Pesquisa da organização Coding Rights mostra como o discurso de ódio e a reprodução de preconceitos na internet afetam esta população; mais de um ano após a criminalização da Lgbtfobia, 49% dos estados não têm informações sobre este crime
A carioca Ana Claudino, 29, cresceu sem referências lésbicas e com a sensação de não pertencimento. Buscou refúgio na internet, nas salas de bate-papo e nas contas anônimas do orkut e msn. Fez amizades que leva até hoje e começou a construção de uma rede de afeto e identificação nas redes sociais. Em 2017, criou o seu canal do YouTube, chamado “Sapatão Amiga”, para amplificar sua voz e pautar as narrativas de lésbicas negras como ela.
“Veio deste lugar de compartilhar minhas experiências e alcançar outras lésbicas negras. Hoje em dia, tenho meu canal, meu podcast, minha coluna na Mídia Ninja e faço parte de uma rede de lésbicas pelo Brasil afora, até da América Latina, que construí para ampliar essa rede sapatão. Nessa rede conseguimos, na medida do possível, ter um espaço para trocar com outras de outros lugares e entender as vivências dessas mulheres lésbicas de outras regiões e países”, conta a youtuber e pesquisadora de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Veio deste lugar de compartilhar minhas experiências e alcançar outras lésbicas negras. Hoje em dia, tenho meu canal, meu podcast, minha coluna na Mídia Ninja e faço parte de uma rede de lésbicas pelo Brasil afora, até da América Latina, que construí para ampliar essa rede sapatão. Nessa rede conseguimos, na medida do possível, ter um espaço para trocar com outras de outros lugares e entender as vivências dessas mulheres lésbicas de outras regiões e países”, conta a youtuber e pesquisadora de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A internet atua como um espaço de visibilidade e amplificação das vozes lésbicas, mas ser visível é arriscado, e o discurso de ódio e violência nas redes contra lésbicas também é presente. Isso é o que mostra a pesquisa “Visibilidade Sapatão nas redes: entre violência e solidariedade” da Coding Rights (organização feminista interseccional que defende os direitos humanos no desenvolvimento, regulação e uso das tecnologias), que foi publicada em 21/8 e analisa as existências lésbicas no mundo digital.
Realizada pelas pesquisadoras Ivanilda Figueiredo e Joana Varon, o estudo destaca seis mulheres lésbicas que utilizam a internet como forma de amplificar suas existências e ativismo: Bruna Bastos (idealizadora da Sapatona Entendida e uma das articuladoras da Coletiva Brejo Salvador), Camila Marins (uma das editoras da Revista Brejeiras), Carol Bastos (administradora da página do facebook da Liga Brasileira de Lésbicas do Rio Grande do Sul e co-administradora do facebook da LBL Nacional), Kamilla Valentim ( integrante da Coletiva Resistência Lésbica da Maré no Rio de Janeiro), Michelle Seixas (integrante da Associação Brasileira de Lésbicas) e Mônica Benício (ativista lésbica e viúva de Marielle Franco).
A violência contra mulheres lésbicas na internet aparece de diferentes formas, segundo Ivanilda Figueiredo, professora adjunta de Direito e Pensamento Político e Direitos Humanos da faculdade de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenadora do Universidade, Resistência e Direitos Humanos (URDIR) e do Núcleo de Direitos Humanos em Ensino, Pesquisa e Extensão da UERJ. “A primeira é a violência que vem dos usuários, que se reproduz nas redes e nas ruas devido ao ódio contra essa população, que é legitimado porque ninguém freia essa violência na internet”, explica.
Desde o período eleitoral de 2018, houve um acirramento da violência e discursos de ódio contra a população LGBT+. Como mostra a pesquisa “Violência contra LGBTs+ no contexto eleitoral e pós eleitoral”, produzida pela Gênero e Número, 51% das pessoas LGBTs+ entrevistadas sofreram pelo menos uma agressão durante o segundo semestre de 2018 e 36% relataram ter sofrido perseguição, ameaça ou agressões nas redes sociais pela orientação sexual ou identidade de gênero durante os períodos eleitoral e pós-eleitoral. Mulheres lésbicas foram um dos grupos que mais relataram ter sofrido perseguição ou agressões nas redes sociais, (37%).
Ana Claudino presenciou de perto essa perseguição nas redes sociais. Em 2018, na época das eleições, quando começou a falar mais publicamente de política e se juntou ao movimento #EleNão, recebeu ataques em massa de bots em um vídeo em que dava dicas de segurança para lésbicas que iam ao ato #EleNão, o que fez com que desativasse os comentários da sua publicação. Este ano, uma pessoa criou uma conta falsa com sua foto, passando-se por uma ativista lésbica de São Paulo que pedia o contato e marcava encontros com outras mulheres lésbicas. “Uma seguidora me avisou desse fake, eu denunciei a conta e o Instagram tirou do ar, mas isso mostra como estamos a mercê dessas plataformas. Estamos hackeando essas plataformas que não querem sapatões ali dentro e, por isso, puxamos o #VerificaSapatão no twitter, para que a plataforma verifique as criadoras de conteúdo e dê mais segurança para essas mulheres”, destaca.
A ativista Michelle Seixas, entrevistada pela pesquisa, também cita um episódio de violência durante o período eleitoral de 2018 contra a página da Associação Brasileira de Lésbicas (ABL): “Nós recebemos ameaças no messenger do facebook, dizendo que estávamos com os dias contados, que a farra ia acabar porque o capitão [referência a Bolsonaro] estava chegando. Nós não respondemos a este tipo de mensagem e encaminhamos a denúncia para o ‘Disque 100’, que é um serviço telefônico para recebimento e encaminhamento de denúncias feito ao Governo Federal. Mas logo depois começou o governo que justamente legitimava as ameaças contra nós, e não recebemos resposta”.
Censura à palavra “sapatão” e algoritmo
Em 2019, depois de pressão e reclamações de organizações lésbicas de diferentes partes do mundo, o Google alterou seu algoritmo para que a palavra “lésbica” não fosse mais sinônimo de pornô. A partir de então, o usuário seria direcionado para conteúdos informativos e à página do Wikipédia. No entanto, ainda hoje, se digitar a palavra “lésbica negra”, os resultados do Google Imagens remetem em sua maioria a imagens pornográficas. O mesmo acontece quando é digitado “lésbica branca”, mas esses conteúdos aparecem misturados a outros informativos.
Segundo Figueiredo, essa é a segunda forma de violência presente nas redes sociais.“Seria o algoritmo e a responsabilidade das empresas, que deveriam não reproduzir esse preconceito, mas não é isso que acontece na prática. Isso faz com que mulheres lésbicas não se sintam seguras, sejam censuradas pelo uso de certas palavras como ‘sapatão’ e não saibam como ter apoio das empresas quando acontece algum tipo de violação. As empresas precisam fazer algum controle que proteja as usuárias sem censurar suas liberdades.”
Criminalização da LGBTfobia aplicada ao discurso de ódio
O estudo também traz dados inéditos sobre registros dos crimes de Lgbtfobia. Por meio da Lei de Acesso à Informação, foram solicitados os dados para as 27 unidades federativas, a partir da data de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), 13 de junho de 2019, até o dia 31 de maio de 2020. Das 27, 23 responderam à solicitação e, em 4 estados, o sistema não funcionou ou a solicitação não foi respondida. Dentre as respostas recebidas, apenas 12 efetivamente enviaram dados que contabilizam 2.865 casos de LGBTfobia: Acre, Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Pará, Paraná, Pernambuco, Roraima e Tocantins.
Mais de um ano após a decisão de criminalização da LGbtfobia pelo STF, prevalecem a escassez e discrepância dos dados sobre violência contra a população LGBT+. Quase metade dos estados (49%) não possui dados sistematizados sobre LGBTfobia e quatro estados ainda alegaram falta de tipificação para não possuir essa informação: Amapá, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Rondônia.
“Isso faz parte de uma política muito ampla de negação de direitos. Esse levantamento mostra a falta de interesse dos estados em proteger essa população, porque eles arrumam qualquer desculpa para não ter esses registros ou os dados consolidados. A população LGBT+ deveria saber que pode denunciar, ser bem atendida nas delegacias, não ser revitimizada, e, nas delegacias, deveria ter os campos de preenchimento que levam em conta orientação sexual e identidade de gênero. Existe uma falta de interesse em nos proteger, porque o governo federal e dos estados acham que isso iria legitimar nossa existência e eles não querem isso”, disse Figueiredo.
Não existe previsão legal tratando especificamente do discurso de ódio e nem um consenso no judiciário do que caracteriza essa violência, o que pode dificultar seu combate e punição. Existe a possibilidade de enquadrá-lo na previsões da Lei Antirracismo (Lei n.7716/1989, na lei que que trata sobre misoginia na internet ( Lei 13642/18) ou nos dispositivos que tratam de crime contra a honra, especialmente difamação ou injúria (artigos 139 e 140 do Código Penal), e ainda no crime de ameaça (art. 147) e nos crimes contra a paz pública (art.286 a 288).
De acordo com Figueiredo, o debate do discurso de ódio é complexo no país e ainda não temos uma definição fechado do que seria essa violência. “Essa falta de uma jurisprudência homogênea é muito perigosa porque faz com que as pessoas fiquem na dúvida na hora de denunciar e existam visões e decisões muito díspares na forma como o Supremo e os juízes enxergam essa questão”, finaliza.
* Vitória Régia da Silva é repórter da Gênero e Número
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