Não é preciso esforço maior do que uma busca no Google para perceber que o mundo das artes é predominantemente masculino. E também não é preciso nenhuma inteligência rara para concluir que tal predomínio não passa de mais um entre os infinitos sintomas da misoginia e do machismo que reinaram e ainda reinam em todo e qualquer contexto de poder, influência e dinheiro.
Escolha qualquer movimento artístico relevante do século 20 que se perceberá não só a protagonismo quase exclusivo de artistas homens como também, com um pouquinho mais de dedicação em sua pesquisa, se descobrirá também uma série de artistas mulheres que orbitavam ao redor do movimento, com tanto talento quanto a maioria desses protagonistas, porém completamente eclipsadas.
Escolha qualquer movimento artístico relevante do século 20 que se perceberá não só a protagonismo quase exclusivo de artistas homens como também, com um pouquinho mais de dedicação em sua pesquisa, se descobrirá também uma série de artistas mulheres que orbitavam ao redor do movimento, com tanto talento quanto a maioria desses protagonistas, porém completamente eclipsadas.
É esse o caso do movimento surrealista que, para além de seus notáveis como André Breton e Salvador Dali, tinha em Maruja Mallo uma de suas mais importantes artistas – que permanece pouco lembrada pela história pelo simples fato de ser uma surrealista mulher.
Nascida em 1902 na região da Galícia, na Espanha, Ana Maria Gómez González Mallo teve, desde o início, seu trabalho celebrado pela originalidade e a qualidade com que ajudou a forjar vanguarda espanhola nos anos 1920. Mallo tornou-se amiga de Dali no início dessa década, na Real Academia de Belas Artes em Madrid, quando juntos se tornaram parte da chamada “Geração de 27”, grupo inicialmente de poetas que surgiu dos círculos literários espanhóis da época. O grupo não era restrito aos escritores, e trazia, além de Maruja e Dali, outros nomes como o cineasta Luis Buñuel ligados à “geração”.
Acima, Maruja em seu ateliê; abaixo, pintura de Dali mostrando o pintor com Maruja em um café espanhol
Era um grupo variado e amplo em estilos, mas muito pouco diverso em gênero: Maruja era uma das pouquíssimas mulheres da vanguarda espanhola, e mais do que somente pertencer ao grupo, ela se destacava, tendo seu trabalho como pintora celebrado pela crítica da época (ficou conhecida como “a pintora de quatorze almas”, pela profundidade de suas obras) e até mesmo por seus pares. É sabido que Breton e Dali, fundadores do movimento surrealista, eram misóginos que acreditavam que o talento era uma prerrogativa exclusiva dos homens; ainda assim, foi Breton um dos primeiros a comprar um dos quadros de Maruja. Aos poucos, no entanto, seu nome foi desaparecendo da história.
Quando explodiu a Guerra Civil na Espanha, em 1936, a sanguinária devastação não só das liberdades como de seu próprio país fez com que Maruja decidisse se exilar, partindo para a Argentina em uma viagem que significaria também o ocaso de seu reconhecimento artístico. Conta a história que a decisão de sair ao exílio fez com que seus pares surrealistas não só a desprezassem como passassem a objetivamente boicotar seu trabalho e o reconhecimento de sua participação no movimento, e assim teve início o desaparecimento de Maruja Mallo do legado surrealista.
Como era peculiar entre os surrealistas, a exuberância, a extroversão e a provocação também eram marcas do comportamento de Maruja, que mesmo vivendo exilada em outro continente, rapidamente tornou-se célebre no jetset e na vida cultural de Buenos Aires – e, sempre viajando, também em Nova Iorque, Paris e até no Rio de Janeiro. Maruja fez novos amigos, entre eles Andy Warhol, e seguiu pintando: abandonou a temática surrealista e social que marcou seu trabalho ainda na Espanha, e passou a pintar o corpo feminino, temáticas oceânicas e até mesmo a mitologia feminina.
Acima, Maruja com Warhol; abaixo, uma de suas pinturas femininas e oceânicas
Enquanto isso, na Europa, aos poucos Maruja foi sendo transformada em um mero “mascote” surrealista – uma espécie de “musa”, que namorou diversos nomes importantes da cena da época, mas sem maior relevância própria e profissional. Quando retornou à Espanha, em 1962, a realidade política, social e principalmente artística já era outra: sua geração havia “passado”, a imprensa espanhola ou não a conhecia ou não a compreendia, e seu comportamento exótico – outrora celebrado, e ainda visto como marca da genialidade em um artista como Dali – fez com que Maruja um tanto deixasse de estampar os textos da crítica ou as revistas de arte para se tornar um exótico personagem de colunas de fofoca.
Maruja Mallo faleceu em 1995, em Madri, aos 93 anos, e agora, com as tantas revisões críticas que o ressurgimento do movimento feminista vem realizando, sua real posição na história, como uma das melhores e mais importantes artistas do primeiro momento das vanguardas espanholas e do movimento surrealista, pode ser enfim definida. Basta colocar tal revisão na perspectiva de todos os movimentos do passado para facilmente concluir que Maruja é, no entanto, somente uma entre as tantas artistas que, mesmo que tardiamente, merecem também os louros do reconhecimento.
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