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sábado, 18 de abril de 2020

Isolamento social limita acesso de população a tratamento transexualizador no SUS

Sistema de saúde realizou mais de 13 mil tratamentos em 2019, mas com a pandemia, falta informação sobre a suspensão de hormônios e o adiamento de cirurgias; ambulatório referência em MG mantém atendimento clínico online
Por Lola Ferreira e Sanara Santos*
16 DE ABRIL DE 2020
“Minha prioridade nessa pandemia é manter o meu hormônio.” A angústia vem do DJ e dançarino Aru Macedo, de 23 anos. Recém-chegado à capital paulista, ele não conseguiu se cadastrar em um ambulatório da cidade para manter o tratamento hormonal em sua nova casa. Com o avanço do novo coronavírus, Macedo reviveu um problema já conhecido para homens e mulheres transgênero: o distanciamento entre o sistema de saúde e os corpos trans. A preocupação do DJ é a mesma de outras pessoas transgênero ouvidas nesta reportagem: o medo dos efeitos da suspensão do tratamento hormonal agora se soma ao medo de serem contaminados pelo vírus.

Este é também o caso de Marina Mathey, artista de 27 anos, moradora do Grajaú, na zona sul de São Paulo. A travesti, como se identifica, começou o tratamento hormonal pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em meados de 2019. Mas o avanço da covid-19 interrompeu seu tratamento. Após mudar de unidade de saúde, pouco antes do início do isolamento social, Mathey não conseguiu ir além da primeira consulta. Ela ainda tem mais uma receita dos hormônios necessários, mas teme sair às ruas e comprar o medicamento, por medo da contaminação. Até o dia 15 de abril, o estado de São Paulo já registrava mais de 9 mil casos, de um total de mais de 28 mil casos pelo país.
Os tratamentos transexualizadores podem ser ambulatoriais, com atendimento clínico e consultas para uso de hormônio, ou hospitalares, com as intervenções cirúrgicas transexualizadoras. Mas ambos os tipos de atendimento estão suspensos durante a pandemia de covid-19, pois não são considerados essenciais, bem como cirurgias eletivas e consultas até mesmo para pacientes de doenças graves, como câncer. 
A medida visa diminuir o fluxo nos ambientes hospitalares e prepará-los para a demanda dos infectados com coronavírus, que cresce exponencialmente. Entretanto, a falta de informações sobre efeitos da suspensão do tratamento hormonal e adiamento das cirurgias é motivo de ansiedade para pessoas transgênero, que a cada ano têm usado mais e mais o SUS para o processo transexualizador.
A gente entende que se a pessoas não tomarem o hormônio todos os dias, o tratamento para de funcionar, mas não é exatamente assim
— Fe Maidel, psicóloga e membro da Associação Brasileira Profissional pela Saúde Integral de Travestis, Transexuais e Intersexos
Todos os procedimentos vigentes para a população trans no SUS são fruto da portaria 2.803/2013. É o documento que define as diretrizes para acesso no sistema e busca garantir a integralidade dos processos. Foi a partir deste documento que o SUS ampliou os procedimentos. Desde 2014, foram disponibilizados os dados de terapia hormonal e procedimentos cirúrgicos, com números mais específicos. Anteriormente, só havia dados de “acompanhamento do paciente no processo transexualizador”, sem qualquer distinção.

Interrupção

Somente em janeiro de 2020, o SUS realizou 307 procedimentos ambulatoriais de processos transexualizadores. Somando os meses de janeiro e fevereiro, os atendimentos hospitalares foram 24. Em todo o ano de 2019, esses números foram de 13.255 e 88, respectivamente. Números parciais sugeriam um aumento de cirurgias do processo transexualizador no SUS, até a chegada da pandemia. Implantes de próteses mamárias em mulheres trans, por exemplo, já haviam sido realizados mais vezes (12 procedimentos) nos dois primeiros meses de 2020 do que em todo o ano de 2019 (11 procedimentos). Os dados são do DataSUS, do Ministério da Saúde. 
O aumento dos procedimentos indica maior expansão do sistema de saúde para essa parcela da população e também mais confiança das pessoas trans neste mesmo sistema. Agora, as poucas informações colocam à prova essa proximidade.
“Depois que ‘transicionei’, eu fiquei três anos sem pisar em um hospital, sem fazer um exame ou buscar um acompanhamento de nada, porque eu não tinha coragem de ir a um posto de saúde para ser violentada, desrespeitada e invisibilizada. Ainda são poucas as pessoas que sabem tratar a gente com respeito”, conta Marina Mathey. 
O modelo Joseph Rodrigues, de 27 anos, também desabafa sobre a suspensão do tratamento diante da quarentena na capital paulista. Apesar de todos os entrevistados compreenderem o momento sanitário atual, eles acusam efeitos psicológicos. Rodrigues, por exemplo, conta como a volta do ciclo menstrual o afeta psicologicamente. 
Como a consulta marcada para o dia 20 de abril (para fazer o retorno dos exames e uma aplicação hormonal) foi cancelada, Rodrigues se mostra apreensivo, pois o valor dos hormônios, caso não sejam disponibilizados pelo SUS, é muito alto. 
“A minha agenda de trabalho foi cancelada, então todo o dinheiro que eu ganhar é para aluguel, comida e meus animais de estimação. Então, não vai ter como tomar hormônio. Enquanto isso várias reações acabam ocorrendo no corpo, as disforias e tudo mais.” Ele ressalta que seria fundamental, neste momento principalmente, um atendimento psicológico: “Teria que ter [atendimento psicológico], ainda por ser uma pessoa trans de periferia. Teria que ter esse cuidado com o nosso emocional, mas não se tem”, completa.
Sobre o medo da suspensão do uso de hormônio, a psicóloga Fe Maidel, da Associação Brasileira Profissional pela Saúde Integral de Travestis, Transexuais e Intersexos (ABRASITTI), explica que isto não significa o fim do tratamento.
“Existe uma presença residual do hormônio durante algum tempo no corpo. A ausência do hormônio só vai se manifestar em um tempo. Esperamos que o sistema de saúde volte e recupere isso. Em geral, a gente entende que se a pessoas não tomarem o hormônio todos os dias, o tratamento para de funcionar, mas não é exatamente assim”, analisa. Ainda que haja efeitos imediatos, como a volta do ciclo menstrual, “o corpo guarda aquela memória, aqueles efeitos”, de acordo com Maidel. 
Questionado sobre orientações de atendimento a essa parcela da população a nível nacional, o Ministério da Saúde não respondeu até o fechamento desta reportagem. Também não responderam as secretarias de saúde de Espírito Santo, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, consultadas sobre o acesso ao tratamento em seus estados. A Bahia informou que “os pacientes continuam com acesso aos profissionais em caso de necessidade. Quanto a medicações, as farmácias continuam dispensando”. 
A Secretaria de Saúde de Pernambuco informou que, durante a pandemia, os serviços de atendimento à população trans são realizados de forma virtual, com entrega de receitas de medicamentos sem vencimento, para não interromper o fluxo dos tratamentos.
Goiás informou que suas unidades de saúde estão lidando com o atendimento para pessoas transgênero durante a pandemia de uma das seguintes maneiras: com teleatendimentos e envio de receitas pelos Correios ou reagendamento das consultas presenciais para evitar aglomeração.
Os estados contatados, além de Minas Gerais, foram os únicos que tiveram registro no DataSUS de procedimentos exclusivos a pessoas transgênero desde 2008, com 12 unidades de saúde habilitadas ao todo. Além dessas, o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde registrava, em fevereiro de 2020, outras 40 unidades de saúde com o serviço “Atenção especializada no processo transexualizador” incluído, mas que não registraram nenhum atendimento no DataSUS. Confira as duas listas aqui.
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Atendimento virtual

Em Minas, para tentar evitar relatos similares, o Centro de Referência de Atenção Integral à Saúde Transespecífica, da Universidade Federal de Uberlândia (Craist/UFU), adaptou-se aos tempos de pandemia para que as mulheres e os homens trans atendidos no ambulatório não perdessem o acolhimento. 
“Num primeiro momento, deixamos as receitas prontas, mas não dava certo porque incentivava a pessoa a sair de casa para buscá-las. Depois pensamos que muitos vivem em conflito dentro da própria casa, e esse momento pode potencializá-los. Então criamos o teleatendimento, para que a gente possa fazer uma escuta, um acolhimento. Entendemos que talvez sejam possíveis as consultas virtuais. Estamos aprendendo também nesse processo”, relata Flávia Teixeira, coordenadora do Craist.
Professora da Faculdade de Medicina da UFU, ela explica por quê manter o atendimento, principalmente o psicossocial, nesse momento, mesmo que à distância: “Garantir a continuidade do atendimento é importante”
Além de fornecer atendimento virtual, o Craist reservou um dia para atendimentos presenciais que sejam urgentes para a população trans, como a suspeita de gravidez por um homem trans ou hemorragia decorrente da medicação.

Vulnerabilidades pouco faladas

Embora não haja números oficiais sobre o gênero da população trans no Brasil, as mulheres trans são a maioria no acesso ao processo transexualizador no SUS,  de acordo com os dados do DataSUS. Entre 2014 e 2019, 2.343 procedimentos cirúrgicos exclusivos às mulheres trans foram feitos. Aqueles exclusivos para homens trans foram 53 no mesmo período. Há ainda os procedimentos para ambos, que são as cirurgias complementares, que totalizaram 92 nos seis anos analisados.
Mas no cenário da pandemia, há vulnerabilidades e especificidades de homens e mulheres trans que têm de ser observadas para maior prevenção à covid-19. A psicóloga Fe Maidel conta que muitas mulheres trans fazem uso do silicone injetado, para a prótese mamária. Tal prática é sempre perigosa, mas pode ser pior quando há circulação de uma doença potencialmente letal para quem tem o sistema imunológico mais debilitado.
“A injeção sem a assepsia apropriada pode criar um campo inflamatório crônico e rouba a capacidade do sistema imunológico de trabalhar plenamente. Se houver algum ferimento, é preciso procurar a emergência. Não é recomendado, existem outras maneiras de conseguir [a mama]. A recomendação, por causa da pandemia, é evitar. Na verdade, evite sempre”, alerta.
Além dessa especificidade para mulheres trans, há também o binder, dispositivo utilizado por homens trans para diminuir o volume mamário e amenizar a disforia de gênero. Por ser um tecido de compressão, há relatos de tosse e dificuldades para respirar durante o uso, pois a pressão pode afetar os pulmões. Como a covid-19 é uma doença que atinge o sistema respiratório, profissionais da saúde aconselham observar o tempo de uso, principalmente em tempos de quarentena. 
“Caso seja possível para esses homens trans ficarem em casa, é bom abdicar do binder um pouco, pela saúde. Se trabalham em serviços essenciais e vão sair às ruas, usem. Mas é importante se lembrar de não entrar em risco por causa do uso do binder”, aconselha.
*Lola Ferreira é repórter da Gênero e Número e Sanara Santos é repórter da Énois.
Os dados que guiaram esta reportagem estão disponíveis para download neste link.

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