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quinta-feira, 19 de junho de 2014

“A luta para empoderar a mulher tem que ser travada”, diz primeira presidente do Superior Tribunal Militar

A ADVOGADA MARIA ELIZABETH ROCHA, QUE ASSUME NESTA SEGUNDA (16) A PRESIDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR (Foto: Divulgação / Arquivo pessoal)
A ADVOGADA MARIA ELIZABETH ROCHA,
QUE ASSUME NESTA SEGUNDA (16) A PRESIDÊNCIA
DO SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR
(Foto: Divulgação / Arquivo pessoal)

16/06/2014 -  por Amauri Arrais

A advogada Maria Elizabeth Rocha comandará o principal tribunal militar do país, do qual também foi a primeira ministra indicada, em 2007. Ela se notabilizou pela defesa de direitos homossexuais e da ascensão de mulheres nas Forças Armadas: "Estabelecer superioridade entre humanos é inaceitável"

Pela primeira vez na história, uma mulher comandará o Superior Tribunal Militar (STM), organismo onde são julgados em última instância os crimes militares. Advogada constitucionalista de orientação liberal, Maria Elizabeth Teixeira Rocha foi também a primeira mulher a fazer parte do tribunal, a mais antiga corte do país, fundada por Dom João VI. O presidente do STM é eleito pelos seus ministros que, por sua vez, são nomeados pelo presidente da República.

“Só posso atribuir essa demora à ausência de sensibilidade dos presidentes anteriores em colocar uma mulher num ambiente tão marcadamente masculino como é o das Forças Armadas. A luta para empoderar as mulheres é real e tem que ser travada. É uma quebra de paradigmas que é até civilizatória”, afirma a ministra, que foi indicada para o tribunal em 2007 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Desde então, ela tem se destacado pela atuação em defesa de minorias e liberdades individuais. Em 2009, foi o voto condutor dos colegas para a inclusão de companheiros do mesmo sexo no plano de saúde dos servidores da Justiça Militar. No ano seguinte, foi voto vencido ao se posicionar a favor de um tenente-coronel que foi reformado por manter uma relação com um subordinado.

“A política que era institucionalizada nos Estados Unidos do “Don’t Ask Don’t Tell” [Não pergunte, não diga] e foi abolida a duras penas pelo presidente Barack Obama ainda prevalece no Brasil de uma forma tácita, não expressa. Mas acho que a sociedade caminha no sentido de mudança”, diz sobre a regra que proibia que homossexuais assumidos fizessem parte das Forças Armadas americanas.

Casada com um general da reserva, a mineira de 54 anos conta não ter escapado de dilemas comuns a qualquer mulher sobre carreira e família. “Escolhi a minha carreira e queria também a maternidade, poder conjugar as duas, mas eu adiei. É algo que me recinto, não ser mãe.”

Formada em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e com pós-doutorado em direito constitucional pela Universidade Clássica de Lisboa, Maria Elizabeth também é professora e fez carreira na Advocacia-Geral da União. Ela foi indicada para completar o mandato do general-de-exército Raymundo Nonato de Cerqueira Filho, que presidiria o STM até 2015, mas se aposentou.

Leia alguns dos principais trechos da entrevista da ministra à Marie Claire.

Marie Claire - A senhora já disse que sua primeira medida nos nove meses que presidirá o Superior Tribunal Militar é abrir os arquivos da ditadura militar? Por quê?
Maria Elizabeth Rocha - Esses processos estão abertos há muito tempo, mas as pessoas desconhecem. Quando o presidente Fernando Henrique Cardoso criou uma comissão para indenizar desaparecidos e perseguidos do regime militar, esses processos subsidiaram a concessão das indenizações. Do contrário não se saberia quem foi realmente vítima do regime. A minha intenção é digitalizá-los para que essa memória não se perca. Ainda está tudo em papel. Arquivos foram infestados por fungos. O STM tinha sede no Rio de Janeiro até 1977 e depois foi pra Brasilia. Então, todos os documentos até 1977, como da Intentona Comunista, o movimento Tenentista, ficaram no Arquivo Nacional [no Rio]. A ideia é preservar a memória, digitalizando e unificando os arquivos, de forma que cientistas, pesquisadores, famílias, todos aqueles que tenham interesse em pesquisar esses processos tenham disponíveis de forma facilitada. 

MC - A senhora foi a primeira mulher a integrar o tribunal. Enfrentou resistência de seus colegas?
MER - O STM é o tribunal mais antigo do Brasil, criado por D. João VI quando ainda era príncipe regente. Mais antigo que o próprio STF (Supremo Tribunal Federal). Nesses 208 anos de existência, nunca houve mulher como ministra porque isso dependia da vontade política do presidente da República. Ele indica e o Senado aprova, como no caso do STF. O presidente Lula foi o primeiro a indicar – a me indicar. Não senti resistência alguma por parte dos meus colegas militares, ao contrário. Eles defenderam meu mandato e de uma certa maneira devo essa cadeira na presidência a eles, que lutaram para que eu exercesse o cargo.

A MINISTRA MARIA ELIZABETH ROCHA: "A LUTA PARA EMPODERAR AS MULHERES É REAL E TEM QUE SER TRAVADA. É UMA QUEBRA DE PARADIGMAS QUE É ATÉ CIVILIZATÓRIA" (Foto: Divulgação / Arquivo pessoal)
A MINISTRA MARIA ELIZABETH ROCHA:
"A LUTA PARA EMPODERAR AS MULHERES É REAL
 E TEM QUE SER TRAVADA. É UMA QUEBRA DE PARADIGMAS
QUE É ATÉ CIVILIZATÓRIA" (Foto: Divulgação / Arquivo pessoal)
MC - O STM era o último tribunal federal a não contar com uma mulher na sua composição. O que mudou?
MER -  O tribunal sempre teve um viés liberal e democrático, mas a sociedade sempre desconheceu isso. Exatamente por ser um tribunal militar e os militares não saberem fazer marketing sobre suas ações. Grandes decisões que marcaram a história desse país foram pilotadas pelo STM e boa parte da sociedade desconhece, inclusive os próprios operadores do direito. Posso citar como exemplo o habeas corpus que concedeu liberdade a Luiz Carlos Prestes durante o regime militar; a primeira liminar (autorização prévia antes do julgamento do habeas corpus para proteger liberdade de locomoção), que serviu de precedente para o STF e a defesa do direito à greve e à liberdade de expressão.

MC - Mas por que demorou tanto a ter uma mulher na sua composição? Houve uma mudança na própria sociedade? 
MER - O fato é que, e isso é inegável, somos ainda uma sociedade sexista. Vivemos numa sociedade que ainda  discrimina não apenas as mulheres, mas minorias como os afrodescendentes, os homossexuais. Essa quebra de paradigma demanda uma luta muito grande e tempo para mudar mentalidades. Não basta apenas brigar. É preciso que toda a sociedade reflita junta sobre como é nefasta a desigualação e como é importante a ideia da tolerância, da inclusão. Só posso atribuir essa demora à ausência de sensibilidade dos presidentes anteriores em colocar uma mulher num ambiente tão marcadamente masculino como é o das Forças Armadas.  Isso se deu em 2007, mas nessa época as mulheres já integravam as fileiras das Forças Armadas, já eram ministras em tribunais superiores. Então, a luta para empoderar as mulheres é real e tem que ser travada. É uma quebra de paradigmas que é até civilizatória.

A sociedade ainda discrimina o ser humano pela orientação sexual, como acho que discrimina a mulher, o afrodescendente, o idoso e outras minorias. Por isso é importante o papel do Estado para servir de norte pedagógico."

MC - As mulheres já conquistaram uma situação de paridade com os homens nas Forças Armadas?
MER - Vem avançando. A Marinha já promoveu a primeira almirante. Daqui a pouco, haverá a primeira brigadeiro, inclusive na Aeronáutica as mulheres já pilotam caças.  As mulheres nas Forças Armadas antes eram em geral médicas, enfermeiras, dentistas. Em 2012, a presidente Dilma sancionou a lei permitindo o ingresso de militares do sexo feminino, no Exército, em áreas anteriormente restritas aos de sexo masculino e em 1997, outra lei reestruturou os quadros de oficiais e praças na Marinha ampliando a participação feminina. São avanços que demonstram a ascensão do sexo feminino aos postos de alta hierarquia.

MC - A senhora também se destacou por defender bandeiras progressistas – como a inclusão de companheiros do mesmo sexo no plano de saúde dos servidores da Justiça Militar. Ainda é um tema tabu nas Forças Armadas?
MER - A discriminação pela orientação sexual ainda é um tabu na sociedade. Não acho que seja um privilégio das forças armadas. A sociedade ainda discrimina o ser humano pela orientação sexual, como acho que discrimina a mulher, o afrodescendente, o idoso e outras minorias. Por isso é importante o papel do Estado para servir de norte pedagógico. A pessoa tem todo direito de ter suas ideias e convicções pessoais, mas a tolerância e o respeito é uma exigência mandatória, inclusive definidos por lei. Se a pessoa não tem a sensibilidade de respeitar o outro na sua diferença, o Estado tem que obrigá-la. Estabelecer superioridade entre humanos é inaceitável.

MC - Mas em 2010, a senhora foi a única ministra a votar contra a reforma de um tenente-coronel que teve uma relação homossexual com um subordinado.
MER - A questão ali não foi a orientação sexual, mas ele ter sido condenado anteriormente por outro tribunal. O fato é que o que estava se discutindo no processo era a incompatiblidade dele para o oficialato em razão da orientação sexual. Como acho que um tribunal superior defende princípios mais que pessoas, eu defendi o princípio da liberdade e respeito à dignidade do indivíduo. Julguei de acordo com o que estava no processo. De certa maneira, foi uma vitória porque ele foi reformado e não expulso.

MC - Em todo caso, as pessoas ainda precisam ocultar sua homossexualidade para entrar nas Forças Armadas...
M.E.R.: A política que era institucionalizada nos Estados Unidos de “Don’t Ask Don’t Tell” (Não pergunte, não diga) e foi abolida a duras penas pelo presidente Barack Obama ainda prevalece no Brasil de uma forma tácita, não expressa. Mas acho que a sociedade caminha nesse sentido de mudança. O Supremo tem dado sinais muito claros quando entendeu que o conceito de familia se ampliou e que a união homoafetiva é válida, legal e constitucional. O Supremo é que tem avançado nessa questão, e o Congresso fica recalcitrante porque o ônus político é grande.

MC - Acredita que por ser mulher, a senhora teve mais sensibilidade com questões que envolvem minorias como esta?
MER - Acredito que sim. Eu sou diferente de todos primeiro por ser civil, depois por ser mulher num tribunal que tem civis, mas a maioria são militares. Então já tenho uma visão de mundo diferenciada. De certa maneira, faço a diferença ali dentro com a minha perspectiva sobre o direito, sobre a vida. É o olhar feminino que eu tento levar nas minhas discussões. Claro, com as técnicas jurídicas, com o meu conhecimento, mas é minha visão de mundo. Como diz aquela frase famosa de Ortega y Gasset, “Eu não sou eu apenas, sou eu e minhas circunstâncias”. As mulheres têm uma inteligência emocional que as diferencia dos homens, têm mais maleabilidade para lidar com as fraquezas humanas. Porque a lei é pra aqueles que erraram, anjos não precisam ser julgados. A vítima tem que ser vista com compaixão, mas o réu também. Julgar o semelhante é uma tarefa difícil, muitas vezes dolorosa. Como sou juíza criminal, muitas vezes me defronto com impasses pessoais, emocionais difíceis de enfrentar.

É algo que me ressinto, não ser mãe. Mas eu tenho alunos que são como filhos para mim. Tenho um casamento extremamente feliz há 25 anos. Mais do que ser mãe, eu gostaria de ter tido um filho com o homem que eu amo."

MC - O fato de ser casada com um militar da reserva a influenciou a aceitar o convite para fazer parte da corte?
MER - Não, absolutamente nada. Foi uma coincidência que me ajudou inclusive. Direito militar é um direito especializado, como o direito do trabalho e o eleitoral. Quando você julga um crime militar, não basta aplicar a lei ao fato concreto. Outras vertentes analíticas também fazem parte dessa valoração na hora de aplicar uma sanção ou absolver alguém. A caserna é um ambiente muito diferente da vida civil. Eu tenho por princípio zelar pela liberdade de uma forma absoluta. Ocorre que dentro do quartel, esse conceito de liberdade que temos na vida civil não pode ser levada ao extremo, sob pena de acabar incindindo numa quebra na cadeia de comando, da hierarquia. Num estado democrático, homens armados têm que ser controlados com rigor. Nesse sentido, o papel das justiças militares estaduais e federal é fundamental.

MC - A senhora passou por dilemas comuns a muitas mulheres de ter que optar entre carreira e trabalho?
MER - Passei por alguns deles. Essas escolhas são muito dolorosas. Muitas vezes, a gente acaba perdendo. Por exemplo, posso dizer que perdi a hora de ter um filho. Escolhi a minha carreira e quando decidi optar pela maternidade, me dei conta que tinha um problema de saúde e a idade já estava bastante avançada para que eu pudesse tomar alguma medida, fazer uma intervenção cirúrgica. Eu escolhi a minha carreira, queria também a maternidade, poder conjugar as duas, mas adiei. É algo que me recinto, não ser mãe. Mas eu tenho alunos que são como filhos para mim. Tenho um casamento extremamente feliz há 25 anos. Mais do que ser mãe, eu gostaria de ter tido um filho com o homem que eu amo.

MC - Que marca a senhora espera deixar nesses seus nove meses à frente do tribunal?
MER -  Acima de tudo, gostaria que a sociedade conhecesse melhor a grandeza do meu tribunal, a importância que ele tem e sempre teve para o Estado e que as pessoas aprendam a admirá-lo e respeitá-lo como ele merece.


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