Mulheres vítimas de violência doméstica podem, desde o começo do mês, registrar boletins de ocorrência pela internet em estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo e no Distrito Federal. A medida foi tomada em caráter de emergência por causa do aumento de casos do crime durante a pandemia de Covid-19 e também por causa da subnotificação provocada pelo isolamento social.
Em São Paulo, embora não haja ainda dados oficiais, que devem ser divulgados apenas no fim do mês, todos os dias o registro desse tipo de ocorrência cresce entre 10% e 15% em relação ao dia anterior. Mas o que acontece depois que uma mulher emite, de casa, esse grito de socorro? Conversamos com advogadas e a Secretaria de Segurança Pública (SSP) para descobrir.
Em São Paulo, embora não haja ainda dados oficiais, que devem ser divulgados apenas no fim do mês, todos os dias o registro desse tipo de ocorrência cresce entre 10% e 15% em relação ao dia anterior. Mas o que acontece depois que uma mulher emite, de casa, esse grito de socorro? Conversamos com advogadas e a Secretaria de Segurança Pública (SSP) para descobrir.
Como obter provas em um B.O. pela internet?
Assim como os demais casos registrados pela delegacia eletrônica, os boletins de violência doméstica passam por uma triagem e são encaminhados à Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) da região de cada ocorrência. Nas cidades que não contam com uma DDM, a ocorrência será direcionada a uma delegacia territorial correspondente à residência da vítima.
Em seguida, cabe aos delegados ou delegadas responsáveis providenciar as diligências e perícias necessárias, assim como entrar em contato com a vítima, de forma discreta, para saber da necessidade da realização de exames periciais e de medida protetiva, dentre outros.
De acordo com a SSP, é importante que as vítimas guardem provas em lugar seguro, como fotos, vídeos e diálogos escritos, pois elas são necessárias para materialidade dos casos e serão requisitados pelos delegados.
Em casos de medida protetiva
Nos casos em que a mulher pede uma medida protetiva, o agressor é notificado pelo oficial de justiça e, caso ele não saia de casa, poderá ser preso em flagrante. Se a mulher precisar ser abrigada, ela deve informar no boletim de ocorrência. Assim, os policiais podem tomar as providências necessárias.
De acordo com Celeste Leite dos Santos, promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, gestora do projeto Mente Saudável e do Projeto Avarc (Projeto de Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos), há várias opções de medidas protetivas de urgência que podem ser aplicadas à vítima.
A mulher pode, segundo Celeste, ser encaminhada a um programa oficial ou comunitário de proteção ou atendimento ou pode ser reconduzida ao seu domicílio após o afastamento do agressor -- caso ela seja afastada de seu lar, ficam preservados os direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos. Outra medida que pode ser tomada é a separação de corpos ser decretada.
"Infelizmente, a realidade tem mostrado que toda a atuação protetiva efetuada na seara penal nos casos concretos não têm se revertido na esfera familiar, operando o fenômeno da revitimização da mulher e das vítimas indiretas, tais como filhos e pais idosos que residiam com o casal", afirma ela.
"O sistema de Justiça precisa lançar um olhar mais atento e cuidadoso relacionado à violência patrimonial contra a mulher, seja em tempos de crise do coronavírus ou não. É indispensável que logo seja resguardado o patrimônio do casal desde a primeira comunicação da prática de crime, evitando-se que a perpetuação da violência contra a mulher se opere por uma disfunção no funcionamento do sistema de Justiça", explica.
De acordo com a promotora, uma medida que poderia minimizar esse desamparo da mulher e seus dependentes seria a solidariedade das pessoas, o olhar humanista, com plantões de advogadas voluntárias ainda que virtualmente junto às delegacias da mulher. E que a autoridade policial também tenha em mente que esse tipo de delito possui consequências familiares que vão além da repressão à prática delitiva, devendo, na medida do possível, orientar a vítima quanto a seus direitos.
Ela alerta que as 134 Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo estão funcionando regularmente, inclusive as 10 DDMs 24 horas. Além das delegacias especializadas, a vítima pode comparecer em qualquer unidade policial para fazer a denúncia — dessa forma, os policiais adotam o protocolo único de atendimento, que estabelece padrão para o acolhimento.
Os prós e os contras do B.O. pela internet
Para a promotora de Justiça Celeste, o boletim de ocorrência online é uma ferramenta a mais para o combate à subnotificação de delitos e garantia dos direitos da vítima, pois estimula a denúncia. Mas ela deve ser aliada a outros métodos para que haja a integral proteção prevista na Lei Maria da Penha e na Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e Abuso de Poder da ONU.
"Trata-se de instrumento que veio para ficar, já que tem o lado positivo de dar mais anonimato para a mulher no sentido de o agressor não tomar conhecimento imediato porque alguém viu sua esposa, filha, mãe idosa entrar na delegacia e narrar o ocorrido", afirma. "Mas deve haver um monitoramento contínuo dos casos pela autoridade policial a fim de que sejam tomadas providências imediatas pela autoridade policial visando a preservação das provas materiais, a integridade da própria vítima e das testemunhas."
De acordo com a promotora, tal medida ainda vem ao encontro da sistematização de dados em um cadastro único nacional — assim, além das medidas repressivas e preventivas individuais, ele vai possibilitar o desenvolvimento de políticas públicas nacionais de enfrentamento da violência contra a mulher.
Segundo Celeste, a vítima rompe uma barreira pessoal para buscar auxílio externo — por isso o sistema de proteção à mulher deve estar preparado e capacitado para lidar com essa modalidade delitiva, inclusive com o uso de ferramentas de videoconferência.
"A dor, mesmo rodeada de palavras, não consegue ser integralmente trasladada para o vocábulo escrito", explica. "A Lei Maria da Penha determina que deve haver a escuta especializada da vítima de violência doméstica. Assim, o ideal é que sejam realizadas com a maior brevidade possível videoconferências para a triagem inicial do boletim de ocorrência, e que seja garantido à vítima o direito à escuta ativa, participação, acolhimento multidisciplinar no sentido de que o trauma causado pelo crime não se aprofunde."
Há ainda outro porém no registro eletrônico, afirma a promotora. "Ele somente aceita que a própria vítima reporte à autoridade policial a prática de violência sofrida pela mulher, seja esta física, moral, psicológica ou patrimonial", diz. "Ao estabelecer esse limite, o vizinho que escuta diariamente pedidos de socorro e escuta atos de violência não poderia usar desse instrumento para denunciar a prática de violência contra a mulher."
A bacharel em direito Rafaela Nepomucena, coordenadora do Projeto TamoJuntas, de São Paulo — movimento que possui 16 advogadas, três psicólogas, quatro bacharéis em direito e uma assistente social —, afirma que o coletivo tem um posicionamento com ressalvas ao boletim eletrônico.
"Claro que, nesses tempos de isolamento, o B.O. online facilita muito, mas não achamos que a medida seja suficiente para os altos índices de violência que temos", afirma. "Ele ajuda, mas ainda há muitos receios sobre a implementação. Primeiro porque devemos contar com a vulnerabilidade da mulher que é a vítima desse tipo de violência, pois sabemos que nem todas têm acesso à internet ou a um smartphone — ou, se possuem, muitas vezes o aparelho é compartilhado com o agressor ou com filho", explica.
Segundo Rafaela, é preciso debater a ausência desses recursos e a frieza do distanciamento em que essa mulher vai denunciar seu companheiro ou familiar. Existe também a dificuldade que essa mulher vai encontrar ao relatar a violência, porque já é extremamente complicado falar, narrar pessoalmente, tanto em uma delegacia comum de polícia, onde pode haver o enfrentamento ao machismo por parte das autoridades policiais, quanto em uma delegacia da mulher. "Imagine digitar, descrever a violência sofrida pela internet?"
Outro canal online para relatar violência
Com sigilo garantido e para auxiliar as denúncias das vítimas de violência doméstica, existe o projeto Carta de Mulheres, lançado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Qualquer pessoa que queira ajudar uma mulher vítima de violência pode acessar o formulário online e preencher os campos. Quem responderá as questões são profissionais que trabalham na Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário (Comesp).
Os especialistas orientam também sobre o atendimento adequado, como delegacias, casas de acolhimento, Defensoria Pública, Ministério Público, e diversos programas de ajuda de instituições públicas ou organizações não governamentais.
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