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domingo, 16 de março de 2014

O que há entre as mulheres e a utopia da sustentabilidade

Ana Carolina Amaral, para o Mercado Ético

"Você não viu uma mulher criando uma guerra para que milhões de mulheres se matem." Se você duvida sobre a força das mulheres em fazer a diferença, esse é o só o começo da conversa com a psicóloga Del Mar Franco.

A ideia de que os valores femininos como o cuidado e a solidariedade, além do compartilhamento de vida e dos bens da natureza, devem guiar o caminho para um mundo sustentável é também apenas a introdução da obra "Feminino e Masculino", livro que uma das pioneiras do movimento feminista no Brasil, Rose Marie Muraro, escreveu em parceria com o filósofo e teólogo Leonardo Boff. "Ou nos parimos como outra espécie humana, com outra consciência, ou pereceremos", os autores propõem já na primeira folheada.

O que vem depois? É o que está embaixo do tapete do qual toda a sociedade contemporânea se estabeleceu.

Por que elas são diferentes 

Del Mar Franco, psicóloga e diretora do Instituto Evoluir, conta que sentiu na pele o desequilíbrio interior entre o seu masculino e o feminino, o que fez com que se tornasse uma estudiosa do tema. "Sou minha cobaia e desenvolvi muito a minha energia masculina para empreender, criar o instituto, envolvendo 55 profissionais e muitas famílias. Afinal, não é com o feminino que você faz isso: é com foco e metas", ela define. "A maternidade veio para equilibrar. Ela é o auge do feminino e, a partir dela, passei a ter consciência de quando usar o quê. Para ser sustentável, não adianta só um lado: é preciso desenvolver os dois."

Segundo ela, as mulheres tem as capacidades do masculino e feminino dentro de se mesmas e podem desenvolver ambas, em todas as suas possibilidades. O que faz mal, explica, é abandonar uma delas.

Cada pessoa é influenciada por diferentes fatores para formar seus valores e modo de atuação no mundo. Conforme Del Mar, influenciam para isso desde a questão genética até a cultura, a economia e o ambiente. "O que se pode garantir são dados do pesquisador David Deida: 80% das mulheres no mundo têm essência feminina, 10% são invertidas e outras 10% são neutras", ela lista.

Biologia e História também têm suas parcelas de culpa na formação dos sexos. Embora todos tenhamos hormônios femininos e masculinos, o homem produz mais androgênio e a mulher, mais estrogênio. Para Rose Muraro e Leonardo Boff, "essa base biológica sustenta a base ontológica do ser: ele é sexuado em todas as suas dimensões corporais, mentais e espirituais".

Já o sociólogo e professor da Universidade Federal do ABC, Arilson Favareto, considera que a "a divisão do trabalho foi determinante na construção do gênero e, em grande medida, a atual participação feminina na sociedade é inseparável das posições que foram conquistando nessa divisão".

Favareto considera que essa construção foi social e biológica, simultaneamente e que a seleção natural ajudou. Isso porque a história começa no tempo das cavernas, de quando herdamos uma divisão de tarefas ainda atual: o homem saía para caçar enquanto a mulher cuidava da prole. Resultado? Ele desenvolveu um olhar focado e um senso de competição típicos da guerra pela sobrevivência na selva. Já ela precisava de uma visão ampla, que desse conta de administrar a fogueira, a entrada da caverna e os filhos, além de um senso de cooperação próprio de quem cuida de um lar: era preciso estar atenta ao outro, não apenas a si mesma.

Reflexos

Para além da desigualdade de gênero, a perpetuação dessa divisão do trabalho também apartou a sociedade das contribuições femininas. Essa relação é tão proporcional que, desde a década de 70, o movimento ecofeminista vê os desequilíbrios social e ambiental como reflexo da disparidade entre os gêneros. Por princípio, as várias correntes do ecofeminismo concordam que os valores femininos coincidem com as necessidades do planeta no rumo a um desenvolvimento mais sustentável: na era da globalização, seria urgente a visão do planeta como um "lar", em que os recursos naturais fossem "cuidados" em vez de "explorados". E que a visão focada do masculino pudesse ser complementada pela "lente ampla" feminina, capaz de ligar os pontos e gerir a crise.

O ecofeminismo não se dedica a culpar os homens pela insustentabilidade da nossa história recente, mas de mobilizar as mulheres em torno das causas ambientais. Foi assim um dos fatos pioneiros do movimento: no início dos anos 70, milhares de mulheres indianas que dependiam da floresta para sua subsistência enfrentaram madeireiras e conseguiram impedir o desmatamento indiscriminado. E fizeram isso inspiradas na resistência pacífica de Gandhi: abraçando as árvores. Foi o Movimento Chipko e tinha a física e ecofeminista Vandana Shiva entre suas ativistas.

Para além das ecofeministas, vários pesquisadores acadêmicos vêm sinalizando a necessidade da sociedade incorporar mais valores do feminino como saída para a crise ambiental e civilizatória que o século XXI anuncia. O educador indiano Jiddu Krishnamurti, por exemplo, convoca uma inteligência sensível e ligada à intuição, característica própria do feminino. "O intelecto não resolverá nossos problemas; ele é limitado, porque é resultado do nosso condicionamento. Mas a sensibilidade não é limitada", descreve o educador indiano, associando esse saber sensitivo à possibilidade de se agir em prol do planeta. "Esta terra é inteirinha nossa, isso é um fato. Mas infelizmente nós a dividimos por nosso provincianismo. Esse é o jogo político que está sendo jogado mundo afora, e assim esquecemos de viver felizmente nesta terra que é nossa, de fazermos alguma coisa por ela."

Já para Bernardo Toro, filósofo colombiano, há outro atributo que deve ser o paradigma central de uma nova categoria de civilização: o cuidado. Segundo ele, em tempos de crise ambiental, a ética do cuidado deve assumir uma nova função: prevenir danos futuros e reparar e regenerar os danos passados. "Ou aprendemos a cuidar ou perecemos todos", anuncia. O detalhe é que esse valor ficou restrito ao espaço privado, gerido pela mulher, enquanto os valores competitivos da selva seguiram guiando a sociedade afora.

Hoje, 41% dos brasileiros acham que o mundo seria melhor se a maioria dos políticos fosse formada por mulheres, de acordo com a pesquisa Barômetro Global de Otimismo, feita pelo IBOPE Inteligência em parceria com a Worldwide Independent Network of Market Research (WIN), realizada em 65 países.

Na média global, 34% acham que uma maioria de mulheres na política faria um mundo melhor, 41% acreditam que seria igual e 17% pensam que seria pior, praticamente o dobro do registrado no Brasil.

"Mas quando você vê a Dilma Rousseff (Brasil) ou a Angela Merkel (Alemanha), fica difícil acreditar que as mulheres no poder fazem a diferença, porque elas precisam assumir os códigos masculinos para se legitimar", alerta Favareto. "Isso não é de todo ruim, porque a presença delas já desarma o preconceito mais forte, mostrando que uma mulher pode conduzir o governo por quatro anos. O balanço do saldo simbólico é positivo", ele ressalva.

Tudo dominado 

Para Favareto, o avanço da mulher no mercado de trabalho está longe de resolver a desigualdade de gênero e, muito menos, o equilíbrio entre as visões masculina e feminina. "A sociedade competitiva é produto de milhares de anos na História na qual o homem estruturou todas as dimensões da vida social: do ato sexual, da economia, até a religião. O cristianismo, grande ideologia anterior ao capitalismo, é fundamentalmente machista", ele arremata.

Estudioso de Pierre Bourdieu, Favareto cita a obra "A dominação masculina", em que o francês mostra um componente de adesão inconsciente, mesmo por parte de quem tem consciência dessa dominação. Isso porque os mecanismos que legitimam a dominação estão dispersos em todas as formas da sociedade. "Inconscientemente, aderimos a certas formas de classificação do masculino e feminino que reforçam os estigmas".

Para o sociólogo, a naturalização das desigualdades é a principal arma da dominação, pois "acentua certas diferenças e obscurece certas semelhanças", conforme Bourdieu. Assim, a construção social dos corpos masculino e feminino força a naturalização das diferenças e, portanto, das desigualdades. De modo que não seja necessário nenhum esforço para justificar a dominação do masculino.

Para sustentar a dominação, o desenho e a descrição do órgão sexual feminino foi "editado" diversas vezes nos registros médicos e científicos ao longo da História, conforme conta o documentário "Clitóris, prazer proibido", de Michèle Dominici. A associação entre sexualidade e poder não é sutil. "Geralmente, presumimos que as garotas têm poder. Esse poder feminino é totalmente frágil. Sob ele, ainda há o mesmo nível de fraqueza e falta de controle sobre suas decisões e necessidades. Devemos recuperar o feminino na vida das meninas e a noção de que elas têm o direito de escolher, de não terem que ser como esperam que elas sejam, de colocar o próprio prazer no centro de suas vidas, como põem a responsabilidade para com os outros", declara no filme o pesquisador Jo Adams, do Centro de Saúde Sexual e Combate ao HIV de Sheffield, na Inglaterra.

No longa-metragem também depõe a primeira urologista a explorar a anatomia do clitóris pela ciência moderna. "Dizemos a uma menina que ela não tem pênis, raramente dizemos que tem uma vagina, mas não dizemos o que há lá. Reforçando a ideia freudiana de que as meninas têm inveja", conta Hellen O’Connell, da Universidade de Melbourne.

Nem sempre foi assim

O "troco" à sugestão freudiana de que as meninas teriam inveja dos meninos por eles possuírem o pênis é dado por Rose Muraro e Leonardo Boff, em "Feminino e Masculino". Eles voltam um pouco mais a fita. Antes das sociedades de caça (desenvolvidas somente a partir de um período de escassez na natureza), as primeiras culturas conhecidas eram de coleta: sem exigir força física, elas eram "matricêntricas". As mulheres administravam as comunidades e os filhos eram cuidados por todos. Não se sabia qual o papel do homem na geração da prole e a capacidade de gestação era associada à divindade. Marginalizados, eram eles que invejavam o útero, o ventre feminino, pela sua capacidade de gerar vidas.

A antropóloga Margaret Mead contribuiu, e muito, para "desnaturalizar" as desigualdades entre os gêneros. Em 1935, depois de estudar três tribos tradicionais da Nova Guiné, ela descreveu culturas em que as divisões do trabalho entre os sexos eram completamente diferentes e até o avesso do que conhecemos: em uma delas, eram os homens que se importavam com enfeites e os cuidados com a beleza, enquanto as mulheres eram práticas e trabalhavam com a força física.

"O poder gerador das mulheres era a origem do seu poder econômico [nas comunidades primitivas]", afirma Rose Muraro. Para Favareto, isso seria uma mostra de que "a dominação é intrínseca à vida em sociedade". Assim, a dominação feminina também não responderia à sustentabilidade. "A harmonia com a natureza, nesses exemplos, acontecia muito mais pelo fato de serem grupos tradicionais, como os indígenas no Brasil", ele conclui.

A feminista Carol J Adams aponta uma raiz comum para desigualdade e insustentabilidade. "O homem, especialmente o branco, explorou tudo que enxergou como diferente dele: a mulher, o negro, os animais e a natureza", defende. Polêmica, radical e assertiva, ela associa o carnivorismo, "inventado" pelos homens com o surgimento da caça, à exploração da mulher, cujo corpo é visto na sociedade patriarcal como um pedaço de carne. Escreveu em 1990 "A política sexual da carne", obra que faz barulho até hoje e que, no ano passado, foi traduzida para o português. "Assim como a carne escura vale menos no açougue, as negras ganham menos até como prostitutas ou no mercado pornográfico. E sempre tem um quesito animalesco pra chamar a atenção", alfineta.

Para ressignificar essa relação no plano sexual, o psiquiatra Leonore Tiefer recomenda, no documentário "Clitóris, o prazer proibido", o abandono da ideia de que sexo é algo que acontece apenas no quarto. Segundo ele, o sexo acontece no relacionamento, que ocorre 24 horas por dia, 7 dias por semana. "Sabe como o prazer funciona para mulher? É quando o homem leva o lixo para fora, dá atenção aos filhos ou lembra o aniversário da sogra. Isso cria uma vivência dos papeis sexuais em que ela pode se sentir bem cuidada, segura, ao sentir que aquele homem realmente está interessado nela como pessoa."

O caminho para uma sociedade sem violência - física ou simbólica - passaria, segundo Carol J. Adams, pela adesão de cada vez mais pessoas ao vegetarianismo. "Você pode perceber que as mulheres vegetarianas são especialmente sensíveis ao modo de produção de ovos e leite, porque é uma questão feminista. Mulheres, negros, gays, índios e todas as minorias não deveriam comer carne, porque assim deixariam de alimentar o sistema que os oprime", ela arremata.

Carol vê avanços nessa mudança de hábitos e também enxerga vantagem no fato de o vegetarianismo ser uma escolha individual. "Não precisamos esperar as políticas públicas, essa é uma coisa que podemos mudar por nós mesmos", argumenta.

A favor da sua tese está a versão da História contada por Jared Diamonds. O biólogo evolucionário mostra que os motivos que nos levaram ao carnivorismo não seriam totalmente biológicos e, portanto, menos necessários hoje em dia. Segundo suas pesquisas, as sociedades carnívoras não prosperaram apenas porque tinham mais provimento de proteína e força física, oferecidas pela carne.

Diamonds defende que a exposição de longo prazo aos germes animais teria contribuído para desenvolver anticorpos e melhorar saúde humana. Além disso, a associação da agricultura com a criação de animais aumentava a produtividade, porque o esterco repunha a fertilidade do solo. Isso teria permitido a fixação dos grupos humanos. Com mais produtividade, ganhamos também mais tempo livre para desenvolver, por exemplo, a escrita.

Se não precisamos mais consumir tanta carne, porque utilizamos menos força física em nossas atividades, esse é também um motivo que reforça a total abertura à participação feminina na sociedade. "Por conta dos fatores econômicos e culturais, nunca tivemos tantas boas condições de reequlibrar isso", aposta Arilson Favareto.

Daqui pra frente

"A equidade de gênero é, em si, o objetivo do milênio. Não é possível pensar em algum desenvolvimento sem ela", apontua Loreley Garcia, socióloga que apoia os Objetivos do Milênio da ONU, mas que, ainda assim, carrega sua própria lista do que será preciso fazer para alcançar essa meta.

"Primeiro temos que reduzir hiato entre os gêneros e gerar oportunidades para dar vazão ao talento das mulheres e não só aos "empreguinhos-porcaria" que nos permitem dizer que 40% da mão de obra no Brasil é feminina", dispara Loreley. "Danem-se os números, ninguém me convence de que esse país é desenvolvido", provoca.

Para que elas cheguem às lideranças, é preciso provocar um treino que não se tem ao longo da vida. "Temos que quebrar essa cultura que não nos serve e garantir espaço de decisão de mulheres, capacitando já as meninas para ocuparem o espaço público", pede a socióloga.

Loreley conta que a FAO, agência de agricultura e alimentação da ONU, exige transversalidade de gênero nos seus convênios. "Mas os ministérios do governo brasileiro fazem só 'para inglês ver'", acusa. E nem se pode dizer que a pauta é uma novidade. Ela lembra que na fundação do Partido Verde alemão, há quase 30 anos, havia a seguinte prática: se um homem fosse ao microfone, o próximo deveria ser uma mulher, obrigatoriamente. "No começo elas acham que não têm o que falar, porque não estão acostumadas com esse espaço. É treino", garante.

A receita para a equidade proposta por Loreley é concluída com a diminuição da desigualdade de gênero entre as gerações. A socióloga observa um fenômeno em que mulheres mais velhas se libertam e passam a ocupar espaços políticos às custas das mais jovens: filhas e netas que ficam encarregadas de cuidar das tarefas domésticas e se apartam da educação e do empoderamento. "As jovens não têm poder nenhum: acreditam que são um corpinho bonitinho, meras bonequinhas para agradar os homens. É urgente envolver essas meninas nas questões das suas comunidades, para que desenvolvam autorrespeito e confiança", ela dita.

"Já passamos pela fase de dependência, em que o homem dependia afetivamente da mulher e ela, financeiramente, do homem. Com a entrada da mulher no mercado de trabalho, experimentamos uma fase de independência", classifica a psicóloga Del Mar, propondo como próxima fase a interdependência. "Da mesma forma que o homem precisa dar espaço para a sensibilidade e o acolhimento, a mulher deve sim desenvolver seu lado de meta e foco, sem deixar de lado o brilho, leveza e compaixão", conclui. Para ela, é por aí que poderemos completar de valores femininos qualquer ambiente.

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