Entre medicalização e tecnologias, a voz das mulheres
Por: Ana Cristina Pimentel*
A transferência para a jurisdição médica de temas relacionados a problemas cotidianos ou condições habituais é bastante antigo, mas tem se mostrado cada vez mais relevantes na atualidade. Chamamos esse processo de medicalização social. Fato é que a abordagem médica de diversos aspectos tem proporcionado avanços e melhorias de condições de vida e ampliado as possibilidades de existência.
De toda forma, tal processo não é linear. Em outro sentido, podemos presenciar a construção de novos mercados médicos pressionando no sentido de ampliar diagnósticos e prescrições médicas, inclusive, de situações bastante comuns. Surge um novo conceito chamado “melhoramento”, que não é saúde, que não é doença, mas é uma forma melhor de se viver. Assim, indústrias farmacêuticas, provedores, cientistas têm investido na construção de demandas por consumo de soluções médicas para questões cotidianas. Diversos exemplos podem ser citados, apresentarei um bastante atual que, pela sua concretude, pode nos ajudar a refletir sobre algumas questões.
Vocês já devem conhecer o site “viva sem menstruar”. Sem publicizar vínculo direto com qualquer indústria farmacêutica ou empresa financiadora, a página reveste-se de caráter informativo para vincular suas ideias, podemos dizer, bastante controversas. Elencarei algumas, porém, este também é um convite para levantarmos outras e analisar elementos em torno desse processo de medicalização, neste caso, especificamente do corpo feminino.
O site faz toda sua representação semiótica em torno da construção da menstruação como necessariamente negativa e relacionada a diversos sintomas negativos. Mais especificamente, a menstruação é a própria representação do grande problema feminino contemporâneo. Uma estratégia argumentativa, já que, para um problema, existe uma solução. No mesmo passo, relacionando-a a diversos sintomas negativos, constrói-se a ideia de que os problemas femininos são de origem do e no próprio corpo feminino, vinculando-se, portanto, a um processo antiguíssimo de patologização do corpo feminino.
Portanto, a menstruação é o empecilho da mulher viver livremente a vida moderna. Para tanto, constrói a tese de que o “natural” para as mulheres é viver sem menstruar. As mulheres na antiguidade viviam grávidas, portanto, não sentiam tantos efeitos da menstruação. Por fim, relacionada a menstruação como potencial pré-dispositora a doenças, graves. Com a vida moderna, para se evitar tais efeitos, a solução é “não menstruar”. Em cima de uma defesa dos direitos da mulher, a não-menstruação figura enquanto o mais atual direito.
Vale ressaltar que este site é o correlato comercial de uma tese acadêmica, polêmica, não consensual, mas bastante debatida atualmente. Portanto, não se trata apenas de uma campanha publicitária de uma indústria farmacêutica, mas uma teoria que tem se tornado bastante difundida nos consultórios ginecológicos, congressos acadêmicos e nas revistas e sites focados no público feminino.
Retornando ao site, a habilidade para construir a estratégia argumentativa está na postura ao mesmo tempo cúmplice/solidária e, obviamente, na correlação imediata, a apresentação da solução, o “direito”. Claro, o problema é criado, pois já existe a solução e, nesse caso, uma solução mais decisiva. Afinal, se a menstruação – ou o excesso de menstruações como é apresentado – é a origem dos problemas contemporâneos femininos, eliminá-la definitivamente será “cortar o mal pela raiz”.
Claro, “menstruação”, “natural” e “direito” são conceitos construídos. As dicotomias em torno destes temas são apenas argumentativas, na medida que servem aos respectivos propósitos. Afinal, não podemos dizer que o ideal é o “natural” se o próprio “natural” é necessariamente uma construção.
Nesse sentido, não existe tecnologia, nem natureza em si, precisamos reforçar que as mulheres existem e é a partir delas mesmas, a partir dos nossos corpos. A tecnologia não fala por si, nós falamos. Do ponto de vista feminista, é necessário revelarmos as relações entre mercado, medicina e publicidade, onde as tecnologias são acionadas com finalidades de ampliação do consumo e normatização da vida das mulheres. Mas, é necessário ressaltar que esta não é a única possibilidade. Tanto uma abordagem tecnofílica, quanto tecnofóbica são insuficientes para a discussão da ampliação da autonomia das mulheres. A visão dicotômica tem fortalecido a apropriação do corpo feminino para finalidades outras, inclusive, produzindo doenças. Na nossa opinião, o corpo feminino é quem fala, e não é um corpo naturalmente doente, ao contrário, é um corpo que produz prazer e é a partir desse lugar que pretendemos discutir as tecnologias. Não o faremos a partir dos silêncios e adoecimentos que nos são impostos.
Por fim, outra questão relacionada a este site que precisa ser destacada é a necessidade de fortalecer uma agenda pública em torno da defesa da regulamentação dessas campanhas publicitárias, advertindo sobre seus efeitos.
*Ana Cristina Pimentel é mestranda de saúde coletiva e militante da Marcha Mundial das Mulheres.
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