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domingo, 16 de março de 2014

Opinião: A puta, a louca e a bruxa


Mariana Cogswell*

"Cabem ao feminino suavidade e doçura, mas não cabem intensidade e agudez; cabem acolhimento e sabedoria, mas não cabem firmeza e solitude. Cabem cuidado e cura, mas – imagine só... - não cabem instabilidade e complexidade." Quem será que foi o editor conceitual que nos definiu nesses contornos, insuficientes para expressar a nossa vastidão?

Se o feminino é o significante essencial da identidade de uma mulher, quem é que modera o drama entre a casca que não nos cabe e a vida possível de ser vivida? Em nome de amor e aceitação, a mulher amputada "encolhe para caber".

Nesse movimento, surgem cenários em que o feminino e a mulher se desencontram: há aquelas que assumem indevidamente o masculino, desonrando o seu feminino e esvaziando o significante do que é ser mulher; há também a proposta de um "desempate por cima", que prega uma idealização de união entre gêneros, ignorando (ou temendo olhar para) distinções, comportamentos, biologia e cultura.

Na falta de melhores recursos relacionais, apelamos para o "todos somos um", como se fosse uma panaceia mágica para um mundo difícil, de diferentes vivendo em conflito. É uma ilusão do tipo "se eu parar de olhar, não existirá mais" - como a criança que acredita ficar invisível tampando os próprios olhos.

É também a ilusão de que as diferenças impedem a igualdade. Na verdade, essa comunhão entre os seres só acontece quando nos reconhecemos e nos reencontramos nas diferenças. Assim estamos prontos para o diálogo, que só pode se dar entre iguais. E vamos aqui à definição dialógica de igualdade: é a legitimação da diferença como algo incondicionalmente valioso. Não existe a medida de melhor ou pior, certo ou errado, bom ou mau na diferença. A diferença, mesmo que difícil de ser processada, é fonte de aprendizado: uma contínua possibilidade de ampliação de mundos. E nessa condição, cada entidade dialogadora está inteira, apropriada de si, disponível a dar-se a conhecer, em um ambiente de vulnerabilidade e confiança mútua.

Portanto, para que haja diálogo entre gêneros, é fundamental que as partes estejam inteiras em si. E é aí que a amputação aparece. Nós mulheres vivemos uma relação de fragmentação e dor com nosso feminino, que é, nesta vida, nosso mais profundo significante. Portanto, não estamos prontas a dialogar sem intermediários externos, porque dentro - no íntimo, e não na casca social - estamos amputadas de nós mesmas: culpadas, confusas, tristes. O Rivotril que o diga...

Os cenários da amputação revelam uma fuga de se aprofundar no feminino. Seja pela crença de que é um buraco sem fundo, intangível, intransponível, impossível e portanto improdutivo. Seja pela ideia de que discutir isso é coisa de feminista, de modê, desnecessário diante de problemas tão mais urgentes.

No entanto, é justamente em decorrência dos problemas urgentes que essa discussão se torna fundamental. Basta lembrar que as mulheres são a parcela maior que habita o planeta hoje e que são elas as tecelãs e nutrizes das relações humanas. Ou seja, mulheres são disseminadoras em série da qualidade que as faz e da qualidade que as desfaz também. Reconhecer-se nesse lugar de portadora do feminino é o que conecta a mulher com essa potência que a governa e que alimenta o mundo.

Se começássemos a responder o que é ser mulher, seria provável ficarmos na estética e nos conceitos do feminino "bonitinho e fofinho". Esse feminino que se diz necessário para salvar a humanidade e o planeta. Esse que passa um verniz na nossa inteireza e mostra só o que interessa, exaltando como nobre e belo o que aparece e assim, por omissão intencional, deixa a parte que não convém na sombra. Na ignorância ignorada. Negada e negativada na cultura. Queremos nutrir relações humanas ignorantes de si? O que podemos esperar da humanidade a partir de matrizes desentendidas?

Na sombra da nossa construção cultural, marcam presença três arquétipos femininos: a puta, a louca e a bruxa. Quando se encontrar em uma dessas sombras, a mulher sentirá culpa, será excluída afetivamente, julgada e punida - principalmente, por outras mulheres.

É preciso trazer à tona a parte amputada de nós mesmas: para onde não olhamos, porque não é apropriado. É feio, então fica no submundo. E de lá, nos governa como um guia cego. Mas, como toda sombra, libera fios de esclarecimento e vida quando olhada com tempo e real intenção de ouvir as histórias que tem pra revelar.

A puta conta a história da sensualidade censurada.

Quando se diz para uma mulher – e isso é dito por infinitas formas e gestos – "seu corpo é sujo, proibido, fonte de todo pecado, é errado em si, ele sangra, você é instável e temerária por causa dele," ele vira fonte de tristeza e vergonha, por um lado, e de ressentimento e manipulação por outro, pois a vida continuará desejante nele, só que pulsará num lugar de não-esclarecimento, de desconexão com a vida, de identificação apenas com a forma, que é o que sobra.

E a partir desse lugar ignorante da sua inteireza, a mulher também é ensinada que tem um poder, que é o da sedução. E que a partir dele pode submeter e manipular. Acredita que é uma virtude feminina! Não vê o desvio. É esse desvio que cria rivalidade e competição entre mulheres e produz uma commodity a serviço do mercado de consumo masculino: a puta.

A mulher inteira tem uma conexão natural com seu corpo, como um ente que pulsa com a natureza: com os ciclos de vida, com as marés, com os ventos, com o potencial gestador e preservador da vida.

A louca conta a história da negação da escuta do sagrado.

Quando uma mulher está amputada dessa escuta, por ser algo intangível, "bobeira", "cisma", "coisa de mulher" (e "mulher" nesse contexto é depreciativo, por ser muito vago); perde a preciosidade do discernimento que a distingue.

A louca não sabe se pensa o que pensa, se sente o que sente. Duvida. De tudo e de todos. Buscará fora o que não encontra dentro: amor, certeza, segurança, respostas, controle.

Ao ficar apartada da sua própria intuição, perde seu guia e a proteção que veio compartilhar no mundo. Ficará cindida entre o dentro e o fora.

Não tem paz e não dá paz. Agora está à deriva de si mesma. No engano.

Vive na superfície, no concreto, no visível. De vez em quando acontece um momento de sincronicidade e conexão. Ri de si mesma. Acha uma loucura.

Por sagrado, entenda-se tudo aquilo que não se explica, que não é da linguagem racional e linear, que está além do tempo, mas que se apresenta no agora: nas brechas de lucidez radical que nos acontecem de tempos em tempos. São pequenas frestas de orientação, inspiração, conexão, ressonância que nos contam instantaneamente o que está acontecendo e o que pede para acontecer. Contam, no entanto, apenas para quem está apropriada dessa escuta.

Como essa é uma inteligência que vem essencialmente do ato de sentir, é de uma delicadeza e sutileza tal, que desaparece também como um sopro, sem a menor comprovação de que realmente existiu.

A mulher que se autoriza reconhece o único equipamento possível de validar a intuição: o coração grande, onde residem a paz e convicção do instante. Esse coração reconhece a verdade.

A bruxa conta a história do sufocamento das emoções densas.

A mulher amputada foi ensinada a temer o que não controla: a obscuridade apavora e a ideia da morte assombra. Ela fará de tudo para afastar as emoções "más" e essas a acompanharão pela simples lei da atração. A sombra atrai luz e a luz revela o que a sombra obscurecia.

Ao rejeitar seus próprios grotões, suspende o movimento de esclarecer o que está denso e fica ali, cozinhando um caldeirão solitário e perverso, que precisa da orelha, da língua, do fígado, do rim e do coração alheios para se manter apurado. A bruxa se alimenta da vida dos outros por estar esvaziada de qualquer senso de gratidão pela própria. Tenta a todo custo extirpar o mal e cada vez mais só aumenta o tamanho do seu buraco.

Nós mulheres trazemos em nosso DNA o poder da cura e transmutação. Somos alquimistas por natureza. Manejamos energia. Fomos desenhadas para empreender e desemaranhar sombras, esclarecendo o que estava obscurecido. Nossa montanha russa afetiva nos dá repertório e confiança para mergulhar nos meandros mais profundos do ser e restaurar o que pede para ser honrado. Uma mulher inteira, íntegra e autorizada tem uma ligação íntima com ciclos: sabe que não há morte, só mudança. É testemunha da sabedoria ancestral que nos acompanha na jornada continua para dentro e fora do fim e começo.

Livres da culpa e da vergonha do que esteve emaranhado à meia-luz, nós mulheres podemos voltar a nutrir uma relação íntima com as qualidades que nos governam, voltando a ocupar o próprio corpo e sentir a paz de si mesma.

As três figuras têm origem social e alimentam uma à outra. À medida que a puta se desconecta de si mesma, também passa a desacreditar de si. Vira louca. Daí, precisa se esconder nesse desvalor que não encontra legitimação no mundo. Aparece a bruxa.

Podemos continuar amputadas, e desse lugar sermos amputadoras em série. Podemos começar a nos esclarecer e, assim, nos tornarmos esclarecedoras em série. E podemos ainda nos autorizar e, com isso, sermos autorizadoras em série. Como mulheres, matrizes, nutrizes e tecelãs de relações, somos agentes disseminadoras em escala da humanidade. E todos os dias teremos a escolha.

*Mariana Cogswell é estrategista de comunicação com mais de 20 anos de experiência em "leitura" de cenários, pessoas e relações. Formada em propaganda, diálogo e coaching, é sintetizadora, facilitadora, buscadora e esclarecedora de sentido. Trabalhou na DPZ, Ogilvy, McCann, Talent e organizou o TEDxDaLuz. Hoje atua como coach e consultora através da Akashari – Caminhos com Sentido. Estudiosa do feminino, criou em 2010 o círculo de mulheres Gestadoras de Futuro. 


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