Nos quatro primeiros meses do ano, o número de pessoas que tiraram a própria vida na cidade mais violenta da Amazônia já é quase o triplo da média anual do Brasil
El País
ELIANE BRUM / CLARA GLOCK
27 ABR 2020
Ela só lembra que gritou. Foi um grito que tomou conta de tudo, abarcou todo o movimento ao redor, fez com que as pessoas e as coisas em torno dela desaparecessem. E então tudo escureceu. Ela estava indo em direção ao corpo dilacerado do filho para abraçá-lo uma última vez. O adolescente de 17 anos enviara uma mensagem pedindo desculpas por tirar a própria vida, e ela, parentes e amigos corriam pelas ruas de Altamira para tentar impedi-lo. Um tempo sem tempo, como ela lembra, uma corrida contra um relógio desconhecido. E então um corpo fez seu voo vertical para o chão. O adolescente havia se atirado de uma torre construída dentro de uma escola. Quando gritou, a mãe sabia que tinha perdido. O urro de dor emergiu de dentro dela para dar conta da escuridão que desde 9 de fevereiro a acompanha.
Até este momento —27 de abril— nenhuma pessoa morreu por covid-19 em Altamira, no Pará. Mas, de janeiro até hoje, 15 pessoas se suicidaram, segundo o Centro de Perícias Científicas Renato Chaves, da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado do Pará: 9 deles eram jovens entre os 11 e os 19 anos, uma tinha 26 anos e os outros cinco variavam dos 32 aos 78 anos. A média no Brasil, segundo o DataSus, é de 6 suicídios a cada 100.000 habitantes. Altamira tem uma população estimada em 115.000. O número de mortes de 2020 coloca a cidade amazônica, em menos de quatro meses, com quase o triplo da média brasileira anual de suicídios —e já é igual ao total de 15 mortes autoinfligidas registradas no município durante o ano inteiro de 2019. Mesmo para um país que tem testemunhado o aumento do número de suicídios na juventude, as estatísticas de Altamira são alarmantes. Sem apoio do poder público, os movimentos sociais fazem um mutirão para impedir mais mortes. A pergunta que atravessa a população é: por quê? E por que agora?
Até este momento —27 de abril— nenhuma pessoa morreu por covid-19 em Altamira, no Pará. Mas, de janeiro até hoje, 15 pessoas se suicidaram, segundo o Centro de Perícias Científicas Renato Chaves, da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado do Pará: 9 deles eram jovens entre os 11 e os 19 anos, uma tinha 26 anos e os outros cinco variavam dos 32 aos 78 anos. A média no Brasil, segundo o DataSus, é de 6 suicídios a cada 100.000 habitantes. Altamira tem uma população estimada em 115.000. O número de mortes de 2020 coloca a cidade amazônica, em menos de quatro meses, com quase o triplo da média brasileira anual de suicídios —e já é igual ao total de 15 mortes autoinfligidas registradas no município durante o ano inteiro de 2019. Mesmo para um país que tem testemunhado o aumento do número de suicídios na juventude, as estatísticas de Altamira são alarmantes. Sem apoio do poder público, os movimentos sociais fazem um mutirão para impedir mais mortes. A pergunta que atravessa a população é: por quê? E por que agora?
O crescimento do número de suicídios de adolescentes é um fenômeno do Brasil dos últimos anos. Entre 2011 e 2018, houve um crescimento de 10% nas taxas de suicídio entre jovens de 15 a 29 anos no país. O maior aumento ocorreu entre 2016 e 2017, segundo o Perfil Epidemiológico divulgado em setembro de 2019 pelo Ministério da Saúde. Em todo o mundo, a morte por lesão autoinfligida ou autoprovocada intencionalmente, como o suicídio é chamado nas estatísticas, já se tornou a segunda causa de óbitos de jovens, perdendo apenas para acidentes de trânsito, como mostram os dados da Organização Mundial da Saúde.
As razões desse aumento estão sendo estudadas por profissionais da saúde mental. Ao investigar suicídios entre adolescentes que vivem nas grandes cidades brasileiras, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) constataram que, entre 2006 e 2015, a taxa de suicídio entre jovens de 15 a 19 anos aumentou 24% nas seis maiores cidades brasileiras: Porto Alegre, Recife, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. Nos municípios do interior do país cresceu 13%. O aumento contrasta com a evolução dos índices de suicídios no resto do mundo, que caíram 17% no mesmo período. Os pesquisadores concluíram que indicadores socioeconômicos, especialmente o desemprego e a desigualdade social, podem estar associados a esse aumento.
Em Altamira, conforme pesquisadores ouvidos pelo EL PAÍS, o salto de suicídios de 2020 indica um aumento avassalador. Como comparação, no município paulista de Santana do Parnaíba, que detectou uma evolução preocupante no número de suicídios de adolescentes, houve duas mortes neste ano, nenhuma delas nesta faixa etária. Em Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo, o suicídio de dois jovens na mesma semana, dentro de um shopping, ganhou o noticiário em março e provocou muito alarme na cidade. Com uma população sete vezes maior do que Altamira, Ribeirão Preto registrou cinco suicídios, de janeiro até hoje, de jovens com menos de 19 anos, contra nove mortes nesta faixa etária em Altamira. Ainda assim, também na cidade paulista os números apontam um aumento significativo, considerando que, em todo o ano de 2019, houve seis suicídios de adolescentes. Durante uma semana, EL PAÍS tentou obter os números de suicídios de outros municípios do Pará em 2020 junto ao Datasus, ao Ministério da Saúde e à Secretaria de Saúde do Estado do Pará (SESPA). Com a justificativa de sobrecarga devido ao coronavírus, as estatísticas não foram fornecidas.
Em Altamira, a violência é cotidiana. Não por acaso o município paraense foi classificado como de “vulnerabilidade muito alta”, conforme o Relatório do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência de 2017 (que usou como base dados de 2015), desenvolvido pela Secretaria Nacional de Juventude em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo o estudo, a vulnerabilidade à violência estaria ligada ao menor acesso à escola e ao mercado de trabalho, e à maior mortalidade por homicídios e acidentes de trânsito. Altamira ostenta o segundo maior índice de vulnerabilidade, entre jovens de 15 a 29 anos, nos municípios brasileiros com mais de 100.000 habitantes. Como comparação, o Rio de Janeiro, cidade associada à violência extrema, está na 134ª posição.
Contágio e prevenção
No passado, a imprensa não publicava casos de suicídio para evitar que pudessem influenciar outras pessoas a realizar o mesmo gesto. Desde a massificação da internet, essa medida de prevenção se tornou obsoleta: as pessoas deixam cartas de despedida nas redes sociais, há manuais de suicídio circulando, assim como fotografias e vídeos de crianças e adolescentes fazendo automutilação ou se suicidando, e até grupos transnacionais que auxiliam nas mortes nos subterrâneos da internet, chamados de “deep” ou “dark” web. Em 2017, o jogo Baleia Azul foi relacionado ao aumento de suicídios de adolescentes em todo o planeta. Séries de TV como a 13 Reasons Why (Netflix) ajudaram a romper o silêncio sobre algo que acontece e que está aumentando.
A realidade é que automutilação e suicídio são temas amplamente frequentados pelos adolescentes na internet —e raramente pelos melhores caminhos. Se a sociedade não debater o tema em todos os espaços, com conhecimento, responsabilidade e desejo de compreender, só restam mesmo os subterrâneos das redes e os programas e reportagens sensacionalistas que convertem o suicídio em espetáculo. “Falar” sobre o suicídio passou a ser uma medida de saúde pública. “É preciso falar, falar muito. É preciso debater o tema nas escolas, em todo o lugar. O suicídio é uma questão em que toda a sociedade precisa se envolver”, afirma a psiquiatra Maria Aparecida da Silva. Alarmada com o aumento do número de casos de automutilação e suicídio entre crianças e adolescentes, ela está construindo um trabalho de prevenção do suicídio junto com outros profissionais de saúde mental da rede pública de Santana do Parnaíba, município da região metropolitana de São Paulo.
Em Altamira, parte dos adolescentes que se suicidaram deixou uma carta de despedida no Facebook e enviou mensagens para familiares e amigos pelo WhatsApp. Essas mensagens podem ser consideradas como um disparador de contágio entre a população de jovens que têm as redes sociais e o Whatsapp como o principal meio de comunicação. Para evitar que ganhar nome e imagem em um veículo de circulação internacional possa incentivar jovens fragilizados a cometer uma violência contra si mesmos, nenhum dos mortos nem seus familiares e amigos serão identificados nesta reportagem.
O suicídio é um estigma tão forte em Altamira que uma das famílias abandonou tudo e foi tentar recomeçar a vida em outro lugar. “Fiquei mais de um mês sem sair de casa porque ou me olhavam como coitada ou como culpada. Somos para sempre a família do suicida”, conta uma mãe. Outra mulher foi proibida pelo empregador de dar qualquer depoimento sobre o suicídio de seu familiar. O suicídio como vergonha, como mancha, é uma ignorância que tem ajudado a impedir o debate e a construção das políticas públicas necessárias.
O imperativo de romper o silêncio se tornou explícito para as lideranças comunitárias de Altamira durante o enterro das vítimas. “Em todos os velórios, as pessoas chegavam pra abraçar e não falavam da nossa dor”, contou a tia de um dos adolescentes mortos. “Em vez disso, diziam: ‘Por favor, me ajude, meu filho tá assim, minha filha tá assim, há várias pessoas na minha família assim’. Ficou claro que há uma quantidade enorme de famílias que guardavam esse segredo na caixinha. Agora, quando viram que os jovens realmente podem morrer, estão pedindo socorro”.
SUS, Governos e responsabilidades
Os pedidos de ajuda, porém, esbarram nos muros de uma rede de saúde mental precária e totalmente insuficiente para atender a uma demanda que só cresce. A maioria dos jovens que se suicidaram já tinha apresentado sintomas de depressão e outros sofrimentos psíquicos, e alguns já se mutilavam e/ou tinham tentado suicídio antes. Profissionais do posto de saúde de um dos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs) contaram que chegam a atender a 30 casos de automutilação por dia.
Duas questões se repetem no depoimento dados pelos parentes das vítimas ao EL PAÍS: 1) a dificuldade de atendimento na rede de saúde mental (algumas famílias tiveram que fazer um enorme esforço para pagar assistência privada e outras desistiram por não ter condições financeiras); 2) no caso dos que conseguiram assistência, houve resistência dos adolescente em se manter ou voltar ao tratamento.
A fragilidade da rede de saúde mental, não só em Altamira, como no restante do Brasil, é flagrante. O SUS, desde a irrupção da pandemia festejado por muitos que antes colaboraram com o seu sucateamento, tem sido enfraquecido nos últimos governos para beneficiar os planos de saúde e a privatização da assistência. É fácil compreender que será preciso retomar —e multiplicar— o investimento no SUS se o Estado quiser barrar o aumento do número de suicídios da juventude do país.
Em Altamira, cidade que sofreu uma mudança repentina em seu perfil, devido ao megaempreendimento da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, essa fragilidade se tornou dramática. Em 22 de abril, 66 profissionais de saúde do município assinaram uma carta pública às autoridades cobrando medidas concretas da Secretaria de Saúde de Altamira e sugerindo a “elaboração de um plano municipal de saúde mental, em parceria com as universidades e sociedade civil da região”:
“Na região de Altamira, onde sofremos com o impacto de grandes empreendimentos que aumentam o influxo migratório, as regiões de periferia se inflam sem recursos comunitários adequados, e a violência decorrente desses processos chegou a nos colocar no patamar de cidade mais violenta do Brasil. Observamos o impacto dessas questões na Saúde Mental de nossa população de diversas maneiras, e mesmo assim não temos transparência em relação ao uso de verbas como a dos royalties de Belo Monte aplicadas na Rede de Atenção Psicossocial. O aumento do acesso a recursos de saúde mental não acompanhou essas mudanças, e pelo contrário, tivemos uma piora desses recursos. (…) Essa sobreposição de questões tem se mostrado claramente no município de Altamira, com 11 casos de suicídio desde o início do ano (lembrando que a média nacional, segundo dados do Ministério da Saúde, é de 4 a 5 casos a cada 100 mil habitantes por ano, por isso já podemos considerar que, em menos de 4 meses, estamos em uma situação alarmante). Os profissionais de saúde estão muito impactados com o ocorrido, alguns criando iniciativas de maneira voluntária, junto com mobilizações de coletivos de juventude e movimentos sociais, porém a Secretaria de Saúde não tem se posicionado nem colocado medidas efetivas em relação a isso”.
Durante dois dias, EL PAÍS enviou emails e tentou contato por telefone e WhatsApp com assessores diretos da Secretaria Municipal de Saúde de Altamira, com o objetivo de obter uma entrevista com o secretário Renato Mengoni Júnior, para saber se existe um plano de enfrentamento ao suicídio no município e qual a posição diante das reivindicações de jovens e profissionais de Saúde. Não obteve resposta. EL PAÍS também procurou o secretário de Saúde do Estado do Pará (SESPA), Alberto Beltrame, para questionar sobre as ações que seriam tomadas sobre a série de suicídios em Altamira e que resposta daria a uma carta enviada pelo coletivo Mães do Xingu solicitando providências. Emails e telefonemas não foram respondidos.
Sociedade e mobilização
Diante de uma rede de saúde mental reconhecidamente precária, os movimentos sociais de Altamira se mobilizaram para, nas palavras das lideranças, “tentar salvar a juventude”. “Essa questão do suicídio me angustia muito, porque sei a dor que essas mães estão sentindo. A gente fica muito perdida quando um filho morre, ainda mais quando tira a sua própria vida, e vem aquele ‘por que’ e ‘se’. Resolvi reunir técnicos e assistentes sociais para darmos um apoio a essas mães”, conta Málaque Mauad Soberay, que criou o Mães do Xingu após seu filho, Magid, de 22 anos, ser assassinado.
O coletivo articulou dois grupos de apoio a “sobreviventes do suicídio” —um para familiares e outros para jovens que tentaram se matar. Com encontros aos sábados e colaboração de profissionais voluntários da área da saúde mental, os participantes mantêm uma distância física para trocar informações e dores durante a pandemia de covid-19. A coordenadora do campus de Altamira da Universidade Federal do Pará (UFPA), Maria Ivonete Coutinho da Silva, também se uniu ao esforço comunitário. O coletivo Mães do Xingu articula ainda um serviço de prevenção informal que monitora as redes sociais, com a ajuda de amigos dos adolescentes mortos. Quando detectam uma carta de despedida, imediatamente acionam os adultos. Uma psicóloga ou uma mãe busca então localizar o endereço ou telefonar para a vítima em potencial. De 4 a 25 de abril, atenderam 20 famílias. Nas últimas semanas, conseguiram evitar 12 suicídios, ao detectar o risco e fazer uma intervenção rápida. A última tentativa de suicídio ocorreu no sábado, 25 de abril.
Em Altamira, o número de homens e mulheres que se suicidaram é quase equivalente: oito vítimas são do sexo feminino e sete do masculino. O método utilizado pela maioria é o mesmo que no restante do Brasil: enforcamento. Em apenas uma noite do mês de abril, cinco adolescentes foram atendidos por tentativa de suicídio na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Altamira: dois deles não puderam ser salvos, a mais jovem com 13 anos.
O contágio ou contaminação marca o tema do suicídio, especialmente entre adolescentes. Mas essa é apenas uma das causas possíveis para o aumento de casos em um determinado grupo, comunidade ou cidade. Cada suicídio é particular e deve ser analisado individualmente. Ao mesmo tempo, uma série de suicídios só pode ser compreendida em seu contexto social. Fenômenos como o de Altamira precisam ser entendidos naquilo que cada caso tem de particular, naquilo que aquela comunidade tem de particular e também na sua coincidência (ou não) com as características e hipóteses gerais que os especialistas têm apontado para os suicídios de adolescentes. Em um mundo conectado e globalizado, em que jovens de diferentes línguas e partes do planeta consomem produtos de entretenimento semelhantes, circulam na mesma deep web e enfrentam desafios e ameaças semelhantes, qualquer análise precisa abarcar tanto o particular quanto o universal.
Pelas cartas e mensagens deixadas pelos adolescentes antes de se suicidar, assim como pelas informações obtidas na apuração desta reportagem, os motivos apontados são: um mundo injusto habitado por pessoas cruéis, a impossibilidade de se tornar aquilo que gostariam de ser, término de namoro, bullying na escola e no quartel, a descoberta de abuso sexual na família. Os diferentes motivos foram apontados como causadores de uma dor insuportável, para a qual “a morte seria a única solução”. Todos esses acontecimentos, com mais ou menos frequência, são vividos por milhões de adolescentes em todo o planeta. Por que, nesses casos, se converteram em justificativa para tirar a própria vida?
Belo Monte e sofrimento psíquico
No campo social, a principal hipótese apontada pelos profissionais de saúde e pelos representantes de grupos que se mobilizaram para enfrentar a tragédia em Altamira é a desestruturação causada pela construção da usina de Belo Monte, no rio Xingu, que provocou grandes transformações na cidade e na vida da população a partir de 2010. “Estamos, junto com a Universidade Federal do Pará, fazendo estudos e pesquisas para tentar compreender o que está acontecendo. Nosso principal ponto de partida são os impactos negativos produzidos por Belo Monte e todos os processos envolvidos [neste acontecimento]. Não são apenas as condições de saúde mental, mas toda uma condição psicossocial”, afirma Alexsandro Prates Freitas, do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF) de Altamira. “Diante do número de suicídios e também do isolamento devido à pandemia, lançamos um projeto que se chama Serviço de Atenção Biopsicossocial Online. Um assistente social atende a ligação e avalia o caso. Se é uma demanda psicológica, automaticamente a pessoa é transferida para o psicólogo.”
Em poucos anos, Altamira deixou de ser uma cidade com hábitos interioranos, como dormir de janela aberta e caminhar pelas ruas sem preocupação à noite, onde a maioria dos moradores se conhecia, para se tornar a cidade mais violenta do Brasil, segundo o Atlas da Violência de 2017 (com dados de 2015), publicação produzida pelo Instituto de Economia Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No Atlas da Violência de 2019 (com dados de 2017), Altamira perdeu o posto para a cidade cearense de Maracanaú, na região metropolitana de Fortaleza, ficando com o título de vice-campeã nacional entre as cidades com mais de 100.000 habitantes, e também com o título de cidade mais violenta da Amazônia. Pesquisadores apontaram que a população chegou a dobrar de tamanho no auge das obras da usina.
Os adolescentes que tiram a própria vida hoje em Altamira converteram-se de crianças em adolescentes durante o controverso e conflituoso processo de construção de Belo Monte, em que a cidade se transfigurou, assim como a vida de suas famílias. “Belo Monte fez uma propaganda de que ia chegar o desenvolvimento e tudo ia melhorar na cidade: muitos empregos, hospital, escolas. Mas o que Belo Monte trouxe para a infância e a juventude foi o crime e a proliferação de drogas. Os jovens perderam seus espaços de lazer e suas praias, as famílias perderam os bicos que faziam e a possibilidade de pescar. Sem perspectivas e sem políticas públicas, têm o suicídio”, afirma Antonia Melo, coordenadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre e uma das principais lideranças populares do Xingu.
Entre 1989 e 1993, Antonia e outras lideranças dos movimentos sociais de Altamira enfrentaram um dos maiores traumas da cidade, que ficou conhecido como “o caso dos meninos emasculados de Altamira”, crianças que eram encontradas mortas ou quase mortas depois de ter seus órgãos genitais cortados. Ainda hoje os sobreviventes e familiares vivem essa violência quase inominável como se fosse presente. Agora, as mesmas lideranças que buscaram justiça no passado, hoje enfrentam o que poderá ficar conhecido como “os meninos e meninas suicidas de Altamira”. Atravessada pela dor de testemunhar uma juventude destruída pela violência, Antonia Melo diz: “Belo Monte acabou com o presente e com o futuro. Altamira hoje é um banhado de lágrimas e de sangue”.
Cerca de 40.000 pessoas foram expulsas de suas casas na beira do rio, nas ilhas do Xingu e no centro da cidade para abrir espaço para a usina que é chamada pelos moradores de “Belo Monstro”. Parte dessa população de “removidos” foi jogada nos RUCs construídos nas periferias de Altamira. Esse processo causou a dissolução dos laços comunitários e de vizinhança, fundamentais para dar suporte na vida cotidiana, e destruiu a sensação de pertencimento. Também provocou insegurança alimentar em famílias que viviam de fazer bicos perto do centro e também de pescadores que já não podem mais pescar, devido tanto à distância quanto à redução da qualidade e do número de peixes e espécies após a barragem do rio. Há indícios de que o uso de álcool e de drogas, assim como de casos de abuso sexual, aumentaram nesse processo. No caso da população ribeirinha, as consequências foram ainda mais dolorosas, porque seu modo de vida foi totalmente destruído. Hoje esperam que a Norte Energia S.A., empresa concessionária da hidrelétrica, cumpra sua obrigação de reassentá-los no reservatório da hidrelétrica. O reassentamento é postergado há anos.
Durante o período de implantação da usina ocorreu também uma mudança no perfil da criminalidade. As gangues de Altamira foram tomadas pelas facções nacionais do crime organizado. Já no primeiro ano de existência, os RUCs ganharam o estigma de território de violência, aumentando ainda mais o sentimento de exclusão da população deslocada. Em julho do ano passado, o presídio de Altamira foi palco do segundo maior massacre da história do sistema penitenciário, com 62 mortos, só perdendo para o Carandiru.
Quatro suicídios foram cometidos justamente por adolescentes que viviam nos RUCs Jatobá, São Joaquim, Água Azul e Casa Nova. Outros quatro eram moradores de bairros que sofreram mudanças drásticas pelo processo de Belo Monte: Paixão de Cristo e Jardim Independente 1. Um pai, morador de um dos RUCs, perdeu dois filhos neste ano. Ambos se enforcaram. Primeiro, o mais novo, pouco antes de completar 16 anos. Em seguida, sua irmã, de 26 anos, não suportou a dor agravada pela morte do irmão. Foi encontrada enforcada, com o bebê de meses ainda no colo.
Daniela Silva, 26 anos, do Movimento Juventudes do Médio Xingu, é outra liderança que relaciona o suicídio com a desestruturação promovida pela barragem: “Belo Monte tem culpa, sim. Quebrou a relação comunitária que a gente tinha quando colocou as pessoas nos RUCs. É muito triste ver que os jovens estão se matando porque é difícil viver em uma realidade sem amanhã. Se não têm esporte, não têm lazer, não têm cultura, a vida fica cinza. Eu tive uma infância na periferia, mas ainda conseguia brincar no igarapé. Hoje, viver é um desafio maior, e a pandemia veio agravar essa situação”, afirma. “A juventude precisa ter vez, voz e lugar. Fechar as torres [de onde saltaram os jovens] não vai resolver. O problema tem que ser resolvido na raiz. Temos de transformar o lugar num espaço de esperança, de olhar para o futuro.”
Assustados com os suicídios de amigos, o grupo composto por jovens periféricos, indígenas e ribeirinhos foi criado para tentar encontrar saídas. Fazem uma campanha intitulada “Devolvam a nossa esperança!”. Em 31 de março, quando dois jovens se suicidaram e um terceiro foi assassinado no mesmo dia, publicaram uma carta aberta às autoridades:
“Dizem que nós somos o futuro do país, mas como seremos o futuro se nós não temos um presente? Nós, juventudes do maior município do Brasil e terceiro maior do mundo estamos profundamente preocupados com a nossa situação face aos casos de suicídios entre nós e os casos de extermínios que acontecem em nossa cidade. Hoje, foram três jovens que nos deixaram. Dois se suicidaram e o outro foi morto pela bala da Polícia Militar do Estado do Pará. (...) Cotidianamente temos nossos direitos aviltados pela falta de ação dos nossos gestores e pela falta de empatia da sociedade. Todos os dias morremos um pouco emocionalmente, pois é difícil viver em um mundo egoísta, autoritário e sem esperança. Por esse motivo estamos escrevendo essa carta para solicitar das autoridades do Estado, e em especial do poder municipal, a efetivação e implementação de políticas públicas e sociais voltadas para as juventudes”.
Na carta também fizeram uma pergunta cuja resposta será crucial para prevenir o suicídio da juventude: “Qual é o valor de nossas vidas para a sociedade e em especial para o Estado?”.
A relação entre Belo Monte e sofrimento psíquico tem sido objeto de investigação. Em 2017, o projeto Clínica de Cuidado levou 16 psicólogos e psicanalistas e uma psiquiatra a Altamira, para uma intervenção junto à população ribeirinha atingida por Belo Monte, na qual foram feitos mais de 70 atendimentos, a maioria deles nos RUCs. O trabalho foi coordenado pelos psicanalistas Ilana Katz e Christian Dunker, professor-titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). A pedido do EL PAÍS, eles anteciparam algumas das conclusões do livro e documento público sobre o sofrimento dos refugiados de Belo Monte, que está em fase de elaboração. Diz Ilana Katz:
“Os serviços de saúde de Altamira e outras iniciativas de pesquisa no território, naquela época, já comunicavam um aumento expressivo de formas de adoecimento do corpo (os relatos mais comuns eram de cardiopatias, diabetes, AVCs e depressão). Ao escutarmos os ribeirinhos atingidos por Belo Monte, essa notícia se confirmava: recolhemos testemunhos locais de intenso sofrimento psíquico. O sofrimento, naquele território, produzia efeitos na saúde geral e mental, no laço social, nos funcionamentos familiares e institucionais, no reforço da opressão de minorias e das situações humanas de extrema vulnerabilidade psicossocial. O modo de vida ribeirinho foi inviabilizado, e os atingidos transformados em pescadores sem rio, habitantes sem casa. O efeito da violação dos direitos civis e da desarticulação da experiência comunitária foi devastador, e o trabalho de luto, de alguma elaboração das perdas sofridas, não teve nenhum amparo e não aconteceu. Entendemos que o desenraizamento entre a experiência e sua possibilidade de ser contada, narrativizada, deu margem à emergência de sintomas, crises de angústia, e também construiu a propensão a atos impulsivos”.
Christian Dunker chama atenção para as conexões entre o suicídio e uma mudança repentina no modo de vida de uma população: “Uma hipótese preliminar poderia sugerir que certas modalidades emergentes de violência, acirramento da tensão social e suicídio ligam-se a mutações abruptas do modo vida de populações. Consideremos que a partilha social dos afetos, a elaboração coletiva do luto e a ação colaborativa de reconstrução simbólica e material dependem, particularmente para populações vulneráveis, da comunidade a que se pertence. Esse funcionamento comunitário fica muito afetado quando a família, os parentes e agregados são deslocados para áreas muito distantes, por vezes longe do rio, sem sistema de transporte que permita um cotidiano comum. Dessa forma, a reformulação da cidade tendeu a aumentar o processo de individualização das pessoas. Ainda que em novas moradias, elas desconheciam seus vizinhos e a colaboração com eles tornou-se incerta. Um estudo genérico sobre as condições de saúde em Altamira já apontava que fatores como desemprego, inflação populacional, reformulações urbanísticas e modificações econômicas, ecológicas e sociais poderiam afetar níveis de violência e consequentemente de comportamento de risco. Isso se verificou em outros desastres ambientais, como Brumadinho e Mariana. A partir da verificação in loco das condições geradas pela construção da barragem de Belo Monte, percebe-se que o impacto na saúde psicológica da população foi subestimado. Quando a causa é sistêmica, seus efeitos também são sistêmicos. É difícil dizer que a construção da barragem determinou este ou aquele sintoma, mas não há dúvida de que ela aumentou o nível geral de sofrimento das pessoas”.
O psicanalista sugere o conceito de “suicídio por anomia”, de Durkheim, para refletir sobre os acontecimentos de Altamira. “Em tese não estaríamos diante de suicídios egoístas, nem altruístas, mas por anomia. Há suicídios ligados à perda do pertencimento social, nos quais a pessoa não se sente reconhecida ou localizada entre os seus. Há outros suicídios nos quais predomina a reação à mudança nas normas e regras sociais, às quais o sujeito tem dificuldade de se integrar ou de incorporar. No caso dos suicídios anômicos, essas duas coisas podem acontecer, mas prevalece o sentimento de que o mundo está em desordem, de que perdemos a relação entre de onde viemos, quem somos e para onde vamos. Isso acontece porque o mundo é percebido como desordem, na qual há uma suspensão ou impossibilidade de leitura do sentido das coisas. A mudança radical da forma de vida demanda a incorporação das novas regras sociais. A perda de coesão e solidariedade podem estar ligadas à separação das famílias e comunidades, o afastamento de suas referências simbólicas, como o rio, e as formas religiosas e narrativas a ele associado. Portanto, o quadro de anomia subjetiva pode ocorrer mesmo em situação de ‘normalidade funcional’, pois o caráter repetitivo do trauma, a suspensão ou adiamento do luto e a fragmentação da experiência podem não estar sendo reconhecidos pelas próprias pessoas. Isso significaria que, por um lado, a vida segue com sua rotina de trabalho e estudo, mas que remanesce o sentimento, agora ainda mais inexplicável, de desajuste e inadaptação, de vazio e de perda de sentido.”
Erika Costa Pellegrino, psiquiatra da Clínica de Cuidado que se mudou de São Paulo para Altamira, em 2017, para acompanhar de perto o processo de desestruturação provocado por Belo Monte em diferentes populações, atualmente também professora do curso de Medicina da Universidade Federal do Pará, tece algumas hipóteses nessa direção:
“Entre crianças e adolescentes, os principais fatores de risco são o transtorno mental e a desestruturação familiar. Apesar de várias cidades do Brasil terem problemas sociais e também de acesso à rede pública de saúde mental, a dimensão do que aconteceu em Altamira a partir de Belo Monte mudou o perfil epidemiológico de saúde mental no município. Ainda não temos dados quantitativos sobre isso, mas é algo que todos apontam. O acontecimento Belo Monte foi muito súbito e muito grande. Tanto para as famílias que sofreram diretamente o impacto, como aquelas que tiveram remoção forçada, como indiretamente, como as que sofrem pelo aumento da violência. Faz sentido pensar que o aumento repentino e radical do adoecimento e da desestruturação de laços vão produzir um efeito maior sobre os mais vulneráveis, como crianças e adolescentes. Esse processo de desestruturação vai se desenrolando e se acumulando, o que também nos ajuda a pensar em por que razão isso está acontecendo agora, em 2020. O trauma gerado ao longo do tempo vai causando transformações psíquicas na cabeça dessas crianças e adolescentes e essas transformações trazem consequências”, afirma. “Estamos aqui juntando os pontos de tudo o que estudamos e escutamos nos consultórios, mas será preciso fazer uma pesquisa aprofundada escutando as famílias dos que morreram e daqueles que tentaram o suicídio e sobreviveram para conseguirmos compreender toda a complexidade do que estamos vivendo em Altamira e do que estes adolescentes estão dizendo ao se suicidarem.”
Procurada pelo EL PAÍS, a Norte Energia S.A., empresa concessionária de Belo Monte, declarou em nota, aqui publicada na íntegra: “A Norte Energia desconhece tal hipótese e refuta qualquer ilação associada ao processo de instalação da Usina Hidrelétrica Belo Monte”.
Consumo, corpo e internet
Um dos adolescentes que se suicidou em Altamira deixou uma carta que tem sido muito discutida pelos adultos envolvidos na busca por prevenção: “Perdão por isso que eu vou fazer, tirar a própria vida, fazer tantos que me amam sofrerem, mas eu não aguento mais isso, a dor interna que eu sinto já é maior que eu, é impossível descrever. (...) Abri meus olhos sobre o quanto eu não sou capaz e o quanto esse mundo é podre, só tem maldade e hipocrisia. (...) Vou mostrar da pior forma o que é um sentimento de indignação, sentido por muitos, mas expressado por poucos. Nada nesse mundo me faz feliz do jeito que eu quero. (...) Quero deixar claro que não é minha intenção causar sofrimento a ninguém, mas foi uma escolha que eu fiz pra acabar com meu inferno interior, a dor já era muito grande. (...) Eu apenas não consegui aceitar certas coisas, e eu já estou morto por dentro”.
Segundo o relato de uma testemunha que assistiu ao seu suicídio, “ele deu dois gritos, um alto e um mais brando, e caiu como uma folha”. É um jeito de ver. Os familiares que o carregaram do chão viram um corpo tão arrebentado que precisou de horas para ser reconstituído para o sepultamento. Desta imagem, nunca esquecerão. O suicídio, como me conta uma mãe, mata uma parte de quem amou e fica. “Vou viver, mas amputada de algo essencial.” A análise do computador de um dos adolescentes que tirou a própria vida mostrou que, nos dias anteriores ao ato, além de pesquisar manuais e grupos de suicídio na internet, ele também pesquisou quantas mães se suicidavam após a morte dos filhos.
As justificativas imediatas dadas pelos adolescentes para tirar a própria vida têm chamado a atenção de pais, professores e profissionais da saúde mental. Um fim de namoro. Um bullying. A decepção com os adultos. Obviamente este é só um ponto de partida, um começo de resposta. Mas ela revela uma geração com poucas estratégias para lidar com a frustração e, também, com uma dificuldade de lidar com o tempo. É como se não tivessem recursos internos para enfrentar respostas que precisam ser construídas, é como se não pudessem suportar uma resposta menos veloz do que o tempo da internet. É também como se não pudessem tolerar a falta de respostas da condição humana.
Isso não significa que sejam mais mimados do que os jovens do passado, e sim que estão vivendo em tempos diferentes. Não apenas uma época diferente, mas um tempo e uma tessitura deste tempo muito diversa do que a do final do século passado, por exemplo. A maior parte de sua experiência de existir é vivida num mundo que também é real, mas que está delimitado por outros códigos. Botões de like e block são instantâneos e são colocados no lugar de respostas. Mas não são respostas. É possível deletar uma mensagem ou uma pessoa, mas, ao mesmo tempo, a memória da internet é eterna e acompanha (e às vezes persegue) aquele jovem nos espaços concretos da sua vida, como a escola.
Jaron Lanier, filósofo da internet e criador de realidade virtual, chegou a sugerir num vídeo que os adolescentes deveriam abandonar as redes sociais por pelo menos algum tempo. “Somos fisgados por um esquema de recompensas e punições, em que as recompensas acontecem quando você é retuitado por outros e as punições quando você é maltratado por outros nas redes”, diz. Essa manipulação, segundo ele, não é tão dramática quanto o vício em heroína ou o vício em jogo, mas obedece ao mesmo princípio. “Deixa as pessoas ansiosas e irritadas, e torna especialmente os adolescentes depressivos, o que pode ser muito grave”, afirma. “Há uma grande quantidade de evidências e estudos científicos. O exemplo mais assustador é a correlação entre o aumento do suicídio entre adolescentes e o aumento do uso das redes sociais.”
Ele dá um conselho aos adolescentes: “Se você é uma pessoa jovem e você só vive nas redes sociais, o primeiro dever com você mesmo é conhecer você mesmo. Você deve experimentar viajar, você deve se desafiar. Você não vai se conhecer sem essa perspectiva. Então, dê a você mesmo pelo menos seis meses sem redes sociais. Eu não posso dizer a você o que é o certo. Você tem que decidir”.
Na Internet, a atenção é fragmentada, o cérebro é chamado a reagir a estímulos e a agir no tempo da velocidade. Concentrar-se mais do que alguns segundos em algo que não se move parece impossível. E tudo isso acontece num momento de exacerbação do consumo, o grande mediador da experiência contemporânea. E o consumo promete gozo imediato —e promete completude. Tanto o curtir e o bloquear da internet quanto o mecanismo que move o consumo, em que sempre há que faltar para vender mais uma vez a ilusão de que na próxima compra estará completo, mantêm a mente num estado de ansiedade permanente. A falta, condição humana que produziu movimentos capazes de alcançar realizações extraordinárias, é vivida tanto na internet quanto no ato de consumir como uma traição e até mesmo uma “injustiça”. A falta é vivida como dor, e não como desejo que nos move a fazer história com os outros e a tecer uma vida que valha a pena. E essa dor, segundo os jovens que se suicidam, é insuportável.
“Eu não tenho a vida que eu queria ter”, declarou a garota de 18 anos à psiquiatra Maria Aparecida da Silva, de São Paulo. A médica conta que esse tipo de declaração, associada a um sofrimento apresentado como insuportável, tem sido cada vez mais frequente tanto na rede pública de saúde quanto no consultório privado. “O que eu mais ouço é isso, e eu fico chocada. Como alguém com 18 anos se anuncia como um fracassado? E está se referindo a coisas materiais”, afirma. “Tenho pensado nesse avanço tecnológico que tivemos, nesta vida na internet que eles já começam muito cedo, no quanto isso não vem tirando espaço para outros desenvolvimentos. É tudo muito rápido. A recompensa é imediata. Eu quero algo e tenho que ter imediatamente. Mesmo do ponto de vista neurobiológico, lidar com a frustração vai desenvolvendo, neuroanatomicamente, estruturas de conexões. Na medida em que você não deixa o outro se frustrar e é atendido muito rapidamente, isso não se desenvolve. Inclusive a criatividade não se desenvolve. Com o universo interno encolhendo, com a fantasia e a imaginação encolhendo, as possibilidades vão encolhendo. A vida do consumo, agora exacerbado pela internet, é a vida do ter —e não do ser.”
Há ainda algo fundamental que mudou. No mundo também real da internet se vive supostamente sem corpo. Mas o corpo está totalmente presente, apenas em outro lugar. O corpo lateja, e o corpo perturba. Pode também ser bem mais difícil dar um contorno ao corpo, viver a experiência do corpo em transformação num mundo em que o corpo foi convertido em objeto também nas redes. A automutilação, cada vez mais frequente em jovens de todas as classes sociais, pode —também— ser interpretada como uma necessidade desesperada de materializar a existência em um lugar só, de “encarnar-se”. O suicídio é um ato de desespero no corpo.
Desde que percebeu o aumento do número de suicídios de adolescentes, a psiquiatra Maria Aparecida compreendeu algo importante: “Esse modelo médico tradicional para mim não está mais servindo. O número de casos é muito grande, não dá conta. E quanto mais psiquiatras existirem na rede pública, mais demanda vai ter. O modelo tradicional não cabe mais aqui, é preciso encontrar outros caminhos, tecer outros planos terapêuticos”, diz. A psiquiatra está esperando a pandemia ser superada para colocar em prática um projeto de trabalho com o corpo dos adolescentes. A partir da dança sul-coreana K-Pop, que a maioria deles adora, quer ampliar o cuidado em saúde mental com esses jovens. “Quero fazer um trabalho que mostre outras possibilidades, mostre que para ter contato com o corpo não é necessário provocar um ferimento, porque na minha experiência clínica, a automutilação está muito ligada ao suicídio. Começa como automutilação e pode terminar como suicídio”, afirma. “A questão é: como então ter um corpo para o prazer, para a alegria? Estou construindo um trabalho, a partir de conversas com profissionais que trabalham com dança, para buscar outros caminhos para a experiência do corpo que não seja apenas a dor.”
Junto com outros profissionais da rede pública de Santana do Parnaíba, a psiquiatra foi a uma escola fazer palestras e debater com a comunidade escolar. A partir daquele momento, o número de pessoas relatando suas tentativas de suicídio e fazendo seus pedidos de ajuda se multiplicou, porque finalmente era possível contar o que estava acontecendo. “A medicação em alguns casos ajuda, mas a escuta é fundamental. É o melhor tratamento. A medicação é o jeito de intervir, muitas vezes, apenas porque não há tanta rapidez no atendimento psicoterápico. Então a medicação diminui os sintomas. Mas, insisto, é preciso escutar”, diz.
Mário Corso, psicanalista e autor de Adolescência em cartaz - Filmes e psicanálise para entendê-la (Artmed, 2017), escrito com a também psicanalista Diana Corso, faz uma análise muito aguda sobre o fenômeno da automutilação. Ele diz:
“Sempre fomos através de um corpo, é óbvio, mas nunca precisamos tanto de um para ser alguém. Está fora de moda apenas ter sucesso, ser admirado, é preciso que o biótipo demonstre isso. O corpo faz parte do triunfo do eu, ou ele não é total. O valor que damos à nossa compleição física cresceu. Não é que o mundo tenha piorado, apenas os sintomas transmutam-se. É preciso inserir o gesto nesse novo momento onde ‘falamos’ mais desde o corpo. O que temos no corte é um sofrimento agudo que não encontra outra forma de expressar-se. É preciso que a pessoa seja escutada, que entenda sua dor, para que essa dor possa ser dita de outra maneira. Acompanhado de alguém que entenda sua dor, ela talvez não precise ser corporalmente encenada. Os cortes são uma tentativa desesperada de estancar uma angústia transformando-a em dor física, e dar visibilidade ao sofrimento psíquico. É uma dor que não pode ser deixada de lado, tampouco é possível suportá-la o tempo todo. É um corte na carne e na cena. Por isso, não raro, nos relatos o corte é contado como um alívio momentâneo.
Machucados cicatrizam e tornam-se memórias inesquecíveis, que deixaram de sangrar e doer, como se o sofrimento tivesse deixado uma assinatura. Porém, se a dor de uma ferida psíquica fechar suturando um lamento que não se transformou em palavras, ela voltará iniciando novos apelos, que podem ser vistos mas não escutados. Ao invés de calar as dores com analgésicos para a alma, convém lembrar: esses machucados só cicatrizam de verdade se for de dentro para fora. É preciso deixar sangrar as palavras até que as dores sequem.
O corte é indicativo de um sofrimento agudo. O próximo passo, se nada for feito, vão ser encenações mais dramáticas, que podem desembocar na mais radical: o suicídio”.
A dor e a impossibilidade de lidar com ela também apontam o quanto é brutal ser adolescente num mundo que foi transfigurado em poucos anos. Parte dessa transfiguração nem pais nem professores compreendem, porque vieram de um mundo ainda não transfigurado. Os adolescentes deste momento histórico não são “fracos” ou “frouxos”, como são chamados pelos odiadores da internet, que postam comentários violentos enquanto estão se suicidando ou logo após o suicídio, como aconteceu em alguns casos de Altamira e de outras regiões do país. O fato importante é que estão vivendo experiências que nenhuma outra geração viveu —e a estão vivendo num momento muito ruim, o de um planeta corroído pela emergência climática provocada pelo capitalismo e, agora, também pela emergência sanitária mais grave em um século. Nunca se pode esquecer que, se seus gritos não são escutados, seja a forma que encontrem para gritar, os mais sensíveis morrem primeiro. O suicídio não pode ser explicado por uma causa só, mas sim por uma teia de causas capaz de abarcar toda a sua complexidade, tanto no particular quanto no coletivo, tanto no privado quanto no social.
Também não é a internet a responsável, mas o que fazemos dela, nela e com ela. Como mostram as crianças que já entenderam que “isolamento”, palavra tão em pauta atualmente, é menos uma questão de distância e mais uma questão de presença, de tempo junto. Os adultos podem estar quietos, e as crianças sabem que estão com elas. Quando pegam o celular, de imediato protestam, porque sabem que os pais ou quem quer que seja, já não estão mais ali. Partiram. Do mesmo modo os filhos adolescentes não estão no quarto, protegidos. Partiram. E muitas vezes estão sozinhos na deep web.
A familiar de um dos adolescentes que se suicidaram neste ano, em Altamira, chegou a hipóteses semelhantes. Desde que o menino morreu, ela, que trabalha com grupos de jovens, tem se dedicado a tentar entender o que ele tentou dizer com sua morte, para evitar que outros se matem. “Hoje a juventude é muito imediatista. Não consegue lidar com coisas que levam um tempo. Diante de uma dor que não conseguem superar rapidamente, querem eliminar aquela dor. Se passarem por um tratamento vai demorar e não sabem lidar com a demora. Temos que ajudá-los a compreenderem que a vida não é tão imediata como um jogo de videogame ou como o WhatsApp ou o Facebook. Mas também nós precisamos compreender que estamos falhando em abraçá-los. De várias maneiras, estamos deixando essa geração sozinha”, diz. “Tento ler várias vezes as cartas que deixaram. Têm uma dor tão forte de indignação e de decepção com a humanidade. Tão grande que desacreditam que algo pode mudar. Vou dar cabo da minha vida para ver se a sociedade percebe e muda essa forma de ser. Nós precisamos escutar o que eles estão dizendo quando se matam. E eles estão dizendo que, como sociedade, estamos falhando com a sua geração”.
Diante de um mundo que se tornou muito mais complexo, em que os adolescentes ficam sozinhos mais cedo e de formas totalmente novas, ao proteger a infância podemos estar desprotegendo-a. É o que aponta o psicanalista Mário Corso. “Nós temos uma conquista civilizatória interessante, que é a infância protegida, reconhecida em suas particularidades. Não devemos mudar isso, mas talvez pensá-la melhor. Nossas crianças crescem numa bolha de proteção que rompe na adolescência. Abruptamente, descobrem a dureza do mundo, a violência, a exigência desmedida —nesse caso, às vezes dos pais. Sentem-se traídos pelo mundo de conto de fadas que receberam. Será que não exageramos, que não haveria um modo de desde mais cedo mostrar o mundo como o mundo realmente é? Existe uma depressão típica do começo da adolescência, que diz respeito à percepção do peso do mal-estar da civilização. Utopias já não colam, vivemos na época das distopias, crenças religiosas tampouco, o jovem sente que está em um mundo absurdo. E precisamos pensar que ele não desenvolveu os anticorpos que nós já temos... Isso chega de modo à vista. Será não poderia ser em suaves prestações? Brinco, mas creio que exageramos na dose do mundo Disney. Em resumo: não os preparamos para o infortúnio, não discursamos sobre as derrotas, as perdas, e elas são a única certeza nessa vida. Ensinamos a ganhar, a dizer que serão vencedores. Ensinamos o fácil e esquecemos o essencial: saber suportar as rudezas de um momento civilizatório complicado”.
É possível que esta seja a chave para compreender por que Altamira teria um número ainda maior de jovens se suicidando do que em outras cidades do Brasil. Altamira é uma cidade transfigurada num mundo transfigurado. Transfigurada por Belo Monte como nos anos 1970 foi transfigurada pela Transamazônica. É o que diz a familiar de um dos jovens suicidados:
“O suicídio em Altamira tem três eixos: Belo Monte é um deles. O outro é como nós, sociedade imediatista, consumista, produtivista, estamos deixando a desejar no cuidado com as gerações futuras. Estamos deixando eles isolados do nosso mundo enquanto estamos ocupados em sobreviver. O terceiro viés é a ausência de políticas públicas que deem a eles o direito a uma vida digna. Para compreender os suicídios em Altamira é preciso entender que aqui, todo dia estamos lutando para sobreviver. Aqui, vivemos todo o peso do sistema capitalista que comanda a economia e não dá condições de humanizar a sociedade. Não estamos sendo dignos de cuidar da nossa juventude. Nós somos sempre bombeiros em Altamira, sempre apagando fogo [muitas vezes literalmente, quando a floresta queimou como em 2019]. Em Altamira amanhecemos a cada dia matando um leão para continuar vivendo. Nossa juventude não está sendo preparada para enfrentar esse leão, e então se descobre impotente. O que estamos colhendo em 2020 é o resultado de tudo o que nos aconteceu no passado e de tudo o que não fizemos no passado. Suicídio é o resultado do que estamos fazendo com nossas futuras gerações”.
Uma mulher conta que assim interpretou a carta de despedida do adolescente que tanto amava: “Eu já estarei morto. Mas antes quero perguntar a vocês, adultos: o que farão para que outros adolescentes como eu não se suicidem?”.
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