Não há nada de romântico em narrativas que fazem de homens predadores galãs
Carta Capital
FASHION REVOLUTION
20 DE JULHO DE 2020
Por Stephanie Ribeiro
Existe uma relação intrínseca entre poder e fama com abusos sexuais contra mulheres e crianças, o universo da moda é sem dúvidas historicamente associada ao controle, dinheiro e influência, logo muitas vezes usado para glamourizar esses abusos dando lhes um filtro elegância e naturalidade. Foi o que assistimos na novela Verdades Secretas da emissora Rede Globo, exibida no ano de 2015, na qual o enredo abordava o mundo da moda e a prostituição de luxo. Em meio a imagens de desfiles, editoriais, foi mostrado jovens menores de idade que eram prostituídas pelos bookers para homens ricos e poderosos.
Na época houveram várias negativas de profissionais de agências sobre a abordagem, contudo ninguém desmentiu a tal “ficha rosa” – termo usado para definir a prostituição de modelos-, apenas disseram: na minha agência não fazemos esse tipo de serviço. E assim simplesmente o assunto morreu e a própria novela é culpada por isso, pois pecou na abordagem pela escolha do ator Rodrigo Lombardi para o papel de Alex, o principal abusador da história. Boa parte do público se envolveu de forma romântica em relação à narrativa vendo nele um galã. Alex foi tratado como um desejo e ideal de masculinidade chegando a ser cotado para terminar com Angel (Camila Queiroz), a personagem protagonista da novela, e no caso a representação de uma jovem com 16/17 anos que foi obrigada a se prostituir, uma menor de idade aliciada para um homem rico que a chantageou, perseguiu e a abusou sexualmente.
Na época houveram várias negativas de profissionais de agências sobre a abordagem, contudo ninguém desmentiu a tal “ficha rosa” – termo usado para definir a prostituição de modelos-, apenas disseram: na minha agência não fazemos esse tipo de serviço. E assim simplesmente o assunto morreu e a própria novela é culpada por isso, pois pecou na abordagem pela escolha do ator Rodrigo Lombardi para o papel de Alex, o principal abusador da história. Boa parte do público se envolveu de forma romântica em relação à narrativa vendo nele um galã. Alex foi tratado como um desejo e ideal de masculinidade chegando a ser cotado para terminar com Angel (Camila Queiroz), a personagem protagonista da novela, e no caso a representação de uma jovem com 16/17 anos que foi obrigada a se prostituir, uma menor de idade aliciada para um homem rico que a chantageou, perseguiu e a abusou sexualmente.
Foi simbólico e assustador ver como o predador e a vítima foram vistos como casal romântico pelo público. E seguem sendo tratados como tal, dado que em meio a pandemia uma live entre os atores que representaram Alex e Angel respectivamente, empolgou o público e fortaleceu uma segunda temporada para a novela com previsão de estreia para 2021. Muitos destes fãs já clamam nas redes pela volta Alex, o homem que é retratado desde o começo como um adulto que “busca” amantes menores de idade. É evidente que temos uma questão de gênero mal resolvida na nossa sociedade na qual muitos não enxergam problema nisso. A cultura brasileira é de total desamparo no caso de abusos o que reflete que grande parte dos estupros tenham como vítimas menores de 13 anos.
Por isso, não me espanta numa cultura de total relativização do CONSENTIMENTO e de banalização do MACHISMO que filmes que romantizam sequestro, estupro e abuso psicológico de um homem contra uma desconhecida se torne o ideal de desejo de muitas brasileiras. A produção 365 Dias, o atual sucesso da Netflix, é antes de mais nada um péssimo filme. Seu roteiro é fraco, a narrativa é quebrada e muitas vezes sem sentido, contudo a imagem do homem mafioso sarado e rico que sequestra uma mulher que deseja e a obriga desejar ele de volta, virou sinônimo de prazer para muitas brasileiras. O assustador é que mulheres e crianças são grande parte das vítimas de sequestro e tráfico humano, o que de fato acontece na história. Segundo a ONU, as crianças, em especial meninas, são 30% das vítimas sequestradas e traficadas no mundo, sendo em muitos casos para se tornarem vítimas de exploração sexual. O mesmo relatório aponta que em 2016 quase 25 mil pessoas foram traficadas no planeta e dessas 70% eram do sexo feminino.
Portanto, não há nada de romântico em narrativas que fazem de homens predadores galãs. E é simbólico que a lógica defendida no filme 365 Dias, uma verdadeira irresponsabilidade da Netflix, vai no total oposto do que a própria Netflix denúncia com o seriado Jeffrey Epstein: Poder e Perversão. Epstein era o milionário amigo de homens poderosos como o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e outros muitos homens ligados a indústria da moda como Jean-Luc Brunel, co fundador da agência MC2 Model Management e Leslie H. Wexner, ex-presidente e CEO da L Brands Inc. conglomerado que possui a marca Victoria Secrets, a qual Epstein tinha uma relação bem próxima. Segundo a top model Naomi Campbell, Epstein era “o centro principal nos desfiles de moda da Victoria’s Secret”.
Epstein foi também responsável por uma pirâmide sexual com uma série de mulheres menores de idade, que foram abusadas, estupradas e segundo algumas traficadas. Ele supostamente se matou na prisão enquanto estava sendo julgado, no documentário percebemos como ele não só abusou de jovens mulheres vulneráveis como as transformou em aliciadoras de suas colegas de escola e amigas para compor sua rede de abusos que “servia” para também seus amigos. Neste documentário percebemos que a vulnerabilidade das vítimas era algo que funcionava não só para coagir, como para manter elas em silêncio confundindo essa situação com consentimento. É nítido que por trás de um homem milionário, bonito e poderoso existia uma série de violências que quando contadas de forma empática e dando voz às vítimas dificilmente é compreendida como não sendo abuso sexual. Por isso, não me espanta que muitos não consigam traçar um paralelo no que vemos na denúncia em forma de documentário sobre Jeffrey Epstein com o que foi feito por Don Massimo (personagem de 365 Dias) ou mesmo por Alex de Verdades Secretas. O último muito próximo do que a figura de Epstein representava na vida real.
Contudo, a narrativa ficcional quando contada de forma que soa um conto romântico ao estilo “Bela e a Fera” se torna tudo menos uma denuncia, pois uma série de artifícios é usado para transformar isso num imaginário poético no qual vítimas na verdade “provocam”, são ardilosas e manipuladoras mesmo quando menores de idade. E mais uma vez, revistas de moda são usadas para esses fins. Veja, algumas editorias e até escolha de modelos vão no total encontro em reforçar um padrão de beleza que é por si só infantilizado. Não é estranho que algumas modelos ao falarem de seus primeiros trabalhos citam que foram descobertas ainda menores de idade e com 30 anos algumas já são consideradas velhas para a continuação de suas carreiras.
Criticamos muito que o ideal de beleza seja magro, ignorando que cabe a crítica a juventude pueril estampada em editoriais, capas e desfiles, de jovens mulheres tratadas de forma objetificada e também sexualizada. Numa sociedade patriarcal as mulheres são tratadas e representadas, mesmo quando ainda menores, como agentes causadores ou mesmo que se beneficiam de seus abusos sexuais, pois a lógica é que elas são mais maduras. Em tempos que numa pandemia precisamos continuar reafirmando que a vida de meninas e mulheres precisa ser defendida, qual é a responsabilidade dos meios em propagar violência contra mulheres como sinônimo de relacionamento e amor? Qual é a responsabilidade de trabalhadores do universo da moda que endossam essas lógicas e não se manifestam frente ao uso deste universo pra glamourizar o que de fato acontece? Abuso, violência sexual, tráfico de mulheres, estupro, sequestro, abuso de menores de idade, aliciamento de menores, nada disso é brincadeira e banal.
Stephanie Ribeiro Arquiteta, escritora e feminista negra que escreve, palestra e acredita através da arte, arquitetura, estética, moda, política, cultura entre outros no papel fundamental do ativismo negro interseccional e temas adjacente a experiência da mulher negra no mundo. No ano de 2018 foi uma das brasileiras entre os afrodescendentes mais influentes do mundo, segundo o prêmio Most Influential People of African Descent (MIPAD, na sigla em inglês)
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