Por Tiago Duque
Terça-feira, 28 de abril de 2020
O debate sobre “identidade de gênero” nas escolas não pode ser proibido. A afirmativa foi dada com a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal no último dia 24 de abril, ao declarar inconstitucional a lei do município de Novo Gama (GO), que buscava proibir a discussão sobre questões de gênero nas escolas. Comumente a “ideologia de gênero”, para aquelas pessoas que acreditam em sua existência, é definida como pseudocientífica e perniciosa, além de totalitária e com finalidade de pulverização da família e, daí, o estabelecimento de um caos social. Nessa concepção os alunos seriam facilmente manipuláveis pelos professores, e perderiam suas referências identitárias fundamentais como a de ser homem ou mulher (DESLANCHES, 2015).
No mesmo dia dessa decisão do STF, o presidente da república afirmou em seu pronunciamento sobre a saída do ex-juiz Sérgio Moro do governo, ao se referir criticamente a nomeação da cientista política Ilona Szabó, feita pelo ex-ministro, para o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária: “essa senhora ou senhorita tem publicações das mais variadas possíveis defendendo o aborto, ideologia de gênero ou outras coisas que estão em completo desacordo com as bandeiras que eu defendi, que os cristãos brasileiros defendia e até ateus defendiam também”.
O presidente deu o tom da complexidade existente em torno do pânico moral que produziu mobilizações transnacionais em torno do que vem sendo caracterizado como “ideologia de gênero”, afinal, ela envolve difusos interesses e múltiplos empreendedores morais. Rogério Junqueira (20117) afirma que os empreendedores morais antigênero parecem ter encontrado, com a movimentação contra a “ideologia de gênero”, um meio eficiente de afirmar e disseminar seus valores, recuperar espaços políticos e angariar mais apoio.
Exatamente por isso, mesmo considerando as especificidades das diferentes realidades globais em torno da crítica ao que tem sido chamado de “ideologia de gênero”, o enfrentamento ao projeto de sociedade daqueles que afirmam que ela existe é uma forma de resistência contra os recentes avanços que vêm se dando na América Latina em matéria de direitos sexuais e reprodutivos (MISKOLCI e CAMPANA, 2017). Nesse sentido, a decisão do STF é uma enorme conquista. Afinal, espalhou-se projetos de lei inconstitucionais como o de Novo Gama em todo o país, em diferentes níveis de governo.
Contudo, ainda que se tenha avançado no campo legislativo com a decisão do STF, as ações cotidianas que envolvem a atuação de empreendedores morais em torno da ideia de uma possível “ideologia de gênero” seguirão firme e forte. Afinal, já há um pânico estabelecido em todo o país, visto o caso de professores que se sentem pressionados por um movimento de criminalização do trabalho docente quando educadores buscam, como de fato lhes cabe, questionar a realidade, inclusive a realidade corpórea, respeitando os limites etários-curriculares e suas respectivas práticas didático-pedagógicas.
O pânico moral instaurado se justifica exatamente pela importância que questões de gênero tem: nos permitir pensar o corpo enquanto sujeito de dinâmicas sociais, como lócus de articulação de relações e legitimador de princípios sobre a sociedade. Afinal, quando se discute gênero, e, consequentemente, sexualidade, se critica a ideia de um sujeito simplesmente autônomo e voluntarista no que se refere às suas experiências, tampouco o considera a partir de uma ideia de determinismo cultural, pelo qual não se vê saída (ou se reconhecem muito poucas) diante das normas e convenções. Nem se quer fundamentar-se em noções como a ontológica separação entre corpo e mente, afinal, assim estaria impossibilitada de questionar as relações entre ciência, corpo e sociedade (MONTEIRO, 2012). Esse avanço científico é uma ameaça a uma sociedade que se organiza, cada vez mais, sob verdades anticientíficas, por exemplo, como os movimentos terraplanista e anti-vacina.
Além disso, como nos alertou a feminista Gayle Rubin já no início dos anos 1980, “os conflitos contemporâneos ligados a valores sexuais e condutas eróticas têm muito em comum com disputas religiosas de séculos anteriores” (2017, p. 63). De lá para cá, no caso Brasileiro, a questão religiosa só se intensificou, especialmente pelo aumento do quadro de empreendedores morais evangélicos, em especial, fundamentalistas e em busca de cargos de representação política. Ao mesmo tempo, a visibilidade de pautas por direitos tidos como feministas e LGBT ganha a cena midiática e política no país. Essa realidade, em um ano eleitoral como esse, vai nos oferecer inúmeros exemplos de o quanto a ideia da existência perigosa de uma “ideologia de gênero” seguirá rondando discursos e práticas ameaçadoras de direitos nas escolas e fora delas.
Grupos de interesses conservadores, não exclusivamente religiosos, seguirão em busca de distanciar o movimento feminista e LGBT, e mesmo seus simpatizantes, das definições de políticas públicas e tomar o controle sobre elas (MISKOLCI; CAMPANA, 2017). Isso, independentemente da decisão do STF, mesmo porque as vozes contra a própria existência democrática do STF têm ganhando força. O pânico moral já foi instalado, e funcionou, a despeito da legislação, tanto em termos de visibilidade e voto (um dos seus empreendedores chegou à presidência), como em relação a inseguranças e medo na atuação de professores nas escolas. Isso é possível ser afirmado porque, enquanto moral, esse pânico traz à tona “uma estrutura organizacional, um movimento cujos líderes alcançam manchetes e constroem influência política ampliando ameaças e advogando por medidas punitivas” (LANCASTER, 2011, p. 32).
Considerando o refletido até aqui, certamente a decisão do STF, ainda que seja uma conquista importante, está longe de ser uma vitória. Caso existam, em algum momento da história, vencedores nesse enfrentamento contra o retrocesso no campo dos direitos em termos de gênero e sexualidade, especialmente na educação, certamente será devido a lutas articuladas e em rede, envolvendo transformações desse clima anticientífico, articulações que não simplesmente entendam essa problemática, em torno do que vem sendo chamado de “ideologia de gênero”, como sendo voltada apenas a “minorias”. Afinal, esses empreendedores morais têm ampliado o clima de pânico, cada vez mais, em uma direção anticientífica para além das teorias modernas de gênero, educação e sexualidade.
Tiago Duque é professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Referências
DESLANDES, Keila. Formação de professores e Direitos Humanos: construindo escolas promotoras da igualdade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
JUNQUERIA, Rogério Diniz. “Ideologia de gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária – ou: a promoção dos direitos humanos se tornou uma “ameaça à família natural”? In: RIBEIRO, Paula Regina C., MAGALHÃES, Joanalira Corpes. Debates contemporaneos sobre educação para a sexualidade. Rio Grande: Ed. da FURG, 2017. p. 25-52.
LANCASTER, Roger N. Sex Panic and the Punitive State. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2011.
MISKOLCI, Richard. CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de Gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. In: Revista Sociedade e Estado, v. 35. N. 03, 2017. p. 725-747.
MONTEIRO, Marko Synésio A. Os dilemas do humano: reinventando o corpo em uma era (bio)tecnológica. São Paulo: Annablume, 2012.
RUBIN, Gayle. Políticas do Sexo. Tradução: Jamile Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
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