Norma editada pelo Ministério da Saúde obriga médico a notificar a polícia e oferecer ultrassom para vítima de estupro ver o feto antes de decidir pelo aborto.
By Andréa Martinelli / Marcella Fernandes
17/09/2020
Após pressão de parlamentares, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, participará de uma reunião fechada por vídeo conferência com integrantes do Senado Federal na tarde desta, quinta-feira (17) para esclarecer a Portaria Ministerial 2.282, publicada em 27 de agosto pela pasta, que cria novas regras que dificultam o acesso ao aborto legal no País.
A reunião havia sido marcada para a semana passada, porém, foi adiada. A mudança ocorreu a pedido de parlamentares devido às convenções partidárias para escolha de candidatos na última semana, que levou a uma redução nas atividades legislativas.
Segundo fontes ouvidas pelo HuffPost Brasil, o ministro deve ser questionado sobre o trâmite de aprovação da portaria, entre os questionamentos, estão: especificar quais áreas técnicas foram envolvidas na elaboração da norma, quais foram as evidências e as justificativas para tal e se o Conselho Nacional de Saúde foi consultado pela pasta.
O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), afirmou ao HuffPost Brasil que “o ministro [da Saúde] está muito aberto a sugestões”, mas disse que era preciso aguardar a definição de possíveis mudanças no texto.
Embora haja uma expectativa tanto da bancada feminina no Congresso quanto de especialistas no tema de que o Ministério da Saúde suspenda a portaria, o órgão informou ao HuffPost, por meio de nota, que não há previsão para revisão da norma.
A pasta sustentou que as medidas em vigor desde o dia 27 de agosto devem permanecer, pois “visam ajustar normas técnicas à legislação atual, garantindo, assim, segurança jurídica aos profissionais de saúde envolvidos no procedimento”.
Ministério argumentou, ainda, que a portaria atualiza norma de 2017 do Ministério da Saúde, se adequando às diretrizes da Lei Federal nº 13.718 de 2018, conhecida como “lei da importunação sexual” e que pede a regulamentação de protocolos internos.
“O objetivo é reduzir o número de casos de violência sexual contra mulheres e crianças e apoiar as autoridades policiais na identificação dos responsáveis, garantindo a segurança e proteção de pacientes com indícios ou confirmação de abuso sexual”, diz a nota.
A portaria obriga a notificação do estupro à autoridade policial, estabelece que a equipe médica informe a gestante sobre a “possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia” e insere, no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido o que entende ser o “detalhamento dos riscos da realização da intervenção por abortamento”.
Postura do ministério mostra resistência a uma pressão de parlamentares para que a própria pasta recue. No Congresso, há também a possibilidade de votar uma proposta que derrube a norma, além do julgamento de duas ações que pedem a suspensão da portaria no STF (Supremo Tribunal Federal) com início marcado para o próximo dia 25.
De acordo com profissionais da saúde e do direito, o texto promove uma inversão na função dos profissionais de saúde, que atuariam como profissionais de segurança pública. Esse tipo de entendimento promove a revitimização da vítima de estupro e pode desencorajar ainda mais a procura por ajuda.
A nova versão do termo de consentimento enumera uma série de riscos do procedimento e da forma como foi escrita é considerada parte de uma “estratégia de coação de meninas e mulheres a não realizarem um aborto”, de acordo com a ADPF (ação de descumprimento de preceito fundamental) que contesta a norma no STF.
Isso porque há um superdimensionamento dos riscos ao não informar a frequência em que ocorrem nem os perigos decorrentes de prosseguir com a gestação, especialmente para crianças e adolescentes.
A norma foi editada no mesmo mês em que ganhou repercussão nacional a história de uma menina de 10 anos vítima de violência sexual que enfrentou diversas barreiras para conseguir interromper a gravidez resultado de agressão.
Congresso quer derrubar portaria, mas visa diálogo com a pasta
Após a reação da bancada feminina contra a portaria nas últimas semanas, integrantes do Executivo e lideranças governistas tentaram colocar panos quentes. Foi prometida uma reunião com a bancada, mas ela não chegou a se concretizar e não há previsão.
Ao HuffPost, a coordenadora da bancada feminina na Câmara, deputada Professora Dorinha (DEM-MS), manteve a posição de que se caso a norma não fosse suspensa pela pasta e não houvesse uma abertura de diálogo com a bancada, as parlamentares apoiariam a proposta o PDL (Projeto de Decreto Legislativo), que anula a portaria. A deputada, inclusive, já entregou um ofício a Rodrigo Maia para que o PDL entre na pauta.
“A Secretaria da Mulher da Câmara já se posicionou com uma proposta de um novo texto [da portaria] enviada ao governo para abrir um diálogo. Fizemos essa provocação para que a gente possa construir caminhos para que a portaria seja alterada. O documento apresentado tem a intenção de abrir uma discussão e alterar o texto.”
A deputada estranhou a posição do ministério enviada ao HuffPost de que “não há previsão para a revisão da norma” e disse que o ministro Pazuello se mostrou “aberto ao diálogo” sobre a questão. Ela afirma que há um caráter de urgência em alterar a portaria, em especial, porque já está em vigor desde o dia de sua publicação.
“O próprio ministro tem mostrado vontade de ouvir, é obrigação ouvir não só parlamentares, mas especialistas no tema. A portaria traz elementos muito graves e questionáveis. É um tema sensível e o bom senso chama para a possível discussão, para o debate. A bancada feminina é diversa. Essa não é uma questão sobre direita, esquerda. Todos têm o mesmo objetivo, a proteção da mulher, da criança.”
Porém, na avaliação da ala mais progressista da bancada feminina, as três alterações realizadas pelo Ministério da Saúde são de extrema gravidade e não faria sentido somente alterar a portaria, mas sim, ter a sua total revogação, assim como pede o PDL.
Em uma outra frente, a deputada Lídice da Mata (PSB-BA) está recolhendo assinaturas para um requerimento de urgência que permita que o PDL (projeto de decreto legislativo) que derruba a portaria seja votado no plenário da Câmara. Até o momento,contam apenas 100 das 171 assinaturas necessárias. Apenas os líderes do PDT, PT e PSol haviam apoiado a iniciativa. As 3 bancadas somam 91 deputados.
A nova dinâmica de funcionamento do Legislativo na pandemia impôs algumas dificuldades. Antes, um requerimento de urgência circulava no plenário e era mais fácil conseguir as assinaturas necessárias. Agora o processo é feito à distância, convencendo cada deputado. Há também uma resistência de parlamentares católicos e evangélicos em apoiar a medida que busca garantir o acesso ao aborto legal.
Em entrevista a jornalistas, o presidente da Câmara, afirmou que busca uma solução política para derrubar a medida, mas admite a possibilidade de judicialização.
“O melhor caminho é que o governo pudesse recuar nessa decisão. E se isso não ocorrer, acho que temos que trabalhar para que a gente possa ter voto aqui ou para que algum partido, ou a própria Câmara, em algum momento decida ir ao Supremo Tribunal Federal para sustar essa portaria, que é claramente ilegal e inconstitucional”, afirmou.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) também têm conversado com líderes governistas para ampliar o apoio ao PDL. “Do meu ponto de vista [a portaria] é completamente ilegal, absurda. Não é o Ministério da Saúde que pode tomar uma decisão como tomou. Na verdade, uma interferência em uma lei”, disse Rodrigo Maia.
Sobre acionar o STF, o presidente da Câmara disse que essa possibilidade é uma posição pessoal e defendida se não houver outro caminho.
“A gente não deve criar nenhum tipo de decreto ou de portaria que constranja a decisão da mulher. Quer dizer, é uma portaria completamente ilegal e inconstitucional que não respeita as normas legais do nosso País. É a minha posição pessoal, por isso eu não posso dizer qual vai ser a decisão. Mas eu acho que o melhor caminho é que o governo pudesse recuar e discutir com o Congresso, debater o assunto. Agora, dessa forma, acho até que é uma interferência naquilo que cabe a um outro poder”, disse.
A posição do movimento de mulheres
Em nota pública divulgada nesta segunda-feira (14), diversas entidades reunidas na Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto reforçaram o caráter ilegal da portaria e pediram a imediata suspensão da norma, “que introduz a tortura a mulheres e meninas usuárias do SUS, ao incluir vários processos dolorosos e violentadores para acesso ao aborto legal”.
O texto lembra que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 196, afirma que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dos riscos de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Segundo a frente, ao condicionar a assistência em saúde à comunicação externa do crime de violência sexual à polícia, independentemente da vontade da vítima, o Ministério da Saúde viola a autonomia das mulheres, “colocando-as em situação de suspeita e profissionais da equipe de saúde no lugar de policiais ou investigadores”.
“Com isso, a referida portaria, também afronta a Lei 10.778/2003, que determina o dever sigilo no atendimento a qualquer usuária ou usuário do SUS”, destaca a nota. “A notificação compulsória para casos de violência já existe e tem como objetivo subsidiar políticas públicas de prevenção e não dar início a um processo penal”, ressalta.
Desde 1940, o Código Penal não considera crime o aborto em caso de estupro ou de risco à vida da gestante. Decisão do STF de 2012 ampliou esse direito para casos em que o feto é anencéfalo.
Nos casos de violência sexual, de acordo com a previsão legal, não é necessário que a vítima prove a agressão por meio de um boletim de ocorrência, por exemplo. Basta procurar o serviço de saúde. Na prática, contudo, muitas mulheres e meninas nessa situação já tinham o direito negado. A portaria assinada por Pazuello é vista como mais uma barreira para acessar esse serviço de saúde.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, em 2018 foram contabilizados 66.041 registros policiais de estupro e apenas 7,5% das vítimas notificam a polícia. Segundo a pesquisa, 82% das vítimas eram mulheres e 54% delas tinham até 13 anos de idade. Isso significa que a cada hora, 4 meninas são estupradas.
Já em relação aos casos de aborto legal, em média, 6 meninas de 10 a 14 anos realizam o procedimento diariamente no país. Nessa faixa etária, são mais de 20 crianças e adolescentes que são mães todos os anos. A conjunção carnal com menor de 14 anos é considerada crime de estupro de vulnerável, ainda que haja consentimento.
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