ficou célebre por retratar bailarinas do século 19 em momentos entre grand jetés e piruetas, fazendo alongamentos, descansando e arrumando suas malhas de balé, em telas que hoje estão no Metropolitan Museum of Art, em Nova York, no Musée d'Orsay, em Paris, na National Gallery, em Londres, e muitos outros museus.
Um fato menos conhecido é que Degas era misógino celibatário e enxergava as mulheres como "animais humanos", "fêmeas da espécie humana".
Um fato menos conhecido é que Degas era misógino celibatário e enxergava as mulheres como "animais humanos", "fêmeas da espécie humana".
É o que explica a escritora Camille Laurens em Little Dancer Aged Fourteen(Pequena Bailarina de 14 Anos), um livro novo que trata da vida da modelo mais reconhecível usada por Degas, alguém cujo nome, Marie van Goethem, é muito menos icônico que a pequena estátua que a mostra em perpétua quarta posição do balé.
O livro de Laurens chega em um momento cultural em que a moralidade da relação entre artistas e seus modelos vem sendo objeto de escrutínio intenso. Em dezembro passado duas irmãs redigiram uma petição contestando a decisão do Metropolitan Museum de expor uma pintura do artista moderno franco-polonês Balthus que mostra uma menina de 12 anos em posição de descanso, com a saia para o alto e sua calcinha exposta. A petição reacendeu um debate sobre o tipo de conduta (entre artistas geralmente homens e mais velhos e suas modelos, historicamente mulheres e jovens) que a história está disposta não apenas a tolerar, mas exaltar.
Hoje as discussões sobre os métodos pouco recomendáveis usados pelos artistas muitas vezes dizem respeito à sexualidade e ao consentimento. Discute-se se os artistas abusaram de seu poder no processo de criar arte, se fizeram sexo que talvez não tenha sido consensual e usaram sua prática criativa como escudo para se protegerem.
A estátua de Degas Pequena Bailarina de 14 Anos traz uma ideia um pouco diferente da dinâmica entre o artista e a modelo, se bem que uma ideia igualmente imbuída de desequilíbrio de poder baseado no gênero. Laurens postula que é altamente improvável que Degas tenha abusado sexualmente de Van Goethem, de 14 anos, porque Degas era celibatário conhecido, fato que foi documentado fartamente, sendo sua abstinência sexual motivada pela rejeição às mulheres. Mas, diz Laurens, essa rejeição é um aspecto que acabou esquecido na história desse pioneiro da arte moderna, assim como acabou esquecido seu papel em ajudar a destruir a vida de uma menina cuja imagem ajudou a elevá-lo à fama em primeiro lugar.
Nem sempre sabemos o que ocorreu entre os pintores e suas modelos entre as quatro paredes de seus ateliês, mas alguns artistas homens facilitaram as especulações. "Como ela era linda, nua na cama", disse o pintor romântico francês Eugène Delacroix, falando de uma modelo de 15 anos. Outro artista, Puvis de Chavannes, costumava encerrar suas sessões de pintura de modelos perguntando "Você gostaria de ver o .... do grande homem?", escreve Laurens.
Esses homens exemplificam o arquétipo do artista predador que está ao centro da discussão atual do movimento #MeToo e que poderia ser usado hoje para descrever homens como Harvey Weinstein ou, ao que consta, o fotógrafo Terry Richardson. Mas o abuso cometido por Degas era diferente. Ele se assemelha mais aos recantos da internet ocupado por "incels" ("involuntary celibates", ou celibatários involuntários) – homens heterossexuais celibatários que sentem ódio e desconfiança por mulheres.
Laurens identifica a origem da misoginia de Degas em sua juventude, quando ele teria contraído uma doença venérea num bordel. Adulto, Degas conversava com poucas mulheres, exceto por suas empregadas domésticas. Seus amigos acreditavam que ele temia as mulheres, especialmente com relação a como poderiam interferir com a qualidade de seu trabalho. Seu amigo e também artista Jacques-Emile Blanche o descreveu como "misógino e cirurgião" quando ele criou a imagem de Marie van Goethem. Degas era um voyeur que adotava a atitude de uma figura paterna, um crítico chauvinista que encarnava todos os elementos fundamentais da masculinidade tóxica.
Com o passar do tempo, suas odes pintadas à Ópera de Paris assumiram os tons róseos da nostalgia, com todas aquelas fitas e saias de tule ocultando intenções mais sombrias. As bailarinas impressionistas de Degas enfeitam canecas de café e adornam dormitórios universitários, sendo tão universalmente e inequivocamente apreciadas quanto os Nenúfares de Claude Monet. Meninas em museus imitam as posturas das bailarinas de Degas para ser fotografadas em poses bonitinhas. No entanto, quando Degas pintava bailarinas, ele não enxergava um talento nascente nem ingenuidade encantadora. Enxergava "pequenas ratazanas", descobriu Laurens.
As meninas que se tornavam bailarinas, às vezes com apenas 8 anos de idade, trabalhavam dez a 12 horas por dia, seis a sete dias por semana, sob condições devastadoras. (Uma bailarina morreu quando seu tutu pegou fogo durante um ensaio). Quando chegavam aos 13 anos e supostamente alcançavam a maturidade sexual, frequentemente passavam a ser pagas para fazer sexo com homens que ficavam à espera nos bastidores da ópera. Ganhavam o apelido de "ratazanas" porque era sabido que os ratos transmitiam sífilis.
Para Degas, o fato de jovens bailarinas fazerem sexo com homens velhos era sinal não de abuso por parte dos homens, mas de que as bailarinas eram pecaminosas. Ele supunha que os contatos das meninas com homens poderosos significava que elas eram capazes de manipular os homens nos bastidores, uma ideia que lhe provocava horror e também fascínio. Degas claramente enxergava algo de vital em suas modelos, fato que o levava a dizer coisas como "encerrei meu coração numa sapatilha de cetim cor-de-rosa".
O desdém com que Degas encarava as mulheres – e em especial as bailarinas – está inscrito na própria escultura Pequena Bailarina, cujos traços faciais foram alterados para enfatizar a suposta degeneração moral de Van Goethem. Degas subscrevia a fisiognomonia, doutrina que supõe que os comportamentos criminosos sejam geneticamente transmitidos e, portanto, se manifestem em traços físicos das pessoas. Assim, ele achatou o crânio de Van Goethem e esticou o queixo dela para deixá-la com aparência especialmente "primitiva", em um reflexo visual de um estado interno.
Feito de cera pigmentada de abelhas, argila e uma armadura metálica e vestida com roupas e sapatilhas genuínas, a escultura foi inicialmente ironizada por se assemelhar a uma boneca comum de cera. A feiúra manifesta produzida por Degas chocou o mundo da arte oitocentista. Mas os insultos que o pintor suportou foram poucos em comparação aos que foram dirigidos contra a própria modelo, descrita por um crítico de arte como tendo "rosto doentio e acinzentado precocemente envelhecido e marcado".
Mas as atitudes mudaram com o passar dos anos, como é o caso de muitas obras de arte que não são apreciadas na época de sua criação. A Pequena Bailarina de Degas, que o artista passou quatro anos criando, acabou sendo exaltada como um ponto de inflexão na evolução da arte rumo à modernidade. Como escreveria um crítico posterior, ela era "original, destemida, verdadeiramente moderna".
É claro que Marie van Goethem não foi beneficiada por esse triunfo artístico. Vasculhando os livros de contabilidade da Ópera de Paris, Laurens descobriu que em 1882, um ano após Degas completar sua escultura, Van Goethems teve seu salário reduzido e depois acabou sendo demitida de seu cargo de bailarina. Laurens calcula que o trabalho como modelo do artista tenha prejudicado sua assiduidade aos ensaios, até que a companhia teria ficado farta e a demitido.
Não restou nada documentado de sua vida depois desse ponto – nenhum registro de casamento, filhos, prisão ou morte. "Marie desapareceu sem deixar rastro", Laurens concluiu. "A pequena bailarina saiu voando. É provável que seus restos mortais não estejam em um túmulo próprio, mas em alguma vala comum."
Nos capítulos finais do livro Laurens chega a uma conclusão tenebrosa: "Se Edgar Degas não tivesse escolhido Marie como modelo para sua Pequena Bailarina, ela provavelmente teria continuado a trabalhar na Ópera de Paris. Continuando com o balé, ela teria evitado o mergulho no inferno cujos indícios são tão claros."
Laurens não conseguiu descobrir exatamente o que aconteceu entre Degas e Van Goethem entre 1878 e 1881, mas ela oferece alguns detalhes perturbadores revelados pelas pesquisas que realizou entre 2014 e 2016. Por exemplo, para medir as proporções físicas de Van Goethem Degas utilizava um instrumento especial que às vezes cortava o rosto das modelos, escreve Laurens. Como disse o artista Jacques-Emile Blanche, "Degas não seduzia – ele metia medo".
O que Laurens afirma com certeza é que Marie van Goethem fez parte de um panteão infeliz de modelos de artistas – em sua maioria mulheres, mas também muitas crianças – cujo valor como seres humanos perdeu para seu papel de "musas".
Uma dessas mulheres foi Linda, a modelo púbere da tela de 1905 Fillette à la Corbeille Fleurie(Garotinha com vaso de flores), de Pablo Picasso, vendida em leilão este ano por US$115 milhões. Antes do leilão, historiadores realizaram uma pesquisa meticulosa sobre as origens do quadro, mas os detalhes da vida de Linda foram passados por cima, exceto pelo fato de que ela provavelmente "morreu jovem, lamentavelmente". Como Marie van Goethem, sua imagem foi valorizada mais que seu trabalho, seu sofrimento e sua história.
A pesquisa de Laurens procura corrigir o viés histórico de gênero, desmontando o mito persistente segundo o qual a maior realização de uma mulher seria inspirar o gênio criativo de um homem. O objetivo da autora é simples: tratar Marie van Goethem como ser humano, em vez de simples catalizadora. Nesse sentido, Little Dancer Aged Fourteen ecoa o romance The Real Lolita, de Sarah Weinman. Baseado em um crime da vida real, o livro conta a história de Sally Horner, cujo sequestro e estupro inspiraram o infame romance de Vladimir Nabokov.
Com Little Dancer, Laurens se debruça sobre um problema contemporâneo persistente: o que fazer com obras de arte altamente apreciadas, mas cujas origens são repulsivas? Não devemos desviar nosso olhar, exorta Laurens por seu exemplo. Pelo contrário, devemos mergulhar mais fundo na obra e nas pessoas que colaboraram para sua criação. É tentador projetar uma fantasia sobre a história, retratando as pessoas como gênios ou monstros, sedutoras ou vítimas. Mas a história da arte não é simples; não pode ser resumida à eliminação de maus atores e à celebração de heróis e heroínas não reconhecidos como tais.
Little Dancer Aged Fourteen penetra o véu da reputação rósea de Degas para revelar um artista que não é herói e uma modelo que não é um fantasma.
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