18 Julho 2020
REVISTA IHU
A pandemia da Covid-19 provocou muitas reflexões sobre as estratégias de saída da crise. Enquanto muitos defendem um “retorno à normalidade” e um retorno ao crescimento, sem questionar os pontos cegos do sistema econômico dominante, certas perspectivas mais radicais propõem sair do “capitalismo patriarcal”.
A teórica e feminista marxista Silvia Federici compartilhou suas ideias sobre o momento atual em um seminário virtual correspondente a um projeto de pesquisa sobre sociedades pós-crescimento, subscrito ao Centro de Pesquisa sobre Inovações e Transformações Sociais, da Escola de Inovação Social Elisabeth-Bruyere, da Universidade Saint Paul, em Ottawa (Canadá).
A teórica e feminista marxista Silvia Federici compartilhou suas ideias sobre o momento atual em um seminário virtual correspondente a um projeto de pesquisa sobre sociedades pós-crescimento, subscrito ao Centro de Pesquisa sobre Inovações e Transformações Sociais, da Escola de Inovação Social Elisabeth-Bruyere, da Universidade Saint Paul, em Ottawa (Canadá).
Colombia Informa publica uma tradução editada deste seminário que explorou formas de construir uma sociedade para além do crescimento, do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado.
A reprodução social, os bens comuns, a relação com o corpo e o território foram os diferentes temas abordados nessa conversa com uma das intelectuais críticas mais relevantes de nosso tempo.
Silvia Federici é professora emérita na Universidade Hofstra, no Estado de Nova York. Membro-fundadora do Coletivo Feminista Internacional, nos anos 1970. Foi uma das ativistas por trás da campanha ‘Salário para o trabalho doméstico’, que continua alimentando as lutas contemporâneas contra a invisibilidade do trabalho das mulheres.
É autora de vários livros como O ponto zero da revolução (2018), Tareas domésticas, reproducción y lucha feminista (2012), Calibã e a bruxa: Mulheres, corpos e acumulação primitiva (2019), Re-enchanting the World: Feminism and the Politics of the Commons (2018), Le capitalisme patriarca’ (2019) e Beyond the Periphery of the Skin: Rethinking, Remaking, and Reclaiming the Body in Contemporary Capitalism (2019).
A entrevista é publicada por Colombia Informa, 16-07-2020. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Em seus últimos livros, 'Re-enchanting the World' e 'Beyond the Periphery of the Skin', falou sobre o "pós-capitalismo", sob as lentes da visão da reprodução social. Poderia compartilhar o que significa pós-capitalismo?
Acredito que é importante colocar no contexto a questão do tipo de transformação que precisamos. Esperamos que a crise atual, essa pandemia, seja uma oportunidade histórica, um momento fundamental de conscientização. O sistema social atual, de maneira sistemática, desvaloriza a vida humana e desvaloriza todas as formas de vida em geral. Isso nos leva a um ciclo infinito de crises. Essa crise tem uma dimensão global que está afetando todas as esferas da vida. Tomara que seja um ponto de inflexão. Estamos em um ponto que não permite o retorno à normalidade em que estávamos. É um momento crítico para todas as pessoas neste planeta. A Covid-19 trouxe à tona as crises que já estavam ocorrendo e isso é muito importante. Tornou visível e inevitável enxergar uma série de crises que já existiam, incluindo a crise da reprodução, por exemplo.
O fato de que, sistematicamente, nos últimos 30 anos, o sistema sanitário e de saúde tenha diferenciado populações em diferentes graus e de distintas maneiras, teve um impacto diferente em muitas partes do mundo. Mas em todas as partes estamos lidando com sistemas totalmente desmantelados. Por exemplo, nos Estados Unidos, as comunidades racializadas e negras foram afetadas desproporcionalmente pelos impactos do desmantelamento da saúde. O sistema sanitário, em nível global, foi privatizado.
Paralelamente, presenciamos um ataque sistemático ao sistema agrícola, nos últimos 30 anos, com monoculturas e agroindústria que se opuseram à produção de alimentos (que é essencial para a reprodução da vida). A produção de alimentos foi assimilada ao mundo industrial com o uso de produtos químicos e sementes geneticamente modificadas. Tudo isso tem um impacto direto em nosso sistema corporal, social e imunológico. Inclusive, um impacto na nossa capacidade de se reproduzir como espécie. É importante porque precisamos ver como essas crises se conectam ao trabalho.
E isso nos permite entender a razão pela qual tantas pessoas desempregadas estão sendo substituídas por máquinas. Enquanto outros têm que trabalhar mais do que nunca. Portanto, temos de um lado esse desemprego e, do outro, essa obrigação de trabalhar cada vez mais. Essa tendência afeta especialmente as mulheres.
As mulheres, hoje, querem se emancipar através do trabalho. Mas precisam ter dois ou três empregos para ter algum tipo de autonomia econômica. Precisam ter mais de um emprego. É uma contradição fundamental entre a reprodução da família e o trabalho. Por isso vemos as crianças e as pessoas na terceira idade nessa situação.
Mas, sem me estender muito neste ponto, porque penso que muitos dos elementos desta crise vocês conhecem muito bem, vocês sabem que em diferentes graus vivemos essas consequências concretas. Então, o que está acontecendo hoje?
Estamos tomando consciência de que nossas vidas estão em perigo. Há necessidade de mudanças estruturais. Uma necessidade de começar uma mudança social a partir da reconstrução do processo de reprodução social, uma vez que a própria lógica do capitalismo está baseada na desvalorização da vida humana e na sua submissão à acumulação de capital.
Esse sistema econômico coloca a ideia de crescimento contínuo como o princípio da exploração da vida humana. Para realizar uma mudança, é preciso colocar a vida no centro, o que é um lema importante para o movimento feminista. Colocar o “bem viver” no centro. Estamos falando de uma sociedade que permita que os indivíduos e as comunidades prosperem e que não sejam escravizados de maneira perpétua, fazendo com que a riqueza produzida beneficie a todos e a todas.
Para isso, todos os aspectos das reproduções devem ser transformados. Começando, claramente, com essas atividades centrais para o desenvolvimento de nossas vidas: o trabalho doméstico, a criação dos filhos, o cuidado com as pessoas que não são autossuficientes. Mas não é suficiente, devemos repensar a agricultura e nos afastar do modelo de agricultura atual, que é uma produção de morte. Se pensarmos nele, veremos que reproduz carências e morte porque se baseia no comércio e no mercado. Beneficia apenas as pessoas que têm meios para comprar esse alimento e, ao mesmo tempo, a produção desse alimento está poluindo a água e matando as sementes. Esses produtos químicos estão na terra, estão no ar e estão em nossos corpos.
Quando compramos comida, não sabemos se estamos nos alimentando ou se estamos nos envenenando. É assim que as coisas são agora. Comprar comida hoje é um ato de ansiedade. Temos que nos projetar para uma transformação fundamental e cultural. Cultural no sentido de que temos que seguir o caminho em direção a uma sociedade que acabe com essa desconfiança entre nós. Uma desconfiança que foi inserida em nós por todos os meios possíveis. Temos uma relação negativa com o outro. Essa relação é o centro de nossa riqueza e da sociedade, assim como nossa relação com os animais e com a natureza. Isso deve mudar e temos que parar o tratamento bárbaro contra os animais.
No oeste dos Estados Unidos, por exemplo, existem centenas de milhares de animais maltratados que morrerão porque atualmente não há pessoal suficiente para processá-los e vendê-los no mercado. Esses animais serão mortos. É ultrajante, assim como toda a indústria de alimentos. Esta indústria é construída sobre o sofrimento. Nas fábricas, existem até 5.000 porcos ou frangos que estão fechados e são alimentados com medicamentos e patógenos. É um problema bastante grave.
Existe uma conexão básica com que acontece no nível ecológico (como a poluição dos mares) e a destruição da agricultura. Cabe ressaltar que essa transformação da agricultura tem a ver com o deslocamento forçado de milhões de camponeses. Ondas gigantes de migração. Essas pessoas não deixam suas terras e países sem motivo. As pessoas deixam seu país porque são expulsas, porque suas terras foram privatizadas e essa é a razão fundamental das ondas de migração mundial. Existem mudanças gigantes e estruturais que precisamos pensar.
Devemos começar a pensar em nosso compromisso em dois níveis. Um nível é imediato. Existem necessidades imediatas que devem ser atendidas com ajuda mútua. Precisamos proteger as pessoas que estão em perigo imediato e marginalizadas por esta crise. No outro nível, devemos pensar a longo prazo, porque uma sociedade pós-crescimento e pós-capitalista é uma sociedade na qual temos que começar a construir o processo de produção e reprodução em um sentido amplo. Da casa à fazenda. Inclusive, a relação com a natureza e os animais. Isso supõe um esforço coletivo muito forte.
Meu trabalho, nos últimos anos, se concentrou persistentemente na questão das políticas dos comuns. Entendendo os comuns como um princípio cultural que se refere a uma sociedade na qual coletivamente temos acesso aos meios de nossa reprodução. Onde coletivamente tomamos as decisões sobre os meios de reprodução e podemos definir os assuntos mais importantes em nossas vidas. Não sendo recipientes passivos que se encontram alienados a respeito das decisões tomadas por cima. Vimos e de fato temos uma história de mais de 500 anos de atividade do capitalismo que nos diz que devemos nos comprometer, não apenas como indivíduos, mas como um coletivo que tem como propósito a reconstrução do processo de reprodução social.
Devemos mudar a relação com os recursos e a riqueza que estamos produzindo para o nosso bem viver. Colocar no centro desta coletividade a reprodução. Temos que reconstruir a reprodução de maneira mais cooperativa, sem que isolem a cada uma em casa.
Seria bom dizer algo sobre o tema do crescimento que está intimamente conectado ao tema do consumismo. Existem muitas críticas aos indivíduos por serem consumistas. Mesmo as pessoas pobres que não têm muitos recursos e gastam o pouco que têm para comprar coisas. Isso é consequência do empobrecimento que sofremos. O consumismo é a resposta para esse empobrecimento social. As relações sociais são tão insatisfatórias que nos fazem sentir como perdedores todos os dias. Portanto, essas necessidades não atendidas se refletem no consumismo. Para sentir algum tipo de poder, nos é oferecida a capacidade de comprar coisas.
Se pensarmos em uma sociedade em que nossas relações sociais com todos estejam completas e nos preencham, não precisaríamos comprar cinco pares de calças para poder preencher a falta que sentimos em nossa relação com o mundo. A mercadoria, a "commodity", torna-se o caminho para preencher essa falta que sentimos. Isso tem a ver com crescimento, e é por isso que é tão importante mencioná-lo.
É preciso ampliar os processos de reconstrução da sociedade, juntamente com a nossa capacidade de cooperação. Obviamente, já existem muitas pessoas trabalhando e não estamos começando do ponto zero. Existem movimentos muito importantes que estão trabalhando no momento. O que devemos fazer é conectar nossas lutas e trabalhar juntos. Isso é essencial, porque essa união de lutas pode nos dar a capacidade de encontrar novas possibilidades para fazer surgir as coisas que queremos.
Não se pode afirmar que exista apenas um modelo. É importante citar os zapatistas: "um não e muitos sim". Temos que ter muita clareza coletiva em relação ao que não queremos ver na sociedade que queremos construir. Uma sociedade que não queremos que destrua o planeta e que não seja injusta. Temos que reconhecer a existência de muitas trajetórias históricas e muitas lutas.
O Bem Viver, por exemplo, como é dito na América Latina, pode ser atualizado de várias maneiras diferentes em cada território. Esse é o trabalho mais criativo. Ver como essas lutas e como essa reconstrução coletiva é um trabalho criativo que inclui essa diversidade.
Se não queremos condenar as crianças a um futuro terrível, devemos prestar atenção ao que está acontecendo agora com esta pandemia. É um sinal de alerta que devemos ouvir e temos que transformar essa situação com uma premissa importante: aqueles que determinarão a saída dessa pandemia não podem ser os que nos levaram à destruição deste planeta. Não podemos encarregá-los de encontrar soluções. Nós devemos ser participantes dessas soluções para a saída da crise.
Como podemos tirar proveito desse contexto para dar passos em direção a uma sociedade pós-crescimento, sem que a saída dessa pandemia seja totalmente apropriada pela mesma elite econômica e política que nos conduziu até aqui?
Como vinha dizendo, essa pandemia torna visível uma crise que já tínhamos anunciado. Sua existência é conhecida por todos. Por isso, vemos que as áreas da sociedade mais afetadas são as dos que cuidam das pessoas da terceira idade. Faz muitos anos que meu trabalho se concentra no cuidado desse tipo de população. Em muitas partes do mundo, a questão do cuidado dos idosos é terrível. As pessoas já estavam morrendo. A crise nessa área da sociedade já existia. O sistema capitalista é responsável por desvalorizar sistematicamente a vida e aplica isto mais a algumas pessoas do que a outras.
Os idosos das classes trabalhadoras não são mais produtivos. Com o neoliberalismo, foram cortados os orçamentos e recursos, especialmente para as famílias trabalhadoras. Os idosos são as vítimas centrais destas políticas. Não é um acidente que haja um desastre com os idosos em meio a esta crise da Covid-19.
Sempre existiram muitos erros em termos de acesso à saúde, a medicamentos. Também muitos abusos por parte da equipe que cuida dos idosos. São abusados. Os hospitais não estavam preparados porque havia sido tomada a decisão política de não ter os recursos nos hospitais. Por esse motivo, faltavam as coisas mais necessárias.
É muito importante que as pessoas entendam esse elemento. A falta de preparação da sociedade para um desastre como esta pandemia tem a ver com o que estava acontecendo antes. Este é o resultado de decisões que foram tomadas e nos levaram a essa situação. Decisões como afirmar que o direito à saúde não era tão importante. Compreender é o que pode nos levar a resolver essa questão.
O objetivo principal é dar um salto qualitativo para outro nível. Quando se observa o que aconteceu na África, no sul da Ásia, na América Latina, nos últimos 30 anos, é possível constatar que houve muitas ondas de epidemias. Uma após a outra, como resultado da pobreza econômica, o sistema e os ajustes estruturais.
Em todo o mundo colonial, houve uma redução na qualidade de vida. As pessoas foram vítimas de muitas epidemias, como meningite, cólera, zika, ebola. Mas, agora, a pandemia é global. Se não entendermos isso, não estaremos dispostos a criar o tipo de movimento necessário para transformar a vida cotidiana e nos comprometer com essa mudança de uma maneira muito profunda.
De que maneira devemos agir quando este sistema foi construído há séculos e é um sistema que não vai se transformar da noite para o dia? No ativismo do presente, podemos dar respostas às necessidades imediatas, mas é necessário incluir uma perspectiva de longo prazo. Devemos incluir uma perspectiva de reapropriação da riqueza social, de recuperar e reapropriar terras, de retomar o controle sobre a cadeia de produção de alimentos. E voltar a conectar essas lutas. A luta estudantil deve estar ligada à luta do setor da saúde e juntas devem estar conectados às lutas camponesas.
A destruição do ecossistema é central. Hoje, a luta social não pode ignorar a destruição do ecossistema. Qualquer luta deve ter uma dimensão ecológica, pois é fundamental para a reprodução. Esse seria o primeiro ponto.
O segundo ponto é que, desde o início, devemos começar a mudar a maneira como vivemos neste mundo. Pessoalmente, isso me impressionou e escrevi em ‘Re-enchanting the World’ (meu último livro), e em outros de meus trabalhos, tudo o que aprendi com as mulheres da América Latina. Especificamente, com as mulheres que vivem em áreas periféricas de cidades latino-americanas, como favelas e todos esses territórios que permanecem nos limites das grandes cidades. Essas pessoas estão lá há muito tempo, enfrentando o que hoje estamos enfrentando. São pessoas que se mudaram porque suas terras foram roubadas e há muito tempo perceberam que o sistema não tinha nada para lhes oferecer.
Claramente, sua ação poderia ser entrar em desespero. Mas não é assim. Organizam-se coletivamente e, na unidade, veem como continuar se negando a perder. Criam hortas comunitárias, cozinhas comunitárias e meios para acessar alimentos. Nesse processo, um novo tecido social está sendo construído. Essas novas relações afetivas e solidárias são uma revolução. Porque esse novo poder desse novo tecido social dá às pessoas a capacidade de se relacionarem de uma nova maneira com o Estado. Não como a última linha da pirâmide, mas de uma posição que obriga o Estado a liberar algum tipo de controle.
Vamos falar sobre comida, educação, saúde, agricultura. Sobre tudo isso, temos algo a dizer. Sobre o que acontece nos hospitais temos algo a dizer. Sobre que tipo de sistema de saúde queremos. Esses são os passos que devemos dar. Não são utopias. Não são coisas extraordinárias. São coisas que podemos fazer e que nos permitirão ter um tipo de controle sobre nossa forma de vida cotidiana.
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