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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

'Ou era ele ou era eu': Quando vítimas de violência doméstica matam seus agressores

Livro "Elas em Legítima Defesa – Elas Sobreviveram Para Contar" narra a trajetória de 6 sobreviventes da violência doméstica no Rio de Janeiro e em São Paulo.

By Andréa Martinelli

HuffPost Brasil

19/09/2020

O ex-marido da assistente social Úrsula Francisco era um policial militar que a ameaçava e violentava constantemente. “A agressão dele começava literalmente do nada: cismava com alguma coisa e, pronto, você se sentia um lixo. Eu não podia estudar, porque eu era ‘burra’. Quando faz com você, você vai aturando, mas, quando faz com o seu filho, é complicado”, conta a carioca de Nova Iguaçu.

Úrsula foi agredida física e psicologicamente durante 20 anos de relacionamento. “Ele começou simplesmente a dizer que ia matar a mim, o meu filho, e depois ia se matar. Naquele dia, eu sabia que ia sair um caixão dali, eu só não sabia qual.”

A relação abusiva chegou ao fim no dia em que ele ameaçou não só matá-la, mas também o filho do casal, com o revólver que guardava no quarto do casal. Naquele dia, antes de o marido alcançar o revólver, ela o fez e disparou. 

“Ele partiu para cima de mim no quarto, onde ele tinha arma. Eu sabia que ele ia pegar, mas eu peguei antes. E dei um tiro nele. E ali acabaram todos os meus problemas. Ali acabou o sofrimento do meu filho e o meu também.”

Úrsula tinha como testemunhas o filho e sua vizinha, que ouviu tudo. Chegou a ser presa, passou por julgamento e foi absolvida sumariamente pelo juiz por legítima defesa. Anos depois, se formou em serviço social e hoje trabalha na área, inclusive com casos relacionados à violência de gênero. 

O relato complexo de Úrsula está entre as 6 histórias reais de mulheres que viveram relacionamentos abusivos e mataram seus agressores em legítima defesa, compiladas no livro Elas em Legítima Defesa – Elas Sobreviveram Para Contar, da pesquisadora e roteirista Sara Stopazzolli, 41, lançado pela editora DarkSide. O livro terá todas as suas vendas revertidas para a ONG Amac, que atua no combate à violência contra a mulher.

SERGIO MORAES / REUTERS
"A agressão dele começava literalmente do nada: cismava com alguma coisa e, pronto, você se sentia um lixo", conta Úrsula no documentário Legítima Defesa.

A obra, lançada inicialmente no formato de e-book, é um desdobramento do documentário Legítima Defesa, de 2017, também produzido por Sara e sua irmã gêmea, Leda, que chegou a ser premiado no festival de cinema Mujeres en Foco, em Buenos Aires. ”É um tema complexo e há muito a ser dito ainda”, conta Sara ao HuffPost Brasil. 

Ao fazer a pesquisa para o documentário, que teve início em 2013, Sara realizou um levantamento com 50 casos ocorridos ao longo de 10 anos em tribunais de São Paulo e no Rio de Janeiro. Desse total, 6 mulheres aceitaram expor suas jornadas de vida. No filme, 3 são contadas - sendo que uma das histórias foi roteirizada, com atores no lugar da mulher.

“Eu ouvia muito [na época do documentário] perguntas de como foi para mim, como mulher, entrar em contato com essas histórias. Não deu para colocar todo o material que nós tínhamos no filme, até porque muitas delas não toparam aparecer ou falar. Para o livro, eu resolvi fechar os olhos e lembrar tudo o que vivi na apuração”, recorda-se.

A escritora, que lançou um olhar empático a esses casos, ressalta que era comum ouvir comentários que, segundo ela, reforçavam o julgamento dessas mulheres. “Eu já cheguei a ouvir que o livro poderia incentivar as pessoas a matar, que elas eram ‘mulheres assassinas’”, conta Sara, que acredita que conseguiu deixar de lado o tom sensacionalista tanto no livro e no filme, comum em outras produções. ”É importante não normalizar esse tipo de situação e humanizar os números da violência doméstica.”

O livro está sendo lançado 7 anos após o início da pesquisa das irmãs. Nele, Sara conta histórias de mulheres que sobreviveram à violência doméstica e de gênero - se seus bastidores, se colocando em primeira pessoa. Em comum, todas as personagens entrevistadas por ela mataram seus parceiros após anos de violência para que elas próprias - ou seus filhos - não entrassem para as estatísticas.

Em 2018, uma mulher foi assassinada no Brasil a cada duas horas, totalizando 4.519 vítimas. Os números são do Atlas da Violência 2020, publicado em agosto deste ano. Em paralelo, outros dados mostram que um cenário preocupante se desenha durante a pandemia do novo coronavírus. 

Estudo mais recente do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), publicado no fim de julho, mostra que à medida que a quarentena avançava, registros policiais de lesão corporal dolosa relacionados à violência doméstica caíram significativamente (27,2%), o que sugere que as vítimas não estão conseguindo pedir ajuda, por estarem lado a lado com o agressor. 

Medidas protetivas também diminuíram exponencialmente em todos os estados analisados. Em contrapartida, o número de mulheres assassinadas aumentou: foram 2,2% de feminicídios a mais do que no mesmo período do ano passado, passando de 185 para 189 mulheres assassinadas.

O estudo foi feito entre março e maio de 2020, com base em registros de ocorrência de 12 estados brasileiros enviados aos pesquisadores. 

O conceito de legítima defesa e a violência doméstica

O artigo 25 do Código Penal estabelece que legítima defesa ocorre quando “usando moderadamente dos meios necessários, a pessoa repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. 

A especialista em direito penal e professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Maíra Zapater traduz que, nesses casos, o “Código Penal autoriza a prática dessa conduta a princípio criminosa por existir uma situação de agressão injusta atual ou iminente. Ou seja, eu me torno um criminoso para me defender de uma agressão”. 

Histórias como a de Úrsula se encaixam na legislação. “Uma mulher que, sendo atacada por seu marido, o agride ou mata para se defender, pode ser reconhecida, sim, como legítima defesa. O Estado não está lá para defendê-la, então, ela precisou se defender sozinha”, afirma a doutora em Direitos Humanos.

Zapater lembra que o espaço em que se reconhece a eventual legítima defesa é sempre ao longo de um processo e com a decisão de um juiz. Porém, existem casos que dividem opinião de juristas, como a chamada legítima defesa antecipada, que pode ser relacionada a casos de violência doméstica.

Diante da impossibilidade da denúncia e da vivência de ameaças caso vá à polícia, algumas mulheres recorrem a outros meios para se defender. 

Úrsula conta no documentário que, quando a Lei Maria da Penha entrou em vigor, em 2006, ouviu de seu marido que a lei “não serviria para ele, que se ela denunciasse, seria morta, picotada e ninguém saberia o que aconteceu”.

“Existem casos em que a mulher, para se defender, espera o marido dormir e comete algum ato contra ele, por exemplo. Coloca fogo na casa, ou veneno na comida, por exemplo. Casos como esses são comuns, e existe a construção de uma tese do que seria uma legítima defesa antecipada”, explica a especialista. 

Neste caso, não cabe utilizar o artigo 25 do Código Penal, porque a defesa não acontece no calor do momento. Para tanto, existem outros dispositivos, como a inexigibilidade de conduta diversa, que pode ser usada como tese defensiva.

Esse conceito indica que quando “age o autor de maneira típica e ilícita, mas não merece ser punido, pois, naquelas circunstâncias fáticas, dentro do que revela a experiência humana, não lhe era exigível um comportamento conforme o ordenamento jurídico.”

Eu posso afirmar, por exemplo, que ela [mulher vítima de agressão] não estava em legítima defesa quando cometeu o ato, mas a situação vivida e relatada por ela nos leva a concluir que ela não poderia ter agido de outra forma diante dos fatos. Diante do júri, seria possível este tipo de argumento”, acrescenta a professora de Direito Penal.

Porém, para ela, casos como estes, em que as mulheres a princípio cometem um crime para se defender do agressor no ato ou em algum outro momento posterior, podem ser considerados uma tragédia.

“Quem defende qualquer tipo de homicídio esquece do fato de que quem matou vai ter que conviver com aquele crime para o resto da vida. Mesmo que seja um caso de uma mulher matando uma agressor, uma pessoa precisou praticar uma conduta que a princípio pode ser entendida como criminosa para encerrar uma situação de violência.”

A pesquisa “Raio-x do Feminicídio em São Paulo” analisou 364 denúncias feitas pelo Ministério Público e mostra que a maioria das vítimas de feminicídio no estado nem sequer chegou a procurar a rede de atendimento, o que é preocupante, considerando que o feminicídio é o clímax do ciclo da violência.

“É muito comum ouvir de delegados que as mulheres morrem com a medida protetiva na mão”, diz Zapater. “A gente já tem lei suficiente sobre a questão, o que a gente precisa é de mais investimento no atendimento multidisciplinar para esta mulher, no momento em que ela procura o poder público.”

A Defensoria Pública de São Paulo, por meio do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, disponibiliza cartilhas com orientações de atendimentos à mulher vítima de violência, além de endereços de delegacias especializadas.

“Problema só será resolvido com educação”

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Mulheres protestam pelo fim do feminicídio na Avenida Paulista, em São Paulo.

Natural de Santa Catarina, Sara vive há 20 anos no Rio e, junto com sua irmã, criou a produtora “Mera Semelhança” em 2013. Ela conta que outra experiência significativa foi a direção do curta-documentário Escola de Homens, que foi ao ar em abril, no canal de documentários do portal UOL. Ela acompanhou encontros de um grupo que visa à reeducação de agressores.

“O problema só será resolvido com educação de gênero nas escolas. Eu ouvi histórias de homens que achavam que não sabiam que não podiam forçar uma relação sexual com a esposa sem que ela quisesse, o estupro marital. É tudo tão naturalizado que eles não param para pensar nisso”, constata Sara.

Ainda é preciso um olhar específico para as mulheres. “Muitas mulheres também não sabem quais são os seus direitos. A educação é a primeira coisa, tanto para eles, quanto para elas. Existem muitas mulheres que são extremamente machistas ainda.”

Em paralelo ao livro, ela lançou também o podcast Luneta do Crime que, até o momento, já conta com 5 episódios. Nele, ela narra histórias de crimes reais contra mulheres e envolvendo violência de gênero.

Para contar as histórias em áudio, Sara entra em contato com familiares de vítimas de feminicídio e tem a intenção de mobilizá-las em uma associação para compartilhar experiências e exigir providências do Estado.

“Em cada episódio eu faço um storytelling, narro um crime de feminicídio. A ideia, de novo, é humanizar essas histórias que ficam nas estatísticas. Tanto a das mulheres que morreram, quanto das que foram absolvidas”, explica. 

Os números da violência contra a mulher no Brasil

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Mulher utiliza venda e tem o rosto pintado de vermelho em protesto no Dia Internacional da Mulher, realizado na Avenida Paulista, em São Paulo, em 2020.

Dados do Atlas da Violência 2020 mostram que, ainda que o problema da violência doméstica atinja todas as mulheres, o cenário é mais grave a depender da cor da pele. Entre 2008 e 2018, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4%.

Em 2018, 68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. Nesse grupo, a taxa de mortalidade foi de 5,2 por 100 mil, praticamente o dobro da taxa de 2,8 por 100 mil registrada entre as não negras.

Em alguns cenários, a disparidade é ainda maior. Nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, as taxas de homicídios de mulheres negras foram quase 4 vezes maiores do que aquelas de mulheres não negras. Em Alagoas, estado com a maior diferença entre negras e não negras, os homicídios foram quase 7 vezes maiores entre as mulheres negras, de acordo com o estudo.

Em vigência desde 2015, a lei que alterou o Código Penal para tipificar o feminicídio estabelece que esse tipo de crime ocorre quando o homicídio envolver violência doméstica e familiar ou “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. A pena é de 12 a 30 anos de reclusão. No homicídio simples, a pena é de 6 a 20 anos.

Como o Atlas da Violência é elaborado a partir de dados do sistema de saúde, e não da segurança, o estudo não informa se o homicídio foi registrado como feminicídio ou não. Há alguns indicativos, contudo, de que essas agressões tenham sido motivadas por um fator de gênero. Muitas das mulheres vítimas de homicídio foram mortas em casa e por armas de fogo. 

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