Ao HuffPost, psicanalista Maria Rita Kehl reflete sobre todos os afetos relacionados à ausência de reação das pessoas ante ofensas e injustiças.
Amanda Mont’Alvão Veloso
09/07/2020
TAMO JUNTO
Entalado na garganta, preso na fantasia e incessante no pensamento, o ressentimento pode consumir toda uma existência. Uma palavra que reúne uma constelação de afetos diversos como raiva, rancor, desejo de vingança, maldade, ciúmes, inveja e malícia, conforme identificados pelo filósofo alemão Max Scheler.
São sentimentos alimentados em torno de um não-acontecimento, pois trata-se da ausência de reação diante de uma ofensa, um ato ou uma situação injusta. Impedidas de serem endereçadas a um outro, a raiva e a indignação retornam contra a própria pessoa. Uma ressalva é importante: o ressentimento só brota de situações em que houve espaço ou oportunidade para reação. É diferente, portanto, do inconformismo ou da luta para que uma situação não fique impune.
“Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo pelo que venha a fracassar”, explica a psicanalista Maria Rita Kehl, que deu ao tema tradicionalmente filosófico bases psíquicas que nos permitem pensar nossa relação em sociedade e o fenômeno eleitoral de políticas baseadas no ressentimento, como é o caso do Brasil e dos Estados Unidos.
Kehl é autora do livro Ressentimento (Boitempo), publicado pela primeira vez em 2004 e relançado este ano em nova edição, com o acréscimo de um ensaio sobre a situação político-social do Brasil contemporâneo.
A publicação percorre autores como Nietzsche, Freud e Hannah Arendt para radiografar a produção e incidência do ressentimento, definido pela autora como “uma categoria do senso comum que nomeia a impossibilidade de esquecer ou superar um agravo”. Impossibilidade ou recusa de esquecer é o questionamento que nos leva ao próprio ressentido e à implicação de cada um de nós nas próprias escolhas.
O livro destaca também a ressonância cultural do ressentimento por meio da estética e da crítica. A autora analisa o tema à luz das obras Crime e Castigo, de Dostoiévski; Ricardo III, de Shakespeare; São Bernardo, de Graciliano Ramos; e As brasas, de Sándor Márai.
Em entrevista ao HuffPost, Kehl comenta sobre a relação com a culpa, os mecanismos que favorecem o ressentimento e os desdobramentos do tema na política. Segundo a autora, a pressa em perdoar os corruptos, os ditadores e os políticos irresponsáveis é a raiz de nosso ressentimento como brasileiros.
Leia os principais trechos da entrevista:
HuffPost Brasil: O que está em jogo a ponto de os ressentidos se recusarem a esquecer ou superar algo?
O desafio de apostar em desejos e escolhas requer coragem, pois não há um sucesso garantido de antemão. Há sempre o risco de se perder a parada; este é um risco narcísico. O artifício de culpar alguém pelo que fracassou nessas tentativas não resolve o ressentimento. Ele faz parte da constelação afetiva do ressentimento!
O autoritarismo, por si mesmo, não faz parte do ressentimento; mas pode produzir ressentimento em quem o aceitou passivamente, sem luta. Quanto à servidão voluntária, ela talvez seja o caminho mais curto para o ressentimento. Quem é voluntariamente servil está esperando proteção do outro, mais forte que ele. Ou mesmo esperando se valer da servidão para ser reconhecido, promovido etc. Quando percebe que favoreceu o outro, mais poderoso que ele, mas não recebeu o que esperava, pode passar o resto da vida remoendo, como uma vítima, a “injustiça” sofrida.
“O desafio de apostar em desejos e escolhas requer coragem, pois não há um sucesso garantido de antemão.”
Em que medida estratégias de silenciamento como a diluição do debate e o linchamento virtual podem contribuir para alimentar os ressentimentos?
Se o sujeito entregar seu destino na mão de quem lhe prometeu o tal lugar ao sol, ou acreditar que seus méritos serão reconhecidos por um “pai” justo em uma disputa em que o que vale são os interesses, ele pode se ressentir. O ressentimento, nesse caso, terá sido uma espécie de defesa para que ele não tenha que se confrontar com sua passividade ingênua.
Vimos que o enfrentamento à pandemia no Brasil foi caracterizado pela ausência do Estado e pela substituição de ações centralizadas e claras por medidas individuais, como se a prevenção fosse facultativa a quem concordasse com ela. Após três meses de sacrifícios individuais e a flexibilização, pelos governos, das medidas de prevenção enquanto a situação ainda era grave, tornaram-se frequentes relatos de brasileiros que se sentiram “tontos” ou “bestas” . Houve alguma produção de ressentimento nesta situação?
Não sei dizer se sim ou se não. Imagino que as pessoas não tenham mantido o isolamento só porque os governos mandaram, mas também por sensatez – e nesse caso, são responsáveis por essas escolhas. Não sei se os que se sentiram “tontos” se arrependem de ter mantido o isolamento ou se ficam indignados com a arbitrariedade de governadores e prefeitos — quanto ao presidente, sem comentários — que flexibilizam as regras antes de termos chegado a um patamar seguro de controle da pandemia. Nesse caso, os trabalhadores mais pobres são obrigados a retomar seus postos para não ser demitidos, e sabem que estão arriscando a vida. Caso se sintam feitos de bestas, têm toda a razão.
“Se o sujeito entregar seu destino na mão de quem lhe prometeu lugar ao sol, ou acreditar que seus méritos serão reconhecidos por um 'pai' justo em uma disputa em que o que vale são os interesses, ele pode se ressentir.”
Como o ressentimento tem caracterizado a vida política no Brasil? Poderia falar um pouco sobre o que você nomeou como nossa pressa em “perdoar os corruptos, os ditadores e os políticos irresponsáveis”?
Esta é a raiz de nosso ressentimento, mas em geral o brasileiro costuma procurá-la em outro lugar. Ouvimos com frequência comentários de que o Brasil não vai pra frente por culpa dos negros, dos pobres, dos indígenas que ocupam terras com jazidas minerais que enriqueceriam o País... Balela. A exploração dos minérios em terras indígenas só enriquece o dono do garimpo e deixa os índios em terra devastada. Não são os pobres que atrasam o Brasil, ao contrário: o Brasil é atrasado por não curar a chaga da miséria. E pela acumulação vergonhosa de riquezas nas mãos de poucas famílias. Parte da sociedade não apoia nenhum projeto de inclusão social e viaja pra Paris dizendo que o Brasil é uma porcaria...
A partir da discussão que você fez em seu livro O tempo e o cão sobre a relação dos depressivos e a época de “felicidade obrigatória” em que vivemos, podemos pensar que os discursos de medicalização do sofrimento, seja depressão ou ansiedade, contribuem para alimentar determinados ressentimentos, na medida em que não articulam o padecimento às escolhas de vida da pessoa?
A felicidade que parece obrigatória nesta fase consumista do capitalismo (na fase produtivista era o contrário, o apelo era ao esforço e ao sacrifício) provoca com frequência a impressão de que todos estão se divertindo e curtindo a vida, como numa propaganda de cerveja – menos eu! Não trabalhei essa hipótese no meu livro mas me parece que você tem razão.
“Não são os pobres que atrasam o Brasil, ao contrário: o Brasil é atrasado por não curar a chaga da miséria.”
O cultivo cultural do ressentimento é uma maneira de dissuadir o sujeito de fazer uma aposta em si mesmo como alguém potente, responsável por suas escolhas e, consequentemente, como alguém que pode interferir naquilo que se chama de destino?
Essa é uma pergunta que exigiria uma nova pesquisa. Por enquanto, me limito a especular sobre sua hipótese... Me parece que o ressentimento é a consequência, e não a causa, dessa expectativa que você detectou, em parte da sociedade brasileira, em conseguir favores e proteções dos mais ricos, dos políticos, dos poderosos.
Os velhos coronéis da política aperfeiçoaram práticas de compra de votos – a voz corrente é que em regiões muito pobres o candidato dava um pé de bota para os empregados da fazenda e prometia o outro pé só se ele ganhasse as eleições. Depois da eleição o eleitor poderia até ganhar o outro pé de bota, mas nem por isso o vencedor iria implementar políticas de saúde, educação, empregos etc, que pudessem tirá-lo da dependência vergonhosa de mais “favores” do sinhozinho.
Essas práticas arcaicas sem dúvida contribuíram para criar uma sociedade mais passiva, mais dependentes de favores políticos ou patronais – portanto, propensa ao ressentimento.
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