A história do livro Crônica de uma morte anunciada é referente a um jovem que é morto a facadas por dois irmãos, Pablo e Pedro Vicário. A narrativa não tem como principal foco o crime em si, mas sim os bastidores e atitudes ou falta delas que fizeram com que o homicídio fosse possível.
Em Crônica de uma morte anunciada podemos extrair diversos assuntos relevantes para o Direito Penal, tais como falsa memória (no caso das testemunhas), a tese já superada aqui no Brasil da legitima defesa da honra (em nosso país, a defesa dos acusados utilizava a tese da legítima defesa da honra para justificar a conduta criminosa quando, por exemplo, a mulher e seu amante fossem surpreendidos cometendo adultério), etc.
Santiago Nasar, acusado de ter tirado a honra da Ângela Vicário, morreu inocente. Assim descreve o autor:
A versão corrente, talvez por ser a mais perversa, era que Ângela Vicário estava protegendo alguém a quem, de verdade, amava, e tinha escolhido o nome de Santiago Nasar porque nunca pensou que os irmãos se atreveriam a enfrentá-lo. (MARQUEZ, G.G. Crônica de uma morte anunciada. Rio de Janeiro: Record, 2020, pág. 118).
Fato interessante é que na história mencionada, a defesa alegou homicídio em legitima defesa da honra e os homicidas foram absolvidos. Embora nosso ordenamento jurídico não permita mais essa linha de defesa, é presente em nossa sociedade um certo apoio moral aos que matam com tal alegação, tanto em defesa da própria honra como a defesa da honra de terceiros e é sobre isso que este presente artigo busca trazer reflexão.
Em 2018, um jovem foi morto por traficantes que acreditavam estar fazendo justiça devido um suposto estupro que aquele havia cometido contra uma adolescente, sua ex-namorada. A verdade é que a adolescente iniciou um relacionamento e queria que a vítima saísse da casa onde moravam, por isso, ela e o atual namorado foram até traficantes da região denunciar o falso estupro.
Evidente que a notícia se diferencia dos eventos narrados no livro, mas se assemelham no tocante a calunia, justiça com as próprias mãos e legítima defesa da honra. Por isso o ius puniendi, na nossa sociedade, é e deve ser apenas do Estado, e também por tais injustiças que se faz necessária a prevalência dos dispositivos constitucionais, a saber, “os litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Outro assunto relevante que será tratado aqui é referente à falsa memória das testemunhas. Logo no começo da história se percebe a confusão que as testemunhas fizeram quanto aos fatos do dia do crime; vejamos a seguir:
(…) muitos coincidiam na lembrança de que era uma manhã radiante com uma brisa de mar que chegava através dos bananais, como seria de esperar que fosse em um bom fevereiro daquela época. A maioria, porém, estava de acordo em que era um tempo fúnebre, de céu sombrio e baixo e um denso cheiro de águas paradas, e que no instante da desgraça estava caindo uma chuvinha miúda a que Santiago Nasar vira no bosque do sonho. (MARQUEZ, G.G. Crônica de uma morte anunciada. Rio de Janeiro: Record, 2020, pp. 8-9).
Ora, tal confusão sobre o clima no dia de um crime não parece tão relevante, mas quando analisamos uma situação real onde cada detalhe pode afetar os rumos de um inocente, devemos ir além do superficial para que possamos entender a gravidade de se confiar plenamente nas testemunhas.
Em 2014, um ator foi preso suspeito de ter cometido um assalto contra uma mulher. Na época dos fatos a vítima fez o reconhecimento e assim Vinicius Romão foi levado ao Presídio Patricia Acioli, em São Gonçalo. Parecia ser um crime solucionado, com a justiça feita; a polícia acabava de prender um assaltante que roubou uma copeira, nas proximidades de um hospital onde ela trabalhava, portanto, o Estado haveria cumprido seu papel de proteger um bem jurídico, o patrimônio, e satisfez seu ius puniendi. Mas a vítima voltou atrás e admitiu o erro em seu reconhecimento, e assim a justiça do RJ não teve outra opção senão mandar soltar o ator.
Dessa vez houve um final feliz, Vinicius Romão teve sua integridade física preservada e conseguiu ser absolvido das acusações, e quando o final não é tão feliz assim? Por exemplo, um porteiro foi confundido com um estuprador e ficou preso por cinco anos em regime fechado, Paulo Antônio da Silva lembra que foi até mesmo agredido por outro preso: “Eu tomei uma espetada aqui no peito aqui. Eu não morri porque o médico do Pronto Socorro é muito bom“.
Por fim cito aqui a brilhante análise do delegado Leonardo Machado sobre a necessidade de técnicas mais objetivas no reconhecimento pelas vítimas:
É preciso levar mais a sério a complexa função (re) cognitiva da persecução penal, bem como os necessários mecanismos de controle epistêmico e standards de prova mais exigentes, próprios de um regime processual democrático. Não custa repetir que, em qualquer Estado minimamente preocupado com a tutela de direitos fundamentais, impõe-se à decisão criminal condenatória uma sustentação por elementos empíricos válidos e demonstráveis de forma objetiva e racional que indiquem a superação do nível de dúvida razoável que milita em favor do imputado. No caso específico do reconhecimento de pessoas, por envolver, em última análise, um conjunto de percepções subjetivas e comparação de experiências, o controle deve ser ainda mais rigoroso, dado o considerável risco de falsas memórias.
Conclusão: O livro Crônica de uma morte anunciada é excelente para que possamos refletir melhor sobre aspectos do Direito Penal. A sociedade brasileira precisa aprender a valorizar os dispositivos legais de julgamento e repudiar a justiça feita com as próprias mãos, como também é preciso repensarmos na eficácia do reconhecimento das testemunhas e vítimas, para que haja uma diminuição significativa nas injustiças tão recorrentes em nosso país.
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