Revista Consultor Jurídico, 14 de setembro de 2020
Tive o prazer de revisitar, neste final de semana, o filme "The Post", de 2017, com a direção de Steven Spielberg e a atuações de Meryl Streep, como Katharine Graham, e Tom Hanks, como Ben Bradlee. O filme evoca muitas reflexões: liberdade de imprensa, a administração Nixon, a tensão entre os objetivos empresariais e as demandas éticas. Mas o ponto que mais me marcou foi a figura singular de Katharine Graham, a primeira mulher a assumir a direção de uma grande empresa de mídia, após o suicídio do marido, em 1963. É significativo perceber que, apesar de ela ter trabalhado como jornalista desde 1938, o seu pai havia deixado a direção do Washington Post para o marido, Philip Graham.
Falar em igualdade de gênero parece, para muitos, um tema do século passado. Algo que pode remontar aos movimentos dos anos 60 e 70 ou mesmo aos movimentos pelo sufrágio ainda na virada do século 20 . Todavia, foi apenas em 14 de dezembro de 2000, um ano que parece pertencer tanto ao século 20 quanto ao 21, que tivemos a primeira mulher no Supremo Tribunal Federal, com a ministra Ellen Gracie Northfleet. Da mesma forma, apenas em 2011 tivemos a primeira mulher presidente da República, Dilma Rousseff, cujo fim antecipado e controverso de seu segundo mandato é um tema ainda em aberto para debate público e acadêmico.
De fato, o tema da presença das mulheres no Estado e nas empresas persiste como uma questão em desenvolvimento, já que a percepção acerca de diferenças de gênero constitui um construção histórica e cultural resistente às transformações que a nossa sociedade vive. O conservadorismo é forte no Brasil, como recentemente afirmou a professora doutora Lilian Schwarcz em entrevista para o "Roda Viva", o que traduz em um país excludente e autoritário.
Portanto, quando voltamos para o artigo 5º, inciso I, da Constituição, que determina o tratamento igualitário, em direito e obrigações, entre homens e mulheres, verificamos que o ali disposto não é suficiente, apesar de importante. A norma jurídica não se realiza por si só. Ela precisa de mulheres como Katharine Graham, assim como no Brasil Maria da Penha, Mariele Franco e Ellen Gracie, para dar realidade a estas palavras.
Quebrar o ciclo de exclusão não é resolvido apenas na letra da lei. Ainda mais em um país em que temos regras "que pegam" e regras "que não pegam". De fato, sempre tivemos normas que são e foram para além do seu tempo, mas cuja execução estiveram aquém do que propunham. Somos, em muitos sentidos, um país sem leis, que se resolve pelo jeitinho para ultrapassar normas que não gostamos e não queremos. Isso ocorre em diversas áreas: tributária, regulatória, civil etc. O Estado acabada participando dessa rave anárquica, contribuindo com a sua parte na escolha do que deve ou não cumprir da legislação aprovada pelo Congresso.
A quebra do ciclo de exclusão, nesse caso de gênero, que marca o nosso país não se limita a conquista de leis, mas depende fundamentalmente da sua implementação. Nisso a sociedade e, especialmente, o Poder Judiciário têm um papel fundamental ao dar consistência e coerência formal e material ao que impõem as nossas leis e a Constituição.
Luís Inácio Adams é advogado, ex-procurador da Fazenda Nacional, foi Advogado-Geral da União (2009 a 2016).
Nenhum comentário:
Postar um comentário