O ginecologista obstetra de São Paulo, representante no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir, defende que médicos sejam obrigatoriamente formados para atender casos de interrupção legal da gravidez. Para ele, objeção de consciência não pode levar à omissão de socorro
JOANA OLIVEIRA
São Paulo - 30 AGO 2020
O ginecologista obstetra Cristião Rosas, coordenador no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice - GDC). |
Em 1989, quando a Prefeitura de São Paulo montou o primeiro programa público de aborto legal no país, no Hospital de Jabaquara, o ginecologista obstetra Cristião Rosas foi um dos poucos profissionais que aceitou fazer o treinamento para prestar atendimento emergencial às vítimas de violência sexual e realizar a interrupção da gravidez prevista em lei. De formação protestante presbiteriana, o médico iniciou o trabalho com dúvidas éticas sobre vida e fé, mas elas logo se dissiparam nos primeiros casos que recebeu, um deles de uma criança de 12 anos que havia engravidado após ser estuprada por dois homens: “Ela segurou no meu braço e disse: ‘Doutor, tira essa coisa de dentro de mim? Me salva’”, lembra Rosas, de 65 anos, hoje coordenador no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice - GDC) e ex-diretor do Serviço de Atenção a Vítimas de Violência Sexual do Hospital Maternidade-Escola Vila Nova Cachoeirinha, na capital paulista.
O médico acompanhou à distância o caso da menina de 10 anos do Espírito Santo, que passou por um aborto após ser estuprada pelo tio de 33 anos. “Nos centros de atendimento à interrupção legal da gravidez, as meninas menores de 18 anos são 60% do casos”, afirma Rosas, que, apesar de rezar “todo dia e toda noite”, critica os grupos fundamentalistas religiosos que fizeram pressão e protestos para que a garota não realizasse o procedimento que lhe é garantido por lei. “É preciso dar um basta nessa intromissão na individualidade das pessoas. Está se demonstrando à sociedade que a influência religiosa faz mal à saúde e põe a vida em risco”, diz ele. Rosas conversou com o EL PAÍS sobre os direitos em saúde das mulheres, as barreiras para que elas acessem esses direitos e a importância de que a classe médica seja treinada para receber e atender casos como esse.
O médico acompanhou à distância o caso da menina de 10 anos do Espírito Santo, que passou por um aborto após ser estuprada pelo tio de 33 anos. “Nos centros de atendimento à interrupção legal da gravidez, as meninas menores de 18 anos são 60% do casos”, afirma Rosas, que, apesar de rezar “todo dia e toda noite”, critica os grupos fundamentalistas religiosos que fizeram pressão e protestos para que a garota não realizasse o procedimento que lhe é garantido por lei. “É preciso dar um basta nessa intromissão na individualidade das pessoas. Está se demonstrando à sociedade que a influência religiosa faz mal à saúde e põe a vida em risco”, diz ele. Rosas conversou com o EL PAÍS sobre os direitos em saúde das mulheres, as barreiras para que elas acessem esses direitos e a importância de que a classe médica seja treinada para receber e atender casos como esse.
Pergunta. Qual é o panorama do aborto legal no país?
Resposta. A questão da interrupção legal da gravidez no Brasil é um problema há 80 anos. Em 1940, o Código Penal já contava com dois permissivos legais, em caso de risco de vida materno e no caso de estupro e, mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal acrescentou os casos de anencefalia. Mas o fato é que existem várias barreiras de acesso das meninas, adolescentes e mulheres a esse serviço. Até mesmo no risco de vida materno há questionamentos por parte da sociedade, senão não teríamos tantas mortes maternas com patologias graves que poderiam ter sido detectadas no começo da gravidez e essas mulheres poderiam ter sido orientadas a respeito da interrupção da gestação antes de uma complicação que a levasse à morte.
P. Mas, quando se fala de estupro, as barreiras parecem ser maiores. Por quê?
R. Primeiro que, de uns anos para cá, as políticas públicas voltadas a essa questão não tiveram um incremento, no sentido do olhar para o serviço e os hospitais. O gestor tem que assumir sua responsabilidade e seu compromisso com os direitos das mulheres. Se os secretários estadual e municipal de saúde, o diretor do hospital, o ministro da Saúde não estão interessados, envolvidos nisso, fica muito complicado que, lá na ponta, se realize um atendimento tão complexo como esse, que, ao meu ver, deveria se pagar como se pagam as cirurgias da mais alta complexidade do SUS. Quando se atende uma vítima de estupro, você tem uma equipe multidisciplinar que tem que acolher, entender a história, é todo um processo que envolve treinamento, sensibilização… Mas as primeiras barreiras são administrativas mesmo.
Nós não precisamos mais de leis, portarias, normativas, orientações e protocolos clínicos, eles já existem, o que precisamos é tirar os porteiros que trancam as portas com cadeados, impedindo as mulheres de acessarem os seus direitos. Um exemplo é a Lei 12.845/13, que obriga os serviços do SUS a prestarem atendimento integral a vítimas de violência sexual, desde o acolhimento, a profilaxia, a atenção psicológica até, se ela tiver grávida, o acesso ao aborto legal. Apesar dessa obrigatoriedade, os gestores e diretores descumprem essa lei. Até hoje eu não entendo por que o Ministério Público não aciona esses administradores. Ninguém está pedindo um favor. Esse é um direito civil e constitucional, e a Lei obriga as unidades do SUS a realizarem esse atendimento, mas nada acontece.
P. O senhor acredita que essa isenção quanto ao cumprimento da Lei se dá porque tanto o estupro quanto o aborto são grandes tabus no Brasil?
R. Escutei uma vez que “a palavra aborto é pecado, é crime e sangra”. Eu acrescento: e mata. Uma palavra com tanta carga negativa, que carrega tamanho estigma social, cria uma espécie de trava, um bloqueio nos responsáveis pelas políticas e pela saúde públicas, inclusive por nós médicos, que temos o dever ético e profissional de garantir o atendimento e o direito de nossas pacientes. Qual é o sentido de uma especialidade médica como a ginecologia e a obstetrícia que não defende o direito das mulheres? Há um bloqueio arraigado em sociedades religiosas como a brasileira que faz com que sequer se discutam temas de direitos da mulher, gênero e aborto. E aí, a própria formação médica, do ponto de vista humanístico, deixa a desejar, porque não se sabe que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres são também direitos humanos, reconhecidos pela ONU. Muitos desconhecem a lei ou até a conhecem, mas não são treinados nos protocolos assistenciais. Então, há muita insegurança por parte dos gestores em assumir isso. A maioria dos serviços que funcionam hoje no Brasil o fazem porque os próprios profissionais da saúde estão ali quase que como heróis solitários, que sabem eticamente da sua responsabilidade e da importância desse tipo de atendimento para minimizar danos, para acolher e fazer beneficência, respeitar a autonomia da mulher, garantir direitos. Mas precisamos do apoio da sociedade e daqueles que têm o poder de fazer valer a lei.
P. Há barreiras também entre os próprios profissionais da saúde?
R. Como é um tema difícil, muitos profissionais, sem saber e sem se aprofundar na questão nem mesmo sobre o que pensam em relação àquilo, colocam-se como objetores de consciência. Nós da Rede Médica pelo Direito de Decidir defendemos o direito de objeção de consciência dos profissionais de saúde. Entretanto, isso é secundário ao dever primário de não maleficência, beneficência e garantia de direitos. Só pode fazer objeção de consciência aquele profissional que, antes da objeção, informou os direitos para a mulher, garantiu o acesso ao serviço e, se por ventura ou alguma questão técnica, ele não pode oferecer aquele atendimento imediato, ele mesmo tem que garantir a mobilização dessa paciente imediatamente ao lugar em que ela vai receber atendimento integral. Não é o que acontece. Os serviços dizem “isso aqui não acontece, nós somos objetores” e fecham as portas. Isso chama-se omissão de socorro e não objeção de consciência.
P. A situação dos centros de atendimento à vítimas de violência sexual e interrupção legal da gravidez mudou durante a pandemia de covid-19?
R. Só agora na pandemia, o Artigo 19 [ONG de Direitos Humanos], que faz o mapeamento dos serviços que fazem a interrupção legal da gravidez no Brasil indica que, dos 70 centros no país, 20 deixaram de oferecer esse atendimento. Isso justamente quando a violência contra a mulher aumentou. Muitos serviços registraram neste ano um aumento significativo das solicitações de aborto legal, o que leva à hipótese de que um maior número de mulheres sofreu estupros durante esses meses de pandemia.
P. Qual é o perfil das pessoas atendidas nos centros de referência para o aborto legal no país?
R. Existem muitos mitos em relação às vítimas. O primeiro deles é de que a mulher, pela roupa que usa ou pelo local que está, é responsável pela violência que sofre e de que o estupro acontece com a mulher que sai à noite, que vai na balada. Na verdade, mais da metade das vítimas são meninas abaixo de 14 anos. E nos centros de atendimento à interrupção legal da gravidez, as meninas menores de 18 anos são 60% do casos, o que só aumenta a urgência de que Lei seja cumprida. Não é possível que 80 anos depois do Código Penal de 1940 nós tenhamos pelo menos quatro Estados brasileiros sem um serviço de atenção à violência sexual e interrupção da gravidez. Não é possível que uma criança de 10 anos tenha que pegar um avião e viajar 1.400 quilômetros para realizar esse procedimento. Não é possível que universidades públicas com faculdade de medicina, com serviços de residência médica, não ofereçam treinamento em violência sexual e interrupção da gravidez.
P. Falta, então, maior preparação nos cursos de saúde para lidar com essa realidade?
R. O aborto faz parte da vida reprodutiva das mulheres, então precisa fazer parte da vida assistencial dos ginecologistas obstetras. Os médicos devem ser treinados nesse tipo de atendimento. Não é algo muito diferente do que esses profissionais já fazem, mas é um treinamento em direitos, humanismo e empatia.
P. Sem ter tido essa formação, como o senhor chegou ao entendimento de que esse também é um serviço essencial em saúde?
R. (Pensa um minuto antes de responder). Em 1989, a então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, criou uma portaria no município para institucionalizar o atendimento ao aborto previsto em lei. E aí ficou evidente a ignorância de nós, ginecologistas e obstetras, a respeito da lei que nós mesmos deveríamos praticar. Fizemos treinamentos e alguns de nós aceitamos a tarefa de realizar esses atendimentos. Meu nome deriva de “cristão”, meu avô é presbítero, minha formação religiosa é protestante presbiteriana, então eu ainda me debatia com essa questão da vida, de quando ela começa a ser formada... Até que, um dia, atendi uma menina de 15 anos, que tinha um sangramento muito grave e icterícia. A irmã, de 17 anos, que a acompanhava, me disse que a menina estava grávida e havia injetado formol para abortar. Ela já estava quase cega, entrando em insuficiência renal, tivemos que fazer uma histerectomia, e ela não resistiu. Ao saber da notícia, o pai dessa adolescente desabou no chão, gritando e chorando desesperado. Eu chorei com ele. Uma semana depois, atendi uma menina de 12 anos que estava grávida após ter sido estuprada por dois homens enquanto cuidava sozinha dos irmãos pequenos em casa. Essa criança pegou no meu braço e disse: “Doutor, tira essa coisa de dentro de mim? Me salva”. Nesse momento, minha filha tinha mais ou menos a mesma idade que ela. E aí, a dificuldade que eu tinha em compreender o que é um estupro, a dor que uma gravidez fruto de violência causa em uma pessoa, o olhar daquela menina, que foi minha maior professora na vida, fez minhas dúvidas irem embora. O que eu faria se fosse minha filha? Ali, não tive mais dúvidas na minha carreira, na minha profissão, apesar de ter minha crença, minha fé. Eu rezo todo dia antes de dormir e ao acordar. Mas fé é individual, dentro de cada um. Não tem nada a ver com a tragédia humana que é uma gravidez fruto de estupro. Ninguém tem o direito de dizer a uma mulher que ela não deve abortar. E se ela quiser levar a gestação adiante, será acolhida da mesma forma, fará o pré-natal e terá todo o acompanhamento. O que não dá é uma histeria coletiva de uma sociedade hipócrita, onde as mulheres morrem sem ter sequer informação sobre seus direitos. Essa é a tragédia das mulheres brasileiras, a desinformação.
P. No caso da menina capixaba de 10 anos, os serviços de saúde do Espírito Santo alegaram que não puderam realizar o procedimento porque ela tinha 22 semanas de gravidez. Há um limite legal de idade gestacional para a interrupção da gravidez?
R. Pode acontecer que algumas equipes não estejam treinadas para realizar o procedimento além de 12 semanas de gestação, o que mostra a necessidade de os gestores estarem focados nisso e treinar as equipes para atender pacientes com esse perfil. Alguns serviços que oferecem esse tipo de atenção realizam o aborto legal até 12 semanas, outros fazem até 22 semanas, mas a lei brasileira não estabelece limites nesse sentido. É claro que se chegar uma mulher com 26, 27 semanas de gestação, uma conversa com ela pode levá-la ao pré-natal, realização do parto e doação do bebê. É o que geralmente acontece com os casos de gestação avançada, até porque ninguém faz aborto contente. É uma situação muito dura, refletiva, sofrida. A maternidade é algo muito arraigado no inconsciente coletivo das mulheres, tem um poder muito forte nessa reflexão que é muito dolorosa para ela. Mas a gestação também pode ser algo muito doloroso, e é isso que alguns médicos não entendem. Porque nós somos treinados para o binômio materno-fetal, e a maioria das pacientes que recebemos, em circunstâncias normais, quer dizer, de não violência, está no processo de maternagem, escolha do nome, a cor do quartinho do bebê… Quando uma mulher chega e te fala “doutor, eu quero fazer o aborto legal”, “doutor, eu estou com o demônio dentro de mim”, “doutor, tira essa coisa de mim” é chocante. Mas é isso, é um sofrimento psicológico atroz. Não há uma vinculação, um sentimento entre a mulher e a gestação. Quando há, é um sentimento de ódio e repulsa.
P. O risco de uma criança de 10 anos ser submetida a um procedimento legal de aborto é o mesmo risco de ela levar a gestação e passar por um parto?
R. Esse é outro mito sobre o aborto. Isso surgiu devido à alta mortalidade provocada pelo aborto ilegal. Por isso, a ONU considera que a descriminalização desse procedimento é uma das maneiras mais eficazes de os países cumprirem a meta do milênio relacionada à diminuição da mortalidade materna. Mas as evidências científicas mais recentes mostram que o aborto é o evento reprodutivo mais seguro que existe. O risco de óbito nesses procedimentos é de 0,5 para cada 100.000 casos. No parto com feto vivo, esse risco de morte é de 7 para cada 100.000 procedimentos. O aborto natural tem mais risco de morte do que aquele induzido, legal e seguro, realizado em uma maternidade. É evidente que essa criança tinha menos risco no procedimento de interrupção da gravidez do que deixar aquele corpinho frágil, com uma bacia de 10 anos, ainda não desenvolvida, eventualmente passar por um parto em alguns meses.
P. O que o senhor diria aos grupos fundamentalistas que se dizem pró-vida e que exerceram pressão sobre a menina e sua família, chegando até a protestar em frente à clínica que a atendia?
R. O Estado laico não comporta atitudes agressivas de intolerância na tentativa de impor uma visão religiosa qualquer que seja ela a toda sociedade. A lei apenas garante o direito ao aborto e não obriga aquelas que, por força de suas crenças, não queiram submeter-se ao procedimento. É preciso dar um basta nessa intromissão na individualidade das pessoas. Está se demonstrando à sociedade que a influência religiosa faz mal à saúde e põe a vida em risco.
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