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sexta-feira, 4 de setembro de 2020

A moradora de Wildfell Hall

 A moradora de Wildfell Hall
A violência contra a mulher sempre existiu, mas dificilmente foi discutida sem tabus pelas sociedades ao longo dos séculos.
Uma das primeiras narrativas sobre violência contra a mulher é a lenda da Medusa, da riquíssima mitologia grega. Passou ao lugar comum a figura da mulher de cabelos de serpente, que transformava em pedra quem a fitasse e só poderia ser morta se tivesse a cabeça cortada.

Medusa era uma bela sacerdotisa do Templo de Atena, a deusa grega da sabedoria. Sua beleza extraordinária atraía os homens e despertava a inveja das mulheres, inclusive da própria Atena.
Posêidon, o deus grego dos mares, era obcecado pela jovem Medusa. Além de seu desejo criminoso, o deus tinha uma disputa de poder com Atena.  Então, um dia, ele invade o templo e violenta a jovem. Atena se enfurece, mas com Medusa. A jovem violentada é castigada pela deusa, que a transforma então no famoso monstro com cabelos de serpente. Na narrativa grega, a jovem mulher é culpada pela sociedade pelo crime cometido contra ela mesma. Sobre a vítima do hediondo crime, recai a punição, a vergonha e a desonra.
No século XIX, muitas transformações começaram a ocorrer na sociedade, mas a situação da mulher continuava extremamente limitada. Poucas profissões aceitavam mulheres, sempre restritas a cargos como criadas, professoras e governantas. O casamento era ainda o principal destino de uma jovem de boa família, mas felicidade conjugal raramente estava no pacote.
No ambiente de moral sufocante da era vitoriana, muitas jovens mulheres começaram a desafiar as amarras da sociedade. Muitas escritoras publicavam sob pseudônimos, a fim de resguardar sua identidade e evitar julgamentos.
Sob um pseudônimo, Anne Brontë publicou “A moradora de Wildfell Hall” (em algumas traduções: A inquilina de Wildfell Hall). O romance fez um sucesso extraordinário, mas chocou o falso puritanismo vitoriano pela temática da jovem mulher que abandona um marido violento.
A narrativa começa com a misteriosa Helen Graham chegando com seu pequeno filho Arthur a um remoto vilarejo. A jovem alega ser viúva, mas ela é jovem demais. A desconfiança da vizinhança é que a moça inventou a viuvez a fim de justificar o fato de ser mãe.
Mesmo a jovem levando uma vida bem discreta, comparecendo apenas ao culto de domingo e recebendo poucas visitas em sua residência denominada Wildfell Hall, boatos começam a correr duvidando de sua moral. O fato do jovem Markham se interessar pela viúva e visitá-la constantemente só piora os boatos de sua reputação.
Acuada, sem ter em quem confiar, atacada pela vizinhança, Helen acaba confiando seu diário a Markham. Então a verdade aparece ao menos para o jovem: Helen fugiu com seu filho Arthur de um marido violento, o cavalheiro Arthur Hutingdon.
Inteligente e belíssima, a jovem Helen tinha sido criada por seus tios. Na era vitoriana, era comum a adoção entre parentes, principalmente casais ricos e sem filhos. Assim que completa dezoito anos, seus tios começam a levar a jovem à sociedade a fim de atrair pretendentes. O casamento era o único fim honrado de uma jovem.
Helen logo atrai pretendentes com sua beleza e inteligência. Sua tia insiste que ela se torne noiva de um rico cavalheiro bem mais velho do que ela. Para a tia de Helen, um cavalheiro mais velho é mais confiável como um marido do que os jovens ingleses de alta sociedade. Helen repudia o pretendente de meia idade e apaixona-se por Arthur Hutingdon.
Helen estava ciente do duvidoso caráter de Arthur desde o começo. O jovem levava uma vida de festas com seus amigos, colecionava rumores de casos inapropriados com mulheres casadas, dilapidava seu patrimônio nas mesas de jogo. A tia de Helen se horroriza com tal pretendente e continua a pressionar Helen para se casar com qualquer outro cavalheiro, menos Arthur.
Não obstante o péssimo caráter de Arthur, a maioria dos jovens ingleses de classe alta da era vitoriana não era muito diferente dele. Helen confia que o casamento irá mudar o caráter de Arthur. Sua tia desiste de tentar abrir os olhos da moça e o casamento acontece. A melhor amiga de Helen, Milicent, casa-se com um jovem tão alcoólatra e devasso quanto Arthur.
Milicent e Helen parecem achar que entre os deveres de esposa está suportar os defeitos do marido, por piores que sejam. A submissão feminina é dever imposto às jovens. Anabelle, prima de Milicent e rival de Helen, casa-se com Lorde Lowborough, um jovem que, depois de chegar ao fundo do poço por causa do jogo e do álcool, converte-se em um homem honrado, porém depressivo.
Com poucos meses de casado, Arthur usa os negócios como desculpa para viagens constantes. Em Londres, vive a mesma vida de casos, álcool e jogatinas, enquanto Helen fica em sua casa de campo, cuidando do pequeno filho, sempre à espera do marido. Em poucos anos, os vícios de Arthur destroem a esperança da jovem de felicidade, mas Helen somente desperta para a realidade do péssimo caráter de Arthur quando ele a trai com Anabelle.
A traição é do conhecimento de todos os amigos de Arthur. Helen propõe uma separação amigável, uma atitude bastante moderna para os padrões da época. Arthur não aceita, pois não quer “escândalos”. Helen então propõe a separação de corpos e se compromete a manter as aparências:
 “Sim, eu beberei até o final: e ninguém, além de mim mesma, deverá saber quão amargo é para mim!” (BRONTË, 1848, pg. 136).
Quando Helen deixa de ser submissa, propondo a separação, é que Arthur mostra seu verdadeiro caráter, sem reservas. Ele afunda no álcool e faz de tudo a seu alcance para transformar a vida de Helen em um verdadeiro inferno.
Depois de dois anos de aparências, Helen enfim revela a Lorde Lowborough o escandaloso caso de Arthur e Anabelle, que continuava a acontecer. Os costumes da época permitiam um duelo entre o marido ultrajado e o amante. A própria Anabelle poderia ser morta pelo marido desonrado. O medo da reação do marido ofendido levara Helen a manter silêncio. No entanto, Lorde Lowborough rejeita o duelo:
“Isso’, respondeu a voz mais baixa e mais deliberada de Lorde Lowborough, ‘é o remédio que meu próprio coração ou o demônio dentro dele, sugeriu – encontrá-lo e não me separar sem sangue. Se eu ou ele cair, ou ambos, seria um alívio indizível para mim, se…’
 ‘Assim seja! Diga quando…’
‘Não!’, exclamou o Lorde, com profunda e determinada ênfase. ‘Embora o odeie com todo o meu coração e deva me alegrar com qualquer calamidade que recaia sobre ele, deixarei-o a Deus; e, embora o abomine por toda a minha vida, deixarei isso, também, para Aquele que a deu”. (Idem, pg. 174).
Depois de cinco anos de inferno conjugal, Helen prepara sua fuga, com a ajuda de seu irmão Frederick e de sua fiel ama Rachel. Nesse ponto, Arthur já estava deixando-a sem qualquer dinheiro e controlando suas chaves.
“Você não esteve feliz, ultimamente?’ (…)
‘Feliz?’ repeti, quase que provocada por tal questão. ‘Como eu poderia, com um marido desses?” (Idem, pg. 173).
“Que cena foi aquela! Poderia eu ter imaginado que seria condenada a tolerar tais insultos debaixo do meu próprio teto – ouvir tais coisas ditas em minha presença; não, ditas para mim sobre mim; e por aqueles que atribuíam a si próprios o título de cavalheiros?” (Idem, pg. 182).
 Wildfell Hall era a casa da mãe de Helen e Frederick, seu irmão. Frederick então auxilia Helen e Rachel a fugir, e se compromete a ajudar a irmã financeiramente.
Mesmo instalada em Wildfell Hall, Helen não tem sossego. Os boatos sobre sua reputação tornam a vida da jovem difícil em seu novo lar. As visitas de Frederick, seu irmão, levantam suspeitas e boatos maldosos sobre sua reputação. Helen vive aflita de que Arthur descubra seu paradeiro e vá atrás dela e do filho. Seu único amigo é Gilbert Markham, mas as visitas do jovem à sua casa dão espaço a fofocas e maledicências.
Depois de ler o diário de Helen e descobrir a verdade, Markham se afasta da moça pelo bem das aparências. Mas logo a verdade sobre Helen se espalha pelo vilarejo:
“Bem’, ela respondeu, ‘talvez você já saiba que o marido da senhora Graham não está realmente morto e que ela fugiu dele? (…)”. (Idem, pg. 214).
 Helen recebe a notícia de que Arthur está doente. Então volta ao antigo lar para visitá-lo, deixando Frederick a par de tudo sempre.
Passam-se meses. Arthur não melhora de sua doença, resultado de uma vida de vícios. Antes de morrer, ele se reconcilia com Helen:
“Você apenas lamenta o passado pelas suas consequências a si mesmo?’
‘Exatamente, lamento apenas por tê-la enganado, Nell, porque você é muito boa para mim”. (Idem, pg. 227).
Depois da morte de Arthur, Helen não mais retorna para Wildfell Hall. Seu tio também morre, e ela se torna herdeira de uma fortuna. Markham busca por notícias de Helen e a encontra em seu novo lar. Passado um tempo, os dois se casam.

REFERÊNCIAS
BRONTË, Anne.  A MORADORA DE WILDFELL HALL. Publicado pela 1ª vez em 1848. São Paulo: Editora Landmark, 2008.
PEREIRA, Joseane. Obsessão e violência sexual. Publicado em 03/02/2020. Disponível aqui.

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