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sexta-feira, 24 de julho de 2020

Em filme, Nise, e sua crítica radical à velha psiquiatria

Em Nise – O Coração da Loucura (2017), a vida de uma mulher que, nos anos 50, revolucionou o tratamento psiquiátrico. Por meio de investigações científicas e políticas, rechaçou isolamento e eletrochoques, acessando o inconsciente pela arte
Gloria Pires caracterizada como Nise da Silveira em uma das cenas do longa Nise – O Coração da Loucura (Foto: Reprodução)
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O texto abaixo é parte do livro Direito e Cinema Brasileiro – 51 ensaios jurídicos sobre o cinema brasileiro, organizado por Ezilda Melo. Conheça

Por Alana Lima de OliveiraJosé Aélson Pereira de Araújo e Jullyanne Rocha São Pedro
Nise: O Coração da Loucura é um filme brasileiro baseado em fatos reais que foi lançado em 2015, sob direção de Roberto Berliner, e tem como temática central a ruptura do sistema manicomial existente na década de 1950. O filme relata a luta enfrentada pela psiquiatra Nise da Silveira, a qual se recusava a utilizar as técnicas da lobotomia e do eletrochoque em pacientes considerados perigosos e com quadros psiquiátricos compreendidos como crônicos e irreversíveis.
A protagonista da trama é interpretada pela atriz Glória Pires, que imprimiu grande verossimilhança à película por meio da sua força e ao mesmo tempo sua serenidade no desenvolvimento da narrativa. Tal performance pode ser verificada desde a primeira cena, na qual a personagem se encontra em frente ao Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, localizado no Rio de Janeiro, e precisa bater insistentemente no portão para que alguém venha abri-lo, passando para o espectador a mensagem de que a sua chegada nesse hospital será bastante difícil.
Ao entrar no local, Nise percebe que os pacientes se encontravam em situações sub-humanas, pois o local era insalubre e, além disso, os pacientes viviam presos como se fossem animais. Não havia que se falar em direito à dignidade da pessoa humana, quando não se tinha acesso ao mínimo necessário para subsistir. Os pacientes, diagnosticados com os mais diversos quadros clínicos, eram tratados com hostilidade e padronização, como se o tratamento utilizado para um fosse necessariamente aplicável para os demais.
Além do ambiente hostil, a psiquiatra se deparou com o machismo dentro do corpo médico que compunha o hospital, pois, ainda no início do filme, no momento de uma reunião para apresentação da inovadora técnica de indução à convulsão através da eletricidade, Nise é a única mulher a ocupar o auditório. Após a apresentação da técnica que promete curar os pacientes mais perigosos, todos do auditório aplaudiram e consentiram que tal técnica seria a salvação para os pacientes, com exceção de Nise, que se demonstrou bastante perplexa quando os enfermeiros trouxeram um dos pacientes para que fosse realizada uma demonstração do tratamento, momento em que se colocou completamente contrária às práticas, afirmando bravamente que não acreditava em cura pela violência!
Em que pese a psiquiatra perceber o quanto o ambiente é hostil e ocluso para adaptações de novas terapias, ela não desiste de dar sua contribuição para a melhoria do setor, decidindo assim analisar melhor as alas de internação. É neste momento que o espectador é convidado a conhecer a lamentável situação em que os pacientes vivem naquele local, pois ao passear pelas alas, se pode notar os descasos para com todos que estão ali. Primeiramente, as alas são divididas por gênero, mulheres de um lado, homens do outro, como se houvesse uma tendência à assepsia entre os pacientes. Além disso, os pacientes são classificados quanto ao grau de periculosidade que podem oferecer uns aos outros, e na medida que essa periculosidade aumenta, maior também é o isolamento do indivíduo.
É no Setor de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II que Nise se inspira e decide se instalar, mas, como em todos os outros setores do hospital, ela se depara com diversos encalços, desde a má vontade dos funcionários em ajudar até a precária estrutura física das instalações. No entanto, sabendo que seu desafio era conseguir ocupar o seu espaço dentro do hospital, uma vez que o sistema manicomial costumava ser bastante restrito, sobretudo, para técnicas de tratamento mais humanas e alternativas, ela se dispôs a organizar o setor por conta própria e começar os trabalhos.
Nise da Silveira dirigiu a Seção de Terapêutica Ocupacional entre os anos de 1946 a 1974 e foi nesse ambiente que ela conseguiu atuar longe daquelas técnicas. No filme, é possível perceber como a vivência e a experiência de Nise refutaram as teorias psiquiátricas e demonstraram que o inconsciente dos diagnosticados como esquizofrênicos poderia ser acessado através de desenhos, pinturas e modelagens.
No lugar de práticas degradantes e desumanas que ocorriam nos hospitais psiquiátricos, a médica passou a usar a arte como tratamento, subvertendo a lógica psiquiátrica vigente naquela época. As suas intervenções permitiram que o silêncio da loucura fosse rompido e a linguagem dos pacientes revelada, assim foi através das pinceladas, traços e modelagens que se pôde conhecer o inconsciente dos sujeitos em sofrimento psíquico.
O método foi definido como uma investigação científica, artística e política, pois ao passo que consegue trazer inúmeros benefícios para o desenvolvimento psíquico, também serve como forma de interação entre os internos. Nesse sentido, a fim de tentar compreender a dimensão das emoções humanas, Nise busca conhecimentos da arte, dos mitos, da religião, da literatura e da psicologia junguiana.1
Segundo a psiquiatra, a técnica utilizada consiste em um método de ouvir e observar o comportamento dos indivíduos, os quais, devido ao isolamento constante, mostram-se muitas vezes violentos e sem nenhum tipo de melhora. Na primeira vez que Nise reúne os clientes2 (pacientes) na sala, acontecem diversas coisas que fogem do seu controle, principalmente porque todos estavam desacostumados a viver em comunidade, pois o que se prezava era a reclusão dos indivíduos e nada era realizado para estimular a socialização entre os internos. Um exemplo bastante forte é o personagem Lúcio, o qual muitas vezes foi isolado do convívio com os demais por ser considerado “um animal”. No entanto, o enredo do filme nos leva a perceber que o comportamento agressivo de Lúcio vinha sendo estimulado até mesmo pelos enfermeiros, que criaram uma espécie de ringue de box entre os internos.
Nise, então, coloca em primeiro lugar o bem-estar dos usuários do serviço, sobretudo, daqueles considerados mais perigosos e sem perspectiva de avanço. Aos poucos o seu trabalho vai gerando bons frutos, e ela cria uma relação de afinidade com todos, justamente pelo fator empírico da sua técnica, uma vez que ela consegue perceber as forças e fragilidades de cada um dos seus clientes, atuando, desta forma, com técnicas de recuperação individual para cada um deles, fugindo do paradigma de que todos devem ser tratados da mesma maneira.
Desse modo, a sensibilidade de Nise vai conseguindo resgatar a humanidade que existe em seus clientes, que mesmo depois de tantos métodos invasivos e ineficazes demonstram sensibilidade e compaixão entre si. Ao lado dos seus companheiros de trabalho, ela consegue implantar um pequeno ateliê de artes para estimular a comunicação com os clientes. No ateliê de pintura, as potencialidades criativas dos sujeitos em sofrimento psíquico são desenvolvidas, e o uso dos pincéis permite que as imagens do inconsciente sejam expressadas nas telas e nos papéis.
As pinturas são compostas de abstração, estilização e geometrismo, e traziam em suas marcas denúncias do hospital psiquiátrico enquanto um espaço de cárcere, de opressão e de violação de direitos, o que ficou claramente demonstrado nas cenas dessa produção fílmica. Com relação ao geometrismo presente nas pinturas, Nise percebendo a grande recorrência de círculos, passa a se corresponder por cartas com Carl Jung, informando-lhe dessas representações geométricas. Em resposta as suas cartas, o psiquiatra e psicoterapeuta suíço, afirma que os círculos se tratavam de mandalas, as quais davam conta do quadro clínico dos pacientes. Para Carl Jung, as mandalas são símbolos do self, do si mesmo, e os seus desenhos representam a autodescoberta e a retomada do equilíbrio.3
As mandalas produzidas no ateliê de pintura indicavam uma tendência do inconsciente de compensar o caos do consciente, que representaria a dissociação esquizofrênica. Desse modo, os círculos representavam tentativas de renovação, reconstrução, busca de equilíbrio e revelavam uma experiência única que fora vivida pelo sujeito. Estudando a psicologia junguiana, Nise fundamenta as suas práticas na Terapia Ocupacional, e se preocupa em compreender a dimensão do mundo interno dos sujeitos diagnosticados como esquizofrênicos, que é revelada a partir das imagens produzidas pela sua energia psíquica.4
Além do ateliê, a psiquiatra atenta para outras manifestações culturais e de lazer, como festividades e passeios, em que todos têm a oportunidade de conviver em grupo. Outro importante ponto retratado no filme é o fato de que ela percebe que muitos não gostam de interagir com outras pessoas, mas que interagem muito bem com animais, daí, ela estimula aquele que tenha interesse a adotar um bicho de estimação.
Porém, mais uma vez ela se depara com a resistência da administração do hospital, pois o diretor considera inadmissível que os internos convivam com os animais, alegando que podem transmitir doenças e parasitas. Até que em determinado dia, todos os animais são encontrados mortos por envenenamento. Tal situação acarreta muita revolta entre os internos e o personagem mais afetado é Lúcio, que nessa altura já estava com o quadro estável e não apresentava mais comportamento agressivo, o que comprova que o tratamento empregado por Nise tinha dado certo, todavia, com a morte dos animais, ele tem um novo surto, pois não consegue suportar a perda de sua cadela, chegando a agredir o enfermeiro Lima, o qual tinha lhe presenteado com o bicho.
Após o acontecimento, Nise fica bastante abalada e decide encerrar o Setor de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, levando as obras produzidas pelos clientes para uma exposição em uma galeria de artes de bastante renome. Em seu discurso, durante a exposição, Nise afirma que “é preciso não se contentar com a superfície”5, demonstrando que o resultado do seu trabalho foi positivo devido ao fato dela perceber os internos como seres humanos dignos de cuidado, afeto e atenção, afirmando que a arte pode ser utilizada como revelação do inconsciente! Ao final do discurso, Nise é aplaudida, mas tem um olhar vago, como se não quisesse os aplausos para si, mas na verdade para os grandes idealizadores daquela feira.
Com efeito, o trabalho de Nise da Silveira é um divisor de águas no que se refere ao serviço de psiquiatria no Brasil. A partir da década de 1970, o debate sobre saúde mental tomou novas proporções no cenário nacional, devido ao movimento da Reforma Psiquiátrica, cujo objetivo central consistiu na tentativa de impedir as violências ocorridas dentro dos asilos, abrigos, manicômios e outras instituições de acolhimento e/ou internação.
Após a promulgação da Constituição de 1988, com a redemocratização do Estado, e também por consequência da Reforma Psiquiátrica, veio a necessidade de se debater de forma mais ampla a importância das terapias alternativas. Três anos depois, em 1991, a partir da Portaria nº 189, foi aprovada a inclusão de grupos e procedimentos na área de Saúde Mental. A referida Portaria visava a “necessidade de diversificação dos métodos e técnicas terapêuticas”6 viabilizando, dessa forma, a remuneração dos atendimentos em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
No ano seguinte, surge mais um instrumento de grande importância no âmbito da Saúde Mental, a Portaria nº 224/19927, que regulamentou os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) e Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). A publicação da referida Portaria se deu, sobretudo, com o objetivo de humanizar o atendimento assistencial ao público alvo, sendo assim considerado como um grande marco na história das pessoas que enfrentam problemas de saúde mental, uma vez que a Portaria proibiu a existência de espaços restritivos, a partir do enclausuramento do indivíduo em celas fechadas e de difícil evasão.
Nesse contexto, conclui-se que Nise da Silveira é uma das mais influentes precursoras do movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, pois, através da arte, trouxe um outro olhar para a loucura, demonstrando que o fazer criativo proporciona autoconhecimento, (re)significação e novos modos de subjetivação do sujeito, tendo servido como inspiração para a estruturação dos modelos atuais dos Centros de Atenção Psicossocial, conforme conhecemos atualmente, os quais estão diretamente relacionados à percepção do sujeito no âmbito da Saúde Mental.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 05 de maio de 2019.
______. Ministério da Saúde. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil.
OPAS. Brasília, 2005.
______. Ministério da Saúde. Portaria nº 224, de 29 de janeiro de 1992. Brasília, 1992.
______. Ministério da Saúde. Portaria nº 189, de 19 de novembro de 1991. Brasília, 1991.
NISE: o coração da loucura. Direção de Roberto Berliner. Rio de Janeiro: Imagem Filmes, 2015. 1 DVD (108 min.).
SILVEIRA, Nise da. Imagens do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2015.
1 SILVEIRA, Nise da. Imagens do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2015.
2 Nise acreditava que o seu trabalho dependia dos pacientes do hospital, e não ao contrário. Por isso, incentivava a todos os profissionais da ala em que trabalhava a tratá-los como “clientes”.
3 SILVEIRA, Nise da. Imagens do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2015.
4 Idem.
5 NISE: o coração da loucura. Direção de Roberto Berliner. Rio de Janeiro: Imagem Filmes, 2015. 1 DVD (108 min.).
6 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 189, de 19 de novembro de 1991. Brasília, 1991.
7 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 224, de 29 de janeiro de 1992. Brasília, 1992.

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