Revista Consultor Jurídico, 29 de abril de 2020
Por Eduardo Cambi, Keyane Angélica Harshe Silva e Rafael Santana Frizon
A pandemia da Covid-19 trouxe inúmeros problemas a nível mundial. A elaboração deste trabalho busca responder ao seguinte problema: o confinamento social contribui com o aumento da violência doméstica?
Nossa hipótese é a de que ele propicia um aumento exponencial nos casos de violência doméstica e cria um paradoxo no que se refere à proteção de vidas.
Para testar essa hipótese, será utilizado o método empírico indireto, em que serão analisados dados divulgados pelos veículos de comunicação nacional e internacional, bem como se fará apoio de pesquisas bibliográficas nacionais e estrangeiras e de notas técnicas.
Para testar essa hipótese, será utilizado o método empírico indireto, em que serão analisados dados divulgados pelos veículos de comunicação nacional e internacional, bem como se fará apoio de pesquisas bibliográficas nacionais e estrangeiras e de notas técnicas.
Notas sobre a Sars-Cov-2
O novo coronavírus surgiu em Wuhan [1], China, no final de 2019 e se espalhou pelo mundo [2]. Restrições de movimento de populações foram amplamente adotadas para evitar a propagação da Covid-19 e o sobrecarregamento dos sistemas de saúde [3]. Alguns entes federativos — a título de exemplo, São Paulo [4], Curitiba [5] e Londrina [6] — decidiram no sentido de restringir circulação e/ou fechar o comércio. Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu no último dia 15, na ADI n° 6.341, que prefeitos e governadores têm autonomia para determinar medidas para o enfrentamento ao coronavírus [7].
Paradoxo do confinamento social
Como já afirmado, nossa pesquisa tem por objeto verificar se há relação entre o confinamento social e o aumento da violência doméstica e familiar contra a mulher [8], porque são desproporcionalmente afetadas pela violência doméstica; no entanto, reconhecemos que o abuso doméstico acontece com homens e ocorre dentro de relações entre pessoas do mesmo sexo [9].
Segundo o jornal The Guardian, na região da Catalunha, Espanha, as ligações para o telefone de apoio às mulheres aumentaram 20% nos primeiros dias do período de confinamento; em Chipre, as chamadas para uma linha direta semelhante aumentaram 30%; e, na Itália, os ativistas disseram que as ligações para as linhas de ajuda haviam caído bastante, mas estavam recebendo mensagens desesperadas de texto e e-mail [10].
Em março de 2020, a Espanha viu sua primeira fatalidade de violência doméstica apenas cinco dias após o bloqueio: uma mulher foi assassinada pelo marido na frente dos filhos em Valência. Há também evidências emergentes de um aumento no número de homicídios domésticos no país [11].
Os crescentes índices de violência já podem ser constatados no Brasil [12]. Um levantamento realizado pelo Ministério Público de São Paulo, por intermédio do Núcleo de Gênero e do Centro de Apoio Operacional Criminal (CAOCrim), divulgado por meio de uma nota técnica 3] no dia 13, apontou aumento de 29% dos pedidos de medidas protetivas de urgência e de 51,4% das prisões em flagrante em razão de violência contra a mulher entre os meses de fevereiro e março.
No Rio de Janeiro [14], a Justiça estadual constatou um aumento de aproximadamente 50% dos casos de violência doméstica após o início da quarentena. Em Curitiba, o número de registros de casos de violência contra mulher subiu de 189 para 217, em comparação realizada entre o final de semana anterior à quarentena (entre os dias 13 e 15 de março) e o primeiro final de semana após o início do confinamento social (entre os dias 20 e 22 de março) [15].
No Brasil, a violência doméstica contra a mulher é resultado de uma sociedade desenvolvida historicamente sobre alicerces patriarcais [16]. Não há dúvidas de que, em termos de proteção e garantia dos direitos das mulheres, a Lei Maria da Penha representa o principal mecanismo jurídico vigente [17] e, ao estabelecer diferenciação legal quanto ao gênero, superou a perspectiva da mera igualdade formal, para efetivar o disposto no artigo 226, §8, da Constituição Federal [18].
Contudo, tendo em vista estes resultados, verifica-se que, em tempos de pandemia e confinamento social, a Lei Maria da Penha não se mostra efetiva para evitar o aumento exponencial do número de casos de violência doméstica contra mulheres.
Conclusão
Uma das medidas adotadas para enfrentar o novo coronavírus é o confinamento social, que, por sua vez, trouxe o aumento da violência doméstica, como demonstrado através da coleta indireta dos dados empíricos dos veículos de comunicações.
Através desses dados coletados, pode-se perceber que, em tempos de Covid-19, o lar, que sempre representou o principal local de ocorrências relacionadas à violência doméstica, tornou-se ainda mais nocivo ao se considerar o expressivo aumento do tempo de convivência entre agressor e vítima.
Se a prática do não confinamento pode levar à contaminação, o preciso respeito a ele pode significar violência doméstica. Portanto, em quais dos dois lados estará melhor salvaguardada a vida das mulheres? Esse é o paradoxo.
Referências bibliográficas
BRASIL, Ministério da Saúde. Painel Coronavírus. Disponível em: . Acesso em 16.04.2020. ]
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 6341. Partido Democrático Trabalhista. Relator: Marco Aurélio. Brasilia, 15 de abril de 2020.
BREGA FILHO, Vladimir; SALIBA, Marcelo Gonçalves. JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. Argumenta Journal Law, Jacarezinho - PR, n. 6, p. 143-152, fev. 2013. ISSN 2317-3882. Disponível em: .
CAMBI, Eduardo; DENORA, Emmanuella Magro. Lei Maria da Penha: tutela diferenciada dos direitos das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 133. ano 25. p. 219-255. São Paulo: Ed. RT, jul, 2017.
CHAN, Jasper Fuk-woo; YUAN, Shuofeng; KOK, Kin-hang; TO, Kelvin Kai-wang; CHU, Hin; YANG, Jin; XING, Fanfan; LIU, Jieling; YIP, Cyril Chik-yan; POON, Rosana Wing-shan. A familial cluster of pneumonia associated with the 2019 novel coronavirus indicating person-to-person transmission: a study of a family cluster. : a study of a family cluster. The Lancet, [s.l.], v. 395, n. 10223, p. 514-523, fev. 2020.
CURITIBA, Prefeitura do Município de. Prefeitura reforça orientação para que o comércio permaneça fechado. Disponível em: https://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/prefeitura-reforca-orientacao-para-que-o-comercio-permaneca-fechado/55608. Acesso em: 09 abr. 2020.
[1] LI, Ruiyun. Substantial undocumented infection facilitates the rapid dissemination of novel coronavirus (SARS-CoV2). Science, [s.l], p. 1-20, 16 mar. 2020.
[2] CHAN, Jasper Fuk-woo; YUAN, Shuofeng; KOK, Kin-hang; TO, Kelvin Kai-wang; CHU, Hin; YANG, Jin; XING, Fanfan; LIU, Jieling; YIP, Cyril Chik-yan; POON, Rosana Wing-shan. A familial cluster of pneumonia associated with the 2019 novel coronavirus indicating person-to-person transmission: a study of a family cluster. : a study of a family cluster. The Lancet, [s.l.], v. 395, n. 10223, p. 514-523, fev. 2020.
[3] LIMA, Caio Augusto de Lima Augusto de; ALVES, Paula Monikee Rezende; OLIVEIRA, Carla Jaciara Baraúna de; OLIVEIRA, Thaísa Rodrigues Nascimento de; BARBOSA, Katricia Beatriz; MARCENE, Henrique Cardoso; OLIVEIRA, Stefan Vilges de. Covid-19: isolations, quarantines and domestic violence in rural areas: Isolations, Quarantines and Domestic Violence in Rural Areas. Scimedicine Journal, [s.l.], v. 2, n. 1, p. 44-45, 1 mar. 2020
[4] ESTADÃO. Em SP, PM já atua para fechar comércio e abordar cidadãos sobre quarentena. Disponível em: https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,em-sp-pm-ja-atua-para-fechar-comercio-e-abordar-cidadaos-sobre-quarentena,70003272402. Acesso em: 17 abr. 2020.
[5] CURITIBA, Prefeitura do Município de. Prefeitura reforça orientação para que o comércio permaneça fechado. Disponível em: https://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/prefeitura-reforca-orientacao-para-que-o-comercio-permaneca-fechado/55608. Acesso em: 17 abr. 2020.
[6] LONDRINA, Folha de. Prefeitura estende o fechamendo do comércio em Londrina por mais uma semana. Disponível em: https://www.folhadelondrina.com.br/cidades/prefeitura-estende-o-fechamento-do-comercio-em-londrina-por-mais-uma-semana-2985332e.html. Acesso em: 03 abr. 2020.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Adi nº 6341. Partido Democrático Trabalhista. Relator: Marco Aurélio. Brasilia, 15 de abril de 2020.
[8] FARIAS, Heitor Soares de. O avanço da Covid-19 e o confinamento social como estratégia para redução da vulnerabilidade. Espaço e Economia, [s.l.], p. 1-19, 31 mar. 2020.
[9] BRADBURY-JONES, Caroline; ISHAM, Louise. The pandemic paradox: the consequences of Covid-19 on domestic violence: the consequences of Covid-19 on domestic violence. Journal Of Clinical Nursing, [s.l.], v. 3, n. 1, p. 1-7, 12 abr. 2020.
[10] GUARDIAN, The. Lockdowns around the world bring rise in domestic violence. Disponível em: https://www.theguardian.com/society/2020/mar/28/lockdowns-world-rise-domestic-violence. Acesso em: 16 abr. 2020
[11] BRADBURY-JONES, Caroline; ISHAM, Louise. The pandemic paradox: the consequences of Covid-19 on domestic violence: the consequences of Covid-19 on domestic violence. Journal Of Clinical Nursing, [s.l.], v. 3, n. 1, p. 1-7, 12 abr. 2020.
[12] BRASIL, Ministério da Saúde. Painel Coronavírus. Disponível em: . Acesso em 16.04.2020.
[13] Nota Técnica. MPSP. RAIO X da violência doméstica durante o confinamento. Um retrato de São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 15.04.2020.
[14] GLOBO, O. Casos de violência doméstica no RJ crescem 50% durante confinamento. Disponível em:. Acesso em 16.04.2020
[15] GLOBO. O. Número de casos de violência doméstica aumenta em Curitiba na quarentena, diz polícia. Disponível em: . Acesso em 16.04.2020.
[16] CAMBI, Eduardo; DENORA, Emmanuella Magro. Lei Maria da Penha: tutela diferenciada dos direitos das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 133. ano 25. p. 219-255. São Paulo: Ed. RT, jul, 2017. p. 232.
[17] BREGA FILHO, Vladimir; SALIBA, Marcelo Gonçalves. JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. Argumenta Journal Law, Jacarezinho - PR, n. 6, p. 143-152, fev. 2013. ISSN 2317-3882. Disponível em: .
[18] CAMBI, Eduardo; DENORA, Emmanuella Magro. Lei Maria da Penha: tutela diferenciada dos direitos das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 133. ano 25. p. 219-255. São Paulo: Ed. RT, jul, 2017. p. 241.
Eduardo Cambi é promotor de Justiça no Estado do Paraná, assessor da Procuradoria-Geral de Justiça do Paraná, coordenador da Escola Superior do Ministério Público do Estado do Paraná, professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e da Universidade Paranaense (UNIPAR), pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Pavia e doutor e mestre em Direito pela UFPR.
Keyane Angélica Harshe Silva é pós-graduada em Direito Penal pela Faculdade Unina.
Rafael Santana Frizon é pós-graduado em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC) e mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP -Campus Jacarezinho).
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