A rotina que não se pode mais ter também é uma perda dolorida. Olhar com atenção para estes sofrimentos faz parte do processo de ultrapassá-los
Mônica Buccini
publicado em 31 de Agosto de 2020
À meia-noite de primeiro de janeiro, podíamos até imaginar que teríamos um ano desafiador pela frente, mas nada nos preparou para 2020.
É tanta dor para onde quer que olhamos que, às vezes, ficamos constrangidos em reconhecer a nossa própria tristeza, principalmente se não estivermos entre aqueles que ficaram desempregados, viram seus rendimentos caírem drasticamente ou, pior, perderam pessoas amadas para a Covid-19.
Por comparação às experiências mais dolorosas que brotam ao nosso redor, sentimos como se reconhecer nosso próprio luto fosse até desrespeitoso com essas pessoas. “Poderia ser muito pior”, pensamos e nos convencemos de que não podemos reclamar. Trago notícias: admitir a própria dor não deslegitima a do outro.
A esta altura, poucos de nós se encontram em isolamento social, alguns praticam um distanciamento com ocasionais interações com o mundo fora de casa e outros, por necessidade ou opção, mantêm suas atividades quase próximas à normalidade. Mas o fato é que ninguém chamaria o momento que vivemos de normal.
Se eu te perguntar o que sente em relação a este período, não duvido que você me diga que o detesta. Quem sabe, em alguns momentos, você até goste dele — já ouvi relatos de alguns introvertidos que têm até vergonha disso, mas dizem estarem se sentindo realmente bem na solitude imposta pela pandemia. Deve haver aqueles dias em que você só quer ficar debaixo das cobertas e outros em que consegue levantar com energia e se aproximar um pouco do seu Eu ideal do início da quarentena.
Pausa para nos sentirmos nostálgicos pelo mês de março, quando nos prometemos que usaríamos o isolamento para ler muito, arrumar o armário embaixo da pia do banheiro, fazer uma horta e beber vinho com os amigos pelo Zoom. Tolinhos que somos, acreditávamos que viraríamos padeiros, tocaríamos instrumentos em nossas sacadas, que isso tudo duraria um mês, dois no máximo.
Muito mais tempo se passou e você ainda está na metade do livro; a bagunça do armário segue a mesma; sua mudinha de alface morreu; sua cozinha já testemunhou a ascensão e queda do pão caseiro; a arquitetura típica dos prédios brasileiros não contempla varandinhas charmosas para interagir com os vizinhos e não há mais nada para falar com os amigos, se é que você ainda os tem.
As experiências da pandemia, mesmo as de fracasso, têm sido compartilhadas e nos unido num sentimento de pertencimento. Às vezes, quase esquecemos que, no fim das contas, estamos afastados de muitas pessoas queridas, perplexos com as notícias e, não raro, nos sentindo profundamente desamparados.
No meio disso, somos constantemente convidados a ficarmos bem e não deixarmos a tristeza tomar conta. Claro que pequenos ajustes na rotina para tornar a vida melhor podem, sim, ser bons e até muito importantes. Mas, antes disso, que tal se permitir um pouco apenas estar triste?
Não deve ser novidade para você que somos obcecados por estar — e sobretudo parecer — bem. Se o Instagram já escancarava isso antes, imagine agora que essa plataforma tem sido o único espaço de convivência para muita gente. O problema é o quanto essa obsessão nos retira certos rituais que envolvem aceitar que estamos mal, um degrau essencial na escada da superação da tristeza.
Freud afirma que a base do tratamento psicanalítico consiste no processo de tornarmos consciente o material inconsciente que causa nossos sintomas. Mas não é preciso ser psicanalista para entender que existe algo de apaziguador em reconhecer os sentimentos, principalmente os negativos, e falar sobre eles. Não é por acaso que usamos o termo “desabafar” para isso. O inglês tem uma palavra ainda mais ilustrativa: “unburden”, tirar o peso.
Ao agirmos como se estivesse tudo bem, no entanto, estamos fazendo o caminho inverso e nos tornando especialistas em recalcar.
Embora a psicanálise ajude muito a compreender melhor o mundo, dessa vez, não foi exatamente ela que me abriu os olhos para o quão mal estamos gerindo nossas emoções. Foi Tolstói.
A literatura pode ser, como diz Clóvis de Barros Filho, uma felicidade inútil, mas ela tem também uma grande utilidade: nos dar repertório para encarar o mundo. Em Guerra e Paz (atenção: spoiler!), Nicolau se apaixona por Maria, mas deixa de expor seus sentimentos porque a moça estava enlutada. Já fazia alguns meses da morte do pai, mas ela ainda vestia preto e mantinha a austeridade própria de alguém que havia passado por uma perda. Maria não queria ficar bem logo, nem Nicolau queria consolar a amada. #Goodvibesonly ainda não era uma tag.
Não havia qualquer expectativa de que alguém que perdera um ente querido levantasse e sacudisse a poeira. Ao ler essa passagem, pensei no quão digno e emocionalmente saudável é permitir-se um tempo para ficar triste.
A tristeza não é um problema em si. Muitas vezes, ela é só a resposta apropriada ao momento. Gosto de pensar nela como uma senhorinha meio inconveniente, que só quer tomar um chá com você. Enquanto não a convidamos para entrar um pouco e nos prestar a visita que periodicamente precisa fazer, ela fica tocando a campainha dia após dia.
É isto: pode ser que a tristeza não esteja na sua sala bebericando um chazinho da xícara que segura com o dedo mindinho erguido, mas é possível que ela esteja na calçada à espreita. Você pode até tentar ignorar, mas sabe que ela está lá. Paradoxalmente, é só depois que a deixamos entrar que ela vai embora. Talvez seja tarde demais para ressuscitar o costume de vestir preto durante o período de luto. Mas espero que ainda esteja em tempo de reaprendermos a vivê-lo.
O problema é: como reaprender a viver um sentimento que muita gente nem sabe estar experimentando durante a pandemia?
Quando perdemos um ente querido, em geral, a tristeza vem com força, e espera-se que seja assim. As pessoas ao nosso redor conseguem compreender nossa fragilidade naquele momento. Jamais será fácil passar por isso, mas há, nas perdas mais trágicas, uma certa legitimação social do luto. Isso não acontece quando perdemos coisas mais abstratas, como uma rotina que não se pode mais ter, a convivência com os colegas do trabalho, a caminhada até o metrô ouvindo um podcast, a paquera no bar.
Nosso estilo de vida foi construído em torno da convivência da qual estamos sendo privados. Claro, são perdas menores do que a vida de uma pessoa amada, não resta dúvida. Mas também causam sofrimento, nos fragilizam. Nesse caso, somos acometidos por uma dor sutil e permanente que, muitas vezes, não é sequer reconhecida ou verbalizada.
Resistimos em chamar de luto a perda dessas pequenas coisas intangíveis porque não há um corpo no caixão sobre o qual chorar, nem um lado vazio na cama ou na mesa de jantar. A questão é que, juntas, essas pequenezas formam uma enormidade à qual damos o nome de vida. Perdemos nossa vida e estamos, muitas vezes, encarando essa perda isolados uns dos outros. Se isso não é motivo para vestir preto e chorar em posição fetal ouvindo Cartola, o que é?
Agora que te revelei que talvez você tenha mais motivos para chorar do que imaginava, vou te dizer outra coisa importante: luto é travessia, essa palavra tão cara a Guimarães Rosa. Ele tinha especial apreço pelo processo de transformação humana, pelo atravessar de uma margem à outra do rio, ainda que esta fosse uma terceira e imprevisível.
Não nos enlutamos, não atravessamos. Queremos nos teletransportar ao outro lado e ditar o curso do rio. Ao menor sinal de tristeza ou solidão, esticamos o braço para alcançar o celular e rolamos automaticamente nosso feed cheio de imagens que nos informam da suposta felicidade alheia e nos intimidam a seguir o mesmo modelo. Não sei em que momento escalamos do “você merece ser feliz” para o “você é obrigado a sê-lo”.
E por que isso é um problema? Porque, neste momento, somos uma legião de enlutados que sequer sabem disso. E, se não for devidamente vivenciado, ao longo do tempo, o luto se converte em combustível inconsciente para uma tristeza muito mais duradoura. É aí que nos encontramos nesta situação estranha: para nos tornarmos emocionalmente mais saudáveis, é necessário nos permitir ficar tristes.
Precisamos nos entediar, sentir a angústia, largar o celular quando bater a solidão, parar de agir como se tudo estivesse bem nos stories.
Num retiro Vipassana sobre o qual falei aqui, havia algumas meditações em que recebíamos a orientação de não nos mexermos por uma hora. Se você já tentou fazer isso, sabe que o cantinho do nariz é uma área especialmente sensível que vai coçar. Depois o topo da cabeça. O pescoço. E a pior de todas: a sola do pé. Todas as partes esquecidas do seu corpo subitamente vão coçar.
Mas nos disseram para não nos mexermos. “Apenas observe a coceira, preste bastante atenção nela”. Como mágica, ela vai embora naturalmente. Mas, antes disso, ela fica quase insuportável e você pensa que, enquanto deveria estar se iluminando, está preocupado com essa ninharia. Sua testa coçando é o que separa você do estado búdico.
Até que, quando menos espera, percebe que essa sensação desagradável não é você. E ela passa. Isso, ao invés de um empecilho a sua prática meditativa, é a prática meditativa em si. São as suas células aprendendo que remediar um incômodo tão logo ele surja pode ser agradável, mas encará-lo e compreender que sua presença não nos destrói, isso é aprender resiliência na prática.
A pandemia sacudiu a vida de todo mundo e pode estar te causando terríveis coceiras emocionais, das quais você talvez nem tenha se dado conta. Fica aqui o convite para tomar consciência delas e permitir-se senti-las. Pelo menos por um tempo, tente não se mexer.
Você já se deu conta de que estava passando por um luto quando nem desconfiava disso?
Quais têm sido os impactos emocionais da pandemia sobre você?
Conta pra gente nos comentários.
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