REVISTA IHU
20 Julho 2020
Depois de anos de crise, mesmo assim caracterizados por uma substancial manutenção da família como instituição, hoje nos encontramos a todos os efeitos em uma sociedade "pós-familiar". Isso foi revelado pelo levantamento do Centro Internacional de Estudos da Família (CISF), publicado nos últimos dias: a família clássica, composta por mãe, pai e filhos naturais ou adotivos, tornou-se apenas uma das muitas possibilidades de ser da família, em um contexto social, cultural, econômico, caracterizado pela incerteza e fluidez, onde a crise demográfica expressa toda a dificuldade de fazer escolhas definitivas. O presidente da CEI, Gualtiero Bassetti, falou em "crise da civilização", referindo-se à dramática queda dos nascimentos.
O psicanalista Massimo Recalcati é um observador e testemunha dessa transformação que ocorre também na sociedade italiana. Sua análise pode ser discutida, mas expressa uma grande parte da cultura que representa e caracteriza nosso tempo. Pedimos que ele explique e tente interpretar essa transição.
O psicanalista Massimo Recalcati é um observador e testemunha dessa transformação que ocorre também na sociedade italiana. Sua análise pode ser discutida, mas expressa uma grande parte da cultura que representa e caracteriza nosso tempo. Pedimos que ele explique e tente interpretar essa transição.
“Como psicanalista, não estou preocupado com as transformações que afetaram a chamada família natural pela simples razão de que não acredito que a família seja um evento da natureza. Pelo contrário, penso que a família é um evento profundamente humano, ligado à força da palavra e da promessa, um evento ético centrado na responsabilidade ilimitada em relação aos filhos e no amor entre aqueles que fazem parte dela”.
A entrevista com Massimo Recalcati é editada por Massimo Calvi, publicada por Avvenire, 19-07-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Uma família que coincide cada vez mais com o aspecto privado das relações afetivas e que rompeu o vínculo entre a relação conjugal e parental, como escrevem os relatores do relatório do Cisf, o que retorna à sociedade?
O problema tem muitas implicações. Acredito na utilidade de diferenciar a função materna da função paterna, mas não acredito que essas funções devam coincidir com realidades anatômicas. São funções psiquicamente diferentes: mãe é o nome do cuidado que sabe hospedar a singularidade do filho, que sabe não ser anônima, que sabe se especificada. Pai é o nome do símbolo da Lei, do limite, como Lacan dizia, que une e não opõe o desejo à Lei. Mas os avanços na técnica separaram o evento do nascimento de um filho do relacionamento conjugal e também daquele sexual.
36% dos jovens entre 25 e 34 anos declaram que não querem se casar, 40% não pensam em ter filhos, apenas 13% dos homens e 25% das mulheres pensam em um projeto que envolve casamento e parentalidade. Por que hoje é tão difícil imaginar-se pais e depois se tornar pais?
A experiência da parentalidade é uma experiência de descentralização do próprio Eu. O verdadeiro obstáculo para se tornar pais é o apego ao próprio Eu, que às vezes também leva à vontade de ter um filho, que, no entanto, nada tem a ver com o desejar um filho. O nascimento de um filho sempre comporta uma certa renúncia ao prazer pelos pais. Renúncia de que em nosso tempo pode ser visto como uma desgraça.
Uma família centrada principalmente em relações quase líquidas, pós-modernos: é isso o que resta ao “turbo-consumidor hipermoderno” de que você fala em “Le nuove melaconie” [As novas melancolias]? É um sintoma da crise do capitalismo?
Uma família está sempre centrada nas relações. Mas isso não significa perder o sentido do vínculo familiar. A identidade de pai e mãe nunca vem da biologia. É uma ilusão materialista. Um pai não é um espermatozoide, uma mãe não é um óvulo. A família é o local do acolhimento, da hospitalidade e da casa. Onde há acolhimento, sempre há família. O discurso do capitalista, por outro lado, tende a cuspir na família ou a pensar nela apenas como uma oportunidade de venda de seus produtos. Eu acredito firmemente que a vida humana precisa de raízes, de ser acolhida, de ter uma família.
É verdade, "um pai não é um espermatozoide e uma mãe não é um óvulo", mas também é verdade que sem pai e mãe biológicos, a vida simplesmente não acontece. Você escreveu que, para ser mãe ou pai, sempre é preciso de "um suplemento ultrabiológico, um ato simbólico, uma decisão, uma assunção ética de responsabilidade". Como essa transição pode acontecer se a família não possui fronteiras precisas e nem possui mais um único teto?
Não precisamos reparar no cisco e ignorar a viga. A viga é que o discurso do capitalista gostaria de destruir o discurso educacional como tal, inculcando como o único discurso possível aquele do lucro e do sucesso individual. A viga é a ausência do amor como ingrediente fundamental dos laços humanos. A viga é a primazia do Eu sobre todas as coisas. O cisco é a metamorfose histórica da família contemporânea que hoje não é mais nuclear, formada por um casal branco heterossexual e um casal de filhos, mas se tornou estratificada, complexificada e emancipada da natureza...
Por que a busca pela felicidade é cada vez menos bem-sucedida em coincide o desejo de uma relação que dure “para sempre”' e com uma família, talvez numerosa? Todos evocam a felicidade e o amor, mas cada um atribui significados diferentes a essas palavras. Como ter um ponto em comum pelo menos sobre os termos?
Que amor e felicidade sejam palavras às quais cada um de nós dá um significado singular é inevitável. Ai se houvesse uma medida universal de felicidade e amor. Estaríamos em um regime totalitário. Penso que todo amor digno desse nome queira ser para sempre, aposte em sua eternidade. No entanto, sabemos que os amores terminam, e muitas vezes terminam mal. Mas quando acontece que os pais se separam, é essencial pensar que a função parental transcende o fim daquele amor. No sacrifício nunca há bem, nunca há alegria. O sacrifício mortifica a vida. Nossos filhos precisam de testemunhas vivas da vida e não de sacrifícios sem esperança.
Defina-se em breve o significado da palavra "amor".
O amor nada mais é que os seus atos. Dar-se, doar-se, jogar-se, saltar no vazio, desarmar-se.
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