por: Vitor Paiva
Até o início dos anos 1960, Liverpool era uma cidade portuária e pobre ao norte da Inglaterra que ainda se reconstruía da destruição quase absoluta que enfrentou durante a Segunda Guerra Mundial – de onde jamais se poderia imaginar que a maior revolução da música pop em todos os tempos sairia. Essa história, porém, todos já sabem: John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr se juntariam para se tornar a maior banda de todos os tempos. Mas, em 1962, antes dos Beatles conquistarem o mundo, eles primeiro conquistaram Liverpool, principalmente através da casa de shows The Cavern Club, onde se apresentaram quase 300 vezes. Na plateia de um desses shows, em 1962, estava a jovem Mary McGlory, nascida e criada em Liverpool como cada um dos quatro rapazes no palco, que ao vê-los disse para a irmã a seu lado: nós vamos ser como eles. Vamos ser a primeira banda de garotas a fazer sucesso.
Assim nasceu The Liverbirds, uma das primeiras bandas femininas de rock em todos os tempos: contemporânea e vizinha ao Beatles, formada originalmente por Mary, sua irmã Sheila e Irene Green. Mary tinha planos de se tornar freira, mas antes queria ficar muito rica com a música. O nome foi escolhido em homenagem ao pássaro-símbolo de Liverpool, e os instrumentos foram comprados em uma loja local.
Tudo estava pronto, e os comentários a respeito dessa banda feminina que se formava para rivalizar com os Beatles – que então já eram imensamente populares na região – já se espalhavam pela cidade. Mas havia um discreto obstáculo entre a banda e o estrelato: ninguém sabia tocar.
Sheila e Irene desistiram da carreira musical, mas logo a campainha tocou: eram as jovens Sylvia Saunders e e amiga Valerie Gell, que haviam ouvido falar da banda. Valerie sabia tocar, e decidiu que ensinaria as garotas seus instrumentos. Em seguida uma jovem com uma bela voz grave e imenso talento para a música e a guitarra também ficou sabendo e correu para ganhar seu lugar na banda: Pamela Birch se tornaria principal vocalista e uma espécie de líder das The Liverbirds. Com Pam na guitarra e nos vocais, Valerie na guitarra, Mary no baixo e nos vocais e Sylvia na bateria, o grupo estava formado, e assim os ensaios começaram incessantemente.
O plano era provar que mulheres podiam sim ter uma banda de rock e fazer sucesso – até John Lennon teria comentado, ao saber da banda, que “garotas não conseguiam tocar guitarra”. Pois elas conseguiam, e em pouco tempo conquistaram seu lugar não só no mesmo Cavern Club que tanto os Beatles haviam tocado, como seguiram em frente. “São adolescentes que se juntaram para tentar quebrar o monopólio masculino do mundo do rock”, dizia uma matéria sobre a banda. “Os namorados, se quiserem, que as acompanhem, pois as garotas passam a maior parte do tempo tocando”.
Rapidamente estavam em turnê, dividindo palco com ninguém menos que os Kinks e os Rolling Stones, então bandas iniciantes como elas. Mas os Beatles eram o grande farol a se seguir – para onde eles iam, todos desejavam ir. Quando eles foram tocar na Alemanha, elas decidiram que tinham que também ir; quando assinaram contrato com o empresário Brian Epstein, elas não tiveram dúvidas a quem procurar.
Pois Epstein conhecia a banda – que já começava a conquistar sucesso com “Peanut Butter”, uma boa canção de rock com uma letra inocente sobre manteiga de amendoim, mas uma levada animada e deliciosa para se balançar – e quis contratar as garotas. Havia, porém, somente uma ressalva: ele não achava que elas deveriam ir para Hamburgo, na Alemanha, onde os Beatles tocavam, por se tratar de uma cidade famosa por seus bordéis, bares perigosos, muito álcool e drogas e violência boemia – exatamente nos locais onde as bandas tocavam. Elas então tiveram a coragem de dizer não para o empresário dos Beatles, e foram para a Alemanha por conta própria.
Apesar da má-fama, a banda se estabeleceu em Hamburgo, onde começou a fazer sucesso. A segunda canção a cair no gosto do povo, “Why Do You Hang Around Me”, formou com “Peanut Butter” o primeiro compacto, lançado pelo selo do Star-Club, casa de shows alemã onde se tornaram banda residente. Da Alemanha passaram a viajar por toda a Europa: Suíça, Noruega, Dinamarca, Reino Unido, Austria, Holanda, Suécia, Alemanha, e mais. As plateias aumentavam, e junto com elas os autógrafos, presentes, o dinheiro, e a promessa de estrelato. Quando os Beatles foram para os EUA, se apresentaram no programa de Tv The Ed Sullivan Show e se tornaram a maior banda do mundo, elas pensaram: os Estados Unidos, então, tem de ser o nosso próximo destino.
Se ainda hoje ser mulher no meio musical não é fácil, na primeira metade da década de 1960 era tarefa que beirava o impossível. As Liverbirds foram convidadas para tocar nos EUA, mais precisamente em Las Vegas, mas com uma única exigência: que fizessem os shows sem a blusa, com os seios de fora em topless. Elas negaram, e seguiram na construção do sucesso na europa. Subitamente, porém, o sonho de eterna juventude que o rock oferece – e que muito homens conseguem manter por toda a vida – se tornou mais complicado para as garotas: a baterista Sylvia estava grávida. Era uma gravidez complicada, e seu médico afirmou que ela não podia mais tocar se quisesse ter o filho Sylvia não teve escolha, e decidiu largar a banda.
Na mesma época, o noivo de Valerie sofreu um acidente de carro, e se viu paralisado do pescoço para baixo. Ela mesmo assim aceitou o pedido de casamento, e deixou a banda para cuidar do marido – de quem tomaria conta por 26 anos. Mary e Pam ainda tentaram seguir com a banda, convocando duas musicistas alemãs para fazerem com elas a turnê pelo Japão que já estava agendada. O espírito de companheirismo e amizade, sem Sylvia e Val, já não era mais o mesmo e assim, em 1968, elas decidiram acabar com as Liverbirds.
Mary se casou na mesma época que Sylvia. Depois que seu marido faleceu, Valery voltou para Hamburgo, onde viviam as outras três, e casou-se com uma mulher, vivendo feliz os últimos 10 anos de sua vida. Pam, por sua vez, nunca superou de fato a separação da banda – saltou de cabeça no álcool e nas drogas, e morreu de câncer de pulmão, com sua amiga Mary ao seu lado.
Hoje seguem vivas e amigas em Hamburgo a baixista e a baterista das Liverbirds, exatamente como seguem vivos o baixista e o baterista dos Beatles. A banda lançou alguns discos, outros compactos, viajou todo o continente, tocou no Japão e viveu uma rara aventura, indo mais longe de que boa parte dos aspirantes a estrelas do rock. “Essa coisa que fizemos entre 0s 16 anos e 23 anos. Estava escrito que a gente viveria tudo isso. Era o destino: Nós éramos as Liverbirds!”, diz Sylvia. “Nunca ficamos tão famosas quanto os Beatles, mas começamos como amigas e terminamos como amigas”, reflete a baterista.
Em 2019 essa incrível história foi transformada no musical “Girl’s Don’t Play Guitar”, ou, em tradução livre, Garotas não tocam guitarra. Além de se envolverem na produção do espetáculo, Sylvia e Mary, hoje viúvas, também voltaram a tocar juntas – em noites especiais, no encerramento do espetáculo, com a banda do musical, que celebra as aventuras e a música de uma das primeiras bandas femininas de rock da história, saída de Liverpool, formada por quatro jovens garotas que simplesmente queriam tocar. Mary nunca se tornou freira.
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