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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

As Raízes do Patriarcado

 Por Patricia Jimenez Rezende 

 Justificando

22 de setembro de 2020

Nos últimos meses, casos de abuso infantil, estupro e violência contra mulheres têm ganhado relevância na imprensa nacional. Na quarta-feira (9 de setembro de 2020), o caso do estupro da influenciadora digital Mari Ferrer, que ocorreu em dezembro de 2019 em uma casa noturna em Florianópolis (SC), ganhou novo destaque. Mesmo com a defesa apresentando testemunhas, imagens e até mesmo um exame de DNA que sustentavam o relato da vítima, o acusado, o empresário André Camargo Aranha foi absolvido pela 3ª Vara Criminal de Florianópolis, por falta de “provas contundentes”.[1]

 

Na semana que antecedeu a absolvição de André Camargo Aranha, em torno de 1008 mulheres foram estupradas. De acordo com o XIII Anuário Brasileiro de Segurança Pública, só em 2018, em torno de 53 mil mulheres foram vítimas de estupro, sendo que na maioria dos casos a vítima tinha menos de 13 anos de idade e era negra[2]. Segundo o Ministério da Saúde, a cada 4 minutos, uma mulher registra uma queixa contra agressão no Brasil. Conforme o levantamento do Monitor da Violência (publicado em março de 2019) pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo – USP em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 84 mulheres são assassinadas por semana no país. Hoje, ao fim do dia, ao menos outras 12 mulheres e meninas terão sido assassinadas, 3 estritamente por questões de gênero.

 

Esses valores não são exatos, mas correspondem à um contínuo de assassinatos e estupros num dos países que mais violenta mulheres no mundo, o Brasil: mulheres foram, são e continuarão sendo violentadas e mortas nessas proporções. Outra coisa que essas estatísticas nos dizem é que a violência contra mulheres no Brasil ocorre discriminadamente. Isso porque, são violentadas e assassinadas sobretudo as mulheres em situações de vulnerabilidade social, mulheres pobres e pretas.

 

Não por demérito da mobilização feminista que, desde os anos 1970, articula nacionalmente a bandeira contra a violência contra mulheres como uma de suas matrizes na luta pela igualdade de gênero. O tema foi amplamente mobilizado nos anos 1980, através da campanha “Quem ama não mata” e durante o processo Constituinte (1987-1988), através da “Carta das Mulheres”. Como apresentado por Maciel e Prata (2011), problema real e central na sociedade brasileira, o combate à violência contra mulheres se tornou parte da agenda política nacional desde Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Sendo durante o governo Lula, em 2006, elaborada e aprovada a Lei Maria da Penha (n.11.340/2006), que criminaliza a violência contra a mulher.

 

Na contramão, desde 2017, ainda durante o governo Temer, os repasses de verbas para proteção e atendimento de mulheres em situação de violência vêm sendo reduzidos drasticamente, e foram zerados em 2019 [4]. Desde então, e cada vez mais, o campo da sexualidade e da reprodução vem sendo alvo de políticas que subtraem direitos das mulheres.

 

No governo em curso, a lógica patriarcal que alimenta as desigualdades entre homens e mulheres ecoa em pronunciamentos do presidente Jair M. Bolsonaro e suas políticas públicas. “Ela queria dar o furo”, ao referir-se à jornalista da Folha de São Paulo Patrícia Campos Mello[5], é uma das muitas falas grotescas que o presidente vem colecionando em seu mandato. Falas essas que sexualizam e erotizam os corpos femininos, suas práticas e vivências, ao passo que desqualificam as mulheres enquanto sujeitos políticos e as enquadram como alegorias, tão e somente, do fetiche masculino.

 

Passados apenas 5 meses do governo Bolsonaro, em maio de 2019, o Ministério da Saúde defendeu abolir de políticas públicas e normas o uso do termo “violência obstétrica”. O termo, conforme apresentado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), condiz com abusos contra mulheres e suas decisões relativas à medicalização e aos procedimentos a serem adotados no momento do parto. Mesmo que em junho do mesmo ano o Ministério tenha voltado atrás de seu posicionamento[6], vale destacar um engajamento sustentado do atual governo em conflito com as diretrizes da OMS e os saberes acadêmicos/científicos já consolidados no campo dos direitos sexuais e reprodutivos.

 

Mais recentemente, em agosto deste ano, o Ministério da Saúde (sob a chefia do General de Divisão do Exército brasileiro, Eduardo Pazuello) publicou a portaria n. 2.282[7], a qual estabelece a obrigatoriedade de notificação à polícia dos casos de mulheres vítimas de estupro que recorram ao aborto legal. O aborto nos casos de estupro é regulado pelo Código Penal brasileiro, desde 1940. Durante o governo Lula, em 2005, o Ministério da Saúde (de Humberto Costa) reeditou a Norma Técnica de “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes”[8], e tornou facultativa a apresentação de Boletim de Ocorrência (BO) nesses casos. A portaria n. 2.282 revogou a Norma Técnica de 2005, mais uma vez, dissolvendo conquistas acerca dos direitos sexuais e reprodutivos.

 

É nesse contexto que André Camargo Aranha foi inocentado, sob a defesa de que a acusação que sofrera – de violentar sexualmente uma mulher inconsciente – é “fantasiosa”. Ironias à parte, fantasioso mesmo se demonstra o governo que, através de seus Ministérios da Saúde e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, insiste em reiterar relações de gênero desiguais e assimétricas, baseadas em noções binárias de sexualidade: homens e mulheres, príncipes e princesas, meninas vestindo rosa e meninos vestindo azul. Nesse império de areia não existe fome, racismo, desmatamento, pandemia, nem homofobia, violência obstétrica e de gênero. Aliás, “gênero” é termo temerário.

 

Voltemos para a realidade! A violência contra a mulher e a alienação de seus direitos sexuais e reprodutivos são basilares das desigualdades de gênero. Mulheres crescem sendo violentadas dentro de suas casas, no caminho para a escola, nas universidades e nos seus ambientes de trabalho. No 5° país com maior número de registros de feminicídio no mundo[9], não é de se estranhar (mas não devemos nos conformar) que o sistema judicial também reproduza essas mesmas desigualdades. 

 

Como Galeotti (2007)[10] nos demonstra, os saberes médicos e legais em torno da sexualidade e da reprodução humana são atravessados por uma moralidade que sacraliza o casamento e a família heteronormativos. Tal moralidade implica numa busca incessante pelo controle dos corpos das mulheres. E é, pois, justamente o processo mais particularmente feminino, o reprodutivo, que esse controle tende a tensionar para se realizar. A autonomia da mulher sobre seu corpo, sexualidade e reprodução ameaça diretamente a perpetuação das desigualdades de gênero, isso porque diz respeito à um processo essencialmente feminino.

 

Políticas públicas e reformas do sistema de justiça brasileiro precisam ser pensadas a partir de um olhar concreto da sociedade, e não a partir de percepções fantasiosas e/ou lugar comum. Para isso também servem as ciências humanas tão relegadas pelo governo Bolsonaro, para contrapor e combater pensamentos e políticas que não condizem com a realidade social. A luta contra a violência contra as mulheres ainda tem muitos desafios, e muitos mais no Brasil!

 

Patricia Jimenez Rezende é doutoranda em Sociologia na Universidade de São Paulo – USP. Mestra em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP.

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