Informações da Segurança dos estados sobre esse tipo de violência doméstica são insuficientes para traçar perfil das vítimas e o impacto sobre elas; Saúde registra casos em que há cruzamento com outras violências
“E quem destrói livros de uma pessoa que adora estudar?”, “Ele destruiu a minha casa após o divórcio”, “Sumiu e não paga a pensão alimentícia”: estes são alguns relatos de mulheres que buscam, desesperadas, respostas na internet sobre um tipo de violência doméstica pouco discutido e muito prejudicial, a violência patrimonial. Prevista na Lei Maria da Penha, essa faceta do sofrimento ao qual as mulheres estão expostas é pouco difundida e pode afetar bens de valor financeiro ou afetivo das mulheres, bem como atrasar seus projetos pessoais e, em última instância, expô-las à fome e falta de moradia. Durante a pandemia, o problema ficou ainda mais evidente, com relatos de roubo do auxílio emergencial por parte de ex-companheiros. Mesmo com todo esse peso, as unidades federativas do Brasil ainda não se empenham em produzir dados suficientes para traçar o perfil das vítimas, agressores e impactos dessa violência, que poderiam auxiliar no aprimoramento de políticas públicas.
A plataforma EVA (Evidências sobre Violências e Alternativas), do Instituto Igarapé, reúne dados da Saúde e da Segurança de todos os estados brasileiros sobre violência doméstica. Crimes mais discutidos na mídia e em espaços de proteção, como agressões e estupros têm maior detalhamento e disponibilidade de dados relacionados, mas em relação à violência patrimonial ainda há um longo caminho a ser percorrido. Na base de Segurança, por exemplo, somente três estados especificaram aos pesquisadores que os crimes ali relatados se tratavam ou não de violência doméstica. Na Saúde, não há qualquer distinção nesse sentido.
A plataforma EVA (Evidências sobre Violências e Alternativas), do Instituto Igarapé, reúne dados da Saúde e da Segurança de todos os estados brasileiros sobre violência doméstica. Crimes mais discutidos na mídia e em espaços de proteção, como agressões e estupros têm maior detalhamento e disponibilidade de dados relacionados, mas em relação à violência patrimonial ainda há um longo caminho a ser percorrido. Na base de Segurança, por exemplo, somente três estados especificaram aos pesquisadores que os crimes ali relatados se tratavam ou não de violência doméstica. Na Saúde, não há qualquer distinção nesse sentido.
Os dados de 2018 apontam que houve 29.270 registros de violência patrimonial naquele ano, mas apenas três estados especificaram quais destes foram casos de violência doméstica: Mato Grosso do Sul, Pará e Rio Grande do Sul. Juntos, eles somam 1.962 casos de violência doméstica patrimonial contra mulheres em 2018, um total de 6% do total do país. No MS, os casos domésticos são 25% do total desse tipo de violência, no Pará, 6% e no Rio Grande do Sul, 20%.
É fundamental lembrar que o artigo 38 da lei Maria da Penha prevê que as estatísticas da violência contra a mulher devem ser “incluídas nas bases de dados dos órgãos oficiais do Sistema de Justiça e Segurança a fim de subsidiar o sistema nacional de dados e informações relativo às mulheres”. Houve um avanço nos últimos 14 anos, desde a sanção do texto, mas algumas violências não recebem o mesmo cuidado na produção de seus dados.
Apesar da lei obrigar, não há informações sobre como esses dados devem ser sistematizados. Portanto, nem todos os estados separam os crimes entre violência doméstica e violência contra a mulher, ou têm a divisão das violências. Além dos três já citados, apenas outros sete registraram casos de violência patrimonial no sistema de Segurança em 2018. Ou seja: mais da metade dos estados não faz o registro adequado.
A pesquisadora Terine Husek, do Instituto Igarapé, que atuou na produção desse banco de dados, avalia que há ainda muita carência na produção de informações nos estados sobre violência contra a mulher, com uma espécie de hierarquização das violências: “A violência patrimonial não é muito vista, não chama tanto a atenção. Talvez por julgarem menos grave”.
Sem distinção
Esse apagão de dados pode prejudicar as políticas públicas de combate ao problema, que passa, principalmente, pela conscientização das vítimas e dos profissionais envolvidos, principalmente advogados. A prática da violência patrimonial consiste em restringir acesso da vítima a valores que lhe são devidos ou destruir seu patrimônio, como imóveis, eletrodomésticos e até documentos. Essa disputa, em geral, desemboca na Justiça, que precisa fazer a mediação e devolver à vítima o que lhe é de direito. Mas em uma sociedade ancorada em valores que culpabilizam as mulheres, isso é ainda mais difícil, na opinião de Bianca Alves, advogada e coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento à Violência de Gênero da OAB Mulher/RJ.
“A nossa sociedade é machista. A mulher muitas vezes deixa de seguir na sua carreira, trabalho e profissão para cuidar da família. Em muitas famílias, o homem é quem ‘cuida’ do dinheiro. No entanto, em situações de divórcio esta mulher se vê desamparada. Os agressores forçam acordos judiciais desfavoráveis, oferecem pensões alimentícias ínfimas, retêm bens, documentos. Por isso precisamos informar, fortalecer e empoderar as mulheres. A luta é constante”, avalia Alves. Para ela, campanhas de conscientização para mulheres são um dos principais meios de difundir a ideia de que essas práticas são violentas.
A advogada também alerta que este tipo de violência não tem distinção de classe social, e pode atingir desde as mulheres mais pobres até as mais ricas. A supressão de bens não necessariamente implica em valor material alto, mas qualquer violação que prejudique a vítima. Alves afirma que, durante a pandemia causada pelo novo coronavírus, mulheres relataram roubo do auxílio emergencial (R$ 600 a parcela) oferecido pelo Governo Federal, por exemplo.
E as marcas invisíveis não tornam a violência patrimonial mais branda. “As consequências são terríveis. O que vemos na prática é um sentimento de tristeza e de perda daquilo que elas julgavam ser importante para as suas vidas”, diz Alves, que também chama a atenção para outro ponto sensível e, aí sim, mais divulgado da violência patrimonial: o imbróglio da pensão alimentícia.
No recente especial “Retrato das mães solo na pandemia”, a Gênero e Número mostrou que houve queda de 70% nos pedidos de pensão alimentícia somente em São Paulo, no mês de abril. Isso porque as mães têm encontrado dificuldades para cobrar os valores na Justiça.
Mas é uma nova roupagem para um velho problema. Maria** conta que há sete anos não consegue encontrar o pai de seu filho, hoje com 14 anos, para acertar os valores de pensão alimentícia. O último contato do pai com o menino foi em dezembro de 2013, mas desde essa época ela arca sozinha com os custos da criação: quando ficou desempregado em 2011, o homem nunca mais pagou nenhum valor ao filho. Junto a outros problemas pessoais, como recente falecimento da mãe, a luta na Justiça de quase uma década influencia na saúde mental de Maria, que hoje busca acompanhamento psicológico.
“A prioridade sempre será meu filho. Eu trabalho, moro com meu pai, mas nunca consegui pagar um aluguel para mim. Eu trabalho para pagar as contas, principalmente educação. Esse tempo todo eu faço tudo em prol do meu filho, se sobrar dinheiro pra mim, eu faço algo”, conta.
Com a chegada da pandemia, Maria está ainda mais preocupada: a instabilidade econômica pode atingi-la, e sem qualquer outra renda de apoio, que deveria vir do pai do seu filho, ela teme pelo futuro. Mas ainda assim, sente muita confiança que o menino receberá o que lhe é devido: “Eu não vou desistir”.
Impactos na saúde mental
Tantos anos de trauma, explica a psicóloga Natália Marques, impactam, sim, na saúde da mulher. Tem o fator mental, porque “o medo e a tensão costumam ser uma constante, favorecendo a ocorrência de transtornos de ansiedade, depressão”, afirma Marques, mas também o fator físico, pois é um tipo de violência comumente associado a outras, principalmente a psicológica e a sexual.
“Você não confia em mim?”, dizem, ao pedir as senhas do banco. “Se não fizer [sexo], não merece o dinheiro”, ameaçam, antes de liberar renda necessária para manutenção da casa, por exemplo, de acordo com a mestranda em Psicologia da Saúde.
Essa interseção de problemas é possível observar também nos dados. O sistema de Saúde registra casos de violência patrimonial. Os dados mais recentes disponibilizados pela EVA são de 2017, e ali constam 3.340 entradas, em todos os estados e no Distrito Federal. O EVA utiliza como base o Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), que não tem exclusividade no tipo de violência. Ou seja, as vítimas de violência patrimonial que deram entrada nas unidades podem tê-lo feito por terem sofrido algum tipo de agressão que necessitava de acompanhamento médico, e o preenchimento da ficha ficou sob responsabilidade do profissional de saúde.
Naquele ano, 49% dos registros de saúde com menção à violência patrimonial tiveram como agressores os companheiros ou ex-companheiros das vítimas.
“Os abusos são sempre gradativos, lentamente o agressor começa a controlar o dinheiro, depois a liberdade, condicionando a sempre ter que pedir dinheiro, fazendo com que ele te mantenha sempre sob controle, exercendo dominação”, alerta Natália Marques.
No consultório, o processo de entender que foi vítima de um tipo de violência é “difícil, longo, nada linear, mas libertador”, afirma a psicóloga. Ela ressalta que o sentimento de culpa é muito constante nessas mulheres, mas que a terapia é importante para compreender que a vítima não é responsável pelo que sofreu.
Para lidar melhor com o trauma, uma das principais recomendações é apoio financeiro de amigos e familiares, que possam ajudá-la a reaver os seus bens possíveis e reerguer financeiramente sua vida.
“Por conta disso, é tão importante a conscientização social sobre o tema, para que as vítimas recebam apoio e sejam validadas, não julgadas como culpadas”, finaliza.
*Lola Ferreira é repórter da Gênero e Número
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