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terça-feira, 17 de junho de 2014

O coração usurpado

Como a fantasia e a ficção podem ajudar a lidar com a perda de alguém amado e aliviar o sofrimento.

Publicado em 01/10/2013
POR
Diana Corso

Edição 136

Faz anos que me dedico a explicar a fantasia. Sei que é preciosa, mas busco provas de sua genialidade, do enorme bem que faz à saúde mental. Mesmo assim, custei a perceber o exemplo que estava ali, sob meus olhos.

Eu contava uma velha história repetida, já no automático. Minha filha escutava distraída, a vítima da vez era seu namorado. Era o relato da ignorância de um médico de cidade pequena a quem culpo pela morte de meu pai, que perdi ainda bebê.

No dia anterior à sua morte, meu pai foi ao consultório do velho médico com fortes dores no peito. Examinado, ouviu que seu coração estava ótimo, ao que o doutor acrescentou: "você está tão saudável que eu até trocaria meu coração com o seu!". "Bem se vê que não trocaram!", concluía eu, pois o médico passou dos 90, enquanto meu pai infartou no dia seguinte, aos 32 anos, jogando futebol. "Ou trocaram", disse minha filha.

Com duas palavras, ela lançou a hipótese de uma troca mágica. Num passe de imaginação, o médico virou um monstro que se apropriou do órgão alheio. O jovem esportista teria morrido com um velho coração, enquanto o bruxo disfarçado de médico viveu sua longevidade.

Por meio dessa história do coração usurpado, o que era ressentimento tornou-se fantasia. A ficção alivia as dores psíquicas, dando fluidez a conteúdos dolorosos e incômodos. A imaginação liberta, tira a pedrinha do sapato, faz com ela um anel que passa de mão em mão. Uma narrativa repetitiva e chorosa transforma-se assim em uma história digna de mestres da literatura fantástica, como Poe ou Lovecraft. Nesse gênero, o estranho entra sutilmente, como um detalhe surpreendente, um desenlace inusitado, dispensando explicações. Quem completa a trama é a imaginação do público, leitor ou ouvinte. O sentido fantástico emerge desse rio subterrâneo e subliminar de pensamento no qual lógica e razão não prevalecem.

A morte de um jovem é improvável e sem sentido, é como se fosse bruxaria. Uma força mágica parece uma explicação, mesmo que delirante. Preferimos poderes que nos exporiam a horríveis perigos do que ficar à mercê do imprevisível. A magia dá a ideia de que alguém está no comando, a morte deixa de ser aleatória. Curiosa forma de alívio.

No fundo, se isso tivesse ocorrido, seria incrível. Se tivesse imaginado antes que o coração do meu pai estivesse no peito do velho doutor da cidade, eu poderia ter me aproximado dele. Talvez ele não seja apenas um órgão que bombeia sangue.

Diana Corso é psicanalista e, atualmente, atende jovens e adultos em Porto Alegre, onde mora. Junto com o marido, Mário Corso, é autora dos livros Fadas no Divã e Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia, ambos pela Ed. Artmed.

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