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domingo, 16 de março de 2014

Entre o cuidado com a casa e as ambições profissionais


Andrea Vialli, para o Mercado Ético

Olhar para as antigas fotos dos álbuns de família revela muito sobre as mudanças sociais e econômicas que o Brasil vem vivenciando ao longo do último século. As famílias grandes, de prole numerosa e onde sogros, sogras, avôs e avós coabitavam sob o mesmo teto se tornaram praticamente uma lembrança de tempos idos. Mais enxuta, a família que se constituiu a partir da década de 1980 no país reúne o casal, um número menor de filhos e quiçá um ou dois animais de estimação. E mesmo esse modelo de família nuclear está se transformando em uma velocidade ímpar, cedendo lugar a novos arranjos.

A taxa de fecundidade da mulher brasileira vem caindo degrau por degrau nas últimas décadas, e esse é um dos motivos que explicam as mudanças na estrutura contemporânea da família. Em 1950, a brasileira tinha em média 6,2 filhos, patamar que se manteve na década seguinte. Em 1970, a taxa de fecundidade passou a 5,7 filhos por mulher e foi se reduzindo nos anos 1980 (4,3 filhos), 1990 (2,8), 2000 (2,3) até chegar ao patamar atual de 1,9 filhos por mulher, considerado abaixo da taxa de reposição da população. Se mantido esse patamar, a população brasileira vai parar de crescer por volta de 2040.

A família brasileira está mudando, e a grande responsável por essa transformação é a mulher. De acordo com o estudo Tendências Demográficas Mostradas pela Pnad 2011, realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2011, há três revoluções em curso que explicam as mudanças demográficas no país. Há uma revolução contraceptiva (as mulheres desvencilharam a sexualidade da reprodução, resguardadas de procriar pelos métodos anticoncepcionais); uma revolução sexual (o exercício da sexualidade não acontece apenas no casamento) e uma revolução nos papéis tradicionais, onde o homem costumava ser o provedor da família e a mulher, a cuidadora. A mulher brasileira assume a responsabilidade de prover sustento à família, ao mesmo tempo em que aumenta sua presença nas escolas e universidades e busca a realização profissional na carreira, diversificando suas possibilidades.

A paulistana Mônica Nóbrega, casada e mãe de Bernardo, de 3 anos, jamais cogitou parar de trabalhar quando soube que seria mãe. Apesar da rotina corrida – além de trabalhar oito horas diárias como jornalista, ela também cursa uma segunda faculdade, de Geografia - a carreira é uma prioridade para Mônica. "Meu trabalho não é secundário, não é uma ‘ajuda’, é a exata metade do que sustenta nossa casa", afirma Mônica. "Além disso, eu trabalho porque gosto, porque me realizo com o que faço e porque não tenho a menor vontade de ficar só cuidando da casa", diz ela. Além da total divisão do orçamento, as tarefas domésticas também são partilhadas de forma igualitária entre Mônica, o marido e até o pequeno Bernardo, que contribui com algumas tarefas, como guardar os brinquedos depois das brincadeiras. E o que deixa a jornalista mais incrédula é o ranço machista que ainda permeia esse tipo de discussão. "Quando um casal descobre que terá um filho, é sempre o trabalho da mulher que é questionado, nunca o do homem. Talvez estejamos em um momento de transição, mas esse machismo ainda é muito presente, sobretudo nos países latinos", afirma.

Assim como no caso de Mônica, a importância dos rendimentos femininos para o orçamento das famílias brasileiras está longe de ter o caráter de "ajuda" ou simples complemento. Essa contribuição passou de 30,1% em 1992 para 41,5% em 2011. E hoje nada menos que 37,3% das famílias são chefiadas por mulheres, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – em 2000, elas chefiavam 22,2% das casas. Os dados, que fazem parte do Censo 2010, mostram ainda que as mulheres têm chefiado mais famílias mesmo quando possuem marido: nesse caso específico, houve um aumento percentual de 19,5% para 46,4% entre 2000 e 2010.


Sociedade do conhecimento

"A função da família como reprodutora e da mulher como parideira perdeu espaço justamente porque as mulheres querem assumir outros papéis, buscam outras formas de realização além do cuidado com a casa e os filhos", afirma o economista Ladislau Dowbor, especialista em economia política e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). "E nessa nova economia que vem se desenhando, centrada no conhecimento e na colaboração, as mulheres têm imensos potenciais criativos", ressalta Dowbor. Para ele, a sociedade do conhecimento vai demandar cada vez mais relações de trabalho e jornadas mais flexíveis (sem a prisão do modelo de se trabalhar oito horas diárias e passar outras tantas no deslocamento casa-trabalho) – o que deve gerar benefícios extras às mulheres.

Além da redução no número de filhos, as transformações na família brasileira não param por aí: os arranjos começam a ficar mais diversificados. O modelo de casais com filhos ainda predomina no Brasil, mas vem caindo nas estatísticas: em 1992, representava 62,8% dos arranjos familiares; em 2011, caiu para 48,3% das famílias. No mesmo período, cresceu o número de casais sem filhos (de 11,7% em 1992 para 17,4% em 2011), de mulheres que vivem sozinhas (de 6,2% em 1992 para 9,5% em 2011) e de mães que vivem com os filhos (12,3% para 15%).

A família ampla, onde se misturavam avôs, tios, primos e irmãos, praticamente desapareceu nas últimas décadas, o que trouxe uma série de mudanças sociais e econômicas. Esse tipo de família, na avaliação de Dowbor, significa uma rede de solidariedade, onde as pessoas economicamente ativas garantiam o sustento daqueles que não produziam, como crianças e idosos. "Foi o capitalismo moderno, centrado no consumismo, que inventou a família economicamente rentável, composta de pai, mãe e um casal de filhos e suas necessidades sob medida: o apartamento, o carro, uma televisão e um computador em cada quarto", diz Dowbor.

Mas se até a família nuclear está entrando em declínio, como mostram os dados do IBGE no Brasil e outras estatísticas internacionais - nos EUA, apenas 26% dos lares contam com pai, mãe e filhos; na Suécia, o arranjo corresponde a 23% das famílias – esse processo vai demandar, num futuro não muito distante, mecanismos sociais de distribuição de renda. "Será preciso suprir o papel que as famílias estão deixando de desempenhar. Do ponto de vista das políticas públicas, será preciso uma redistribuição de renda, não só dos ricos para os pobres, mas entre gerações, por meio da expansão das políticas sociais", afirma o professor. E não é só isso: a mudança no perfil das famílias vai demandar ainda uma reconfiguração da qualidade de vida nas cidades, de modo a resgatar o sentido de comunidade dos bairros, onde as pessoas cuidam umas das outras.

Incentivo à procriação.

Nos países ricos, há um esforço de Estado para que as famílias se tornem um pouco mais numerosas. Em muitas dessas nações, a taxa de fecundidade está abaixo da chamada taxa de reposição da população, que é de 2,1 filhos por mulher. Na Europa, vários países adotaram políticas de incentivo à natalidade, uns com sucesso, outros não.

É o caso da Alemanha. Com uma taxa de 1,3 filhos por mulher, uma das menores da Europa, o país gasta em torno de 200 bilhões de euros todos os anos em políticas de apoio à família e de incentivo à natalidade. O governo oferece um auxílio financeiro mensal para cada criança até que complete 18 anos; escola gratuita, saúde e medicamentos; licença maternidade de até três anos e salário maternidade, entre outros benefícios. Não estão surtindo efeito. Em 2000, a população jovem, com menos de 18 anos, era formada por 15 milhões de pessoas. Em 2010, esse contingente caiu para 13 milhões.

Na França, ao contrário, os incentivos à procriação oferecidos ao longo da última década (como longas licenças maternidade e cuidados gratuitos a crianças menores de três anos) vêm surtindo efeito: a taxa de fecundidade da mulher francesa atualmente é 2,03 filhos por mulher, uma das mais altas do continente europeu. A partir de 2006, uma lei instituiu o pagamento do equivalente a R$ 2.000 mensais para as mulheres que se aventuram a ter o terceiro filho.

A grande dificuldade das políticas de incentivo à natalidade é justamente convencer as mulheres de que ter mais de um filho é um bom negócio – especialmente quando elas estão engajadas em prosperar em suas carreiras. Que o digam as sul-coreanas. O país asiático ostenta uma das menores taxas de fecundidade do mundo, de apenas 1,2 filho por mulher, e esse quadro é resultado da revolução educacional que o país deflagrou a partir da década de 1960. Na época, as mulheres em idade reprodutiva praticamente não iam à escola. O salto dado de lá pra cá foi vertiginoso, e hoje as sul-coreanas estão entre as mais educadas do mundo. E isso se reflete nos seus relacionamentos: elas têm se recusado a se unir a homens com nível educacional diferente do delas e estão recusando o tradicional papel de donas de casa. "Se a taxa de fecundidade da Coreia se mantiver nesse nível por 200 anos, a população do país praticamente desaparecerá", diz José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE (Ence/IBGE).

A sombra das mudanças climáticas

Já no Brasil, a queda no número de filhos por mulher está longe de ser um problema sobre o tamanho da população. As projeções apontam que a população vai continuar crescendo até 2030. Além disso, há atualmente um número expressivo de jovens, cerca de 10 milhões que não estudam nem trabalham – a chamada geração nem-nem, o que derruba o argumento de falta de mão de obra no futuro. "Temos um potencial enorme de pessoas que poderiam estar economicamente ativos e não estão. Então, não faz sentido estimular a fecundidade com base no argumento de que poderá faltar mão de obra, pois é notório que o país não está aproveitando todo o seu potencial", diz Alves. Além disso, afirma o demógrafo, é preciso levar em consideração as questões ambientais. "Veremos uma crise energética e ambiental nos próximos anos, pois estamos nos aproximando do pico da produção de petróleo, prevista para 2020, e os efeitos das mudanças climáticas já podem ser sentidos no Brasil. Esse verão é a prova disso, com escassez de água em várias regiões e reflexos na produção de energia elétrica", afirma.

A questão de quantos humanos o planeta poderá comportar num cenário de mudanças climáticas já tem tomado a atenção de demógrafos renomados. É o caso de um estudo dos austríacos Wolfgang Lutz e Erich Striessnig, que acaba de ser publicado na edição de fevereiro de 2014 da revista Demographic Research. Na pesquisa, os demógrafos apontam que, num cenário de recursos naturais mais escassos e com populações ameaçadas pelos efeitos das mudanças climáticas, a taxa de fecundidade ideal fica em torno de 1,5 a 1,8 filhos por mulher, bem abaixo da taxa de reposição. "Nossos estudos sugerem que essa taxa seria a mais adequada para o planeta e resultará, ao mesmo tempo, em um bem-estar maior para a população global, à medida que investirmos os recursos na educação das nossas cada vez menos numerosas crianças", escreveram os autores, dando um basta na máxima cristã do "crescei e multiplicai-vos".

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